Homenagem a Jorge Mautner

Lido durante a cerimônia de entrega do título de cidadão paulistano ao artista, na Câmara Municipal de São Paulo, em 8 de maio de 2003

Jorge Mautner se alinha com nomes como
Luiz Melodia Walter Franco
Raul Seixas Rita Lee Moraes Moreira
João Bosco e Djavan
entre os grandes cantores-compositores
da moderna música brasileira
aparecidos e/ou consolidados na década de 70

ao lado de Rita e de Raul
(além de Erasmo Carlos)
particularmente
ele forma a linha de frente
do rock de cor local
nativo e original
daquela década
que abriu caminho
para as novas gerações vitoriosas
do rock tupiniquim dos 80

com Nelson Jacobina
ele compõe uma dessas duplas históricas
de autores de canções da nossa música popular
como Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito
como Nelson Gonçalves e Adelino Moreira
ou antes
João de Barro e Alberto Ribeiro

uma volúpia sensual e sensorial
habita os versos das suas canções
promovendo uma visão erótica
das relações amorosas
e uma erotização das coisas

em Mautner
amor
se casou com
eros

(ele até deu à sua filha o nome de
Amora
não querendo dizer a fruta
mas – segundo ele –
o feminino de amor)

“tem desejo de amor
até mesmo na flor e na planta
e na voz de quem fala
e na voz de quem canta”
canta ele
em “Rock Comendo Cereja”

essa é uma obra em que
“o bico do beija-flor beija flor
e toda a fauna flora grita de amor”
um universo poético-musical em que
“gotas tão lindas”
“até dá vontade de comê-las”
como ele proclama em “Maracatu Atômico”

sensualidade aliás presente
em muitas e tantas canções de amor
igualmente marcadas
pela lei e pela lógica do desejo
veja-se por exemplo
o caso paradigmático
de “Matemática do Desejo”

a presença do impensável
do imprevisto do imprevisível
da surpresa
do patético mesmo

afinal
quem
na poemúsica brasileira
ousaria conversar com os bichos
e as samambaias
e se comunicar com uma roseira?

(Cartola talvez
mas Cartola se arrependeu
se corrigiu e disse:
“que bobagem, as rosas não falam”
e Mautner não
[Mautner parece mesmo incorrigível
o “todo errado”])

e quem foi capaz
dos versos mais belos
já cantados sobre a tristeza
que ele derramou
com precisão e concisão
em “Lágrimas Negras”?

“belezas são coisas acesas por dentro
tristezas são belezas apagadas pelo sofrimento”

a mautneriana melancolia
e no entanto a alegria
a também mautneriana alegria
ou talvez melhor seria dizer
o seu humor
o lance do seu humor
do seu senso de humor
tão impregnado – o que é importante –
de uma saudável auto-ironia

o orientalismo leve e livre
de “Samba Japonês” e “O Rouxinol”
a tragédia social brasileira
na visão profética das crianças abandonadas
as questões filosófico-existenciais
associadas à solidão do ser
o lado político-discursivo panfletário
(“ou o mundo se brasilifica
ou vira nazista”)

essas coisas também estão lá
em JM

a contribuição para o vocabulário da MPB
com termos literalmente animais
em suas canções
rugidos, latidos, balidos, miados, guinchos
se tornam palavras cantadas
além de sons de trens
de trilhos
de bicicletas
etc.

nelas
personagens de HQ ganham vida
além do plano da página da revista
vêm pra vida
a vida da arte
das letras e músicas
onde convivem
naturalmente
com o autor

inverossímil?

JM refunda entre nós uma nova canção do absurdo
em sintonia com uma tradição de canção nonsense
inaugurada no passado por um Lamartine

é de JM o rock do absurdo “O Relógio Quebrou”
como são também dele algumas canções-piadas

está tudo lá

a introdução de temas novos
como a bomba atômica
(em “Cinco Bombas Atômicas”
de certo teor autobiográfico
já que algumas das mais remotas e marcantes reminiscências
do cantor-compositor
é a explosão
das bombas nucleares no Japão
ao final da Segunda Grande Guerra)

o tema do feminismo e do pacifismo
abordados ainda em meados dos 60
em “Não, Não, Não”
sinalizando pela primeira vez
talvez
uma deglutição de sabor inconfundivelmente pessoal
da obra inicial de Bob Dylan
em nossa moderna MPB

e ainda
em matéria de exploração pioneira de um tema
o que dizer de “O Vampiro”
que assustou Caetano Veloso
ao saber que a canção datava de 1959?

não são poucas
aliás
as coisas estranhas
que repontam
em sua obra de cancionista
coisas que não se parecem
com nada que veio antes
nem depois
veja por exemplo “Olhar Bestial”
dos anos 60

entre elas há
claro
o seu amor pela chuva
a chuva
imagem-símbolo tão recorrente
seja em sua obra poetico-musical
seja em sua obra literária
chuva-signo também de São Paulo
cidade que ele abraçou
residindo aqui
o elo poético justo
entre ele e a cidade
a justificar plenamente
a homenagem de hoje

o descompromisso
o descomprometimento
com as formas convencionais
inclusive as elegantes

um espírito de menino

sem medo do ridículo e do óbvio
como rimar – à perfeição –
Hong-Kong com pingue-pongue
o óbvio
mas que ninguém viu

e é
como que
brincando
como um menino
sem demonstrar o menor esforço
mas muita naturalidade
rindo mesmo disso
que ele faz uso das rimas mais raras e imprevistas
ricas
cheias de sofisticação
tipo apague-as com águias
ou então
Pégaso com pega o azul

onde na verdade
mais do que um rima
o que temos
é a concretização
verbo-musical
do vôo do cavalo alado
no plenicéu do espaço do canto

“Pégaso Pégaso Pégaso Pégaso
Pégaso Pégaso Pégaso Pégaso
Pégaso Pégaso Pégaso
pega o azul”

há também rimas de som, sentido e imagem:
“você voa com as nuvens
que são penugens
cor do algodão”
(“Aeroplanos”)

e por fim
last but not least
como não poderia faltar
a um poeta-palhaço como ele
ao mesmo tempo brincalhão e sincero
a licença poética
de uma rima anedótica
instaurada por uma torção na acentuação de um dos termos
(o próprio sobrenome dele
– um paroxítono –
pronunciado como oxítono)
instaurando uma atmosfera engraçada
num quarteto de versos finais
cantados em tom quase sério-irônico
bem de acordo
com a personalidade do artista:

“salve o nosso guia
pro que der e o que vier
salve o nosso guia
Jorge Mautnér”
(“Urge Dracon”)