Lamartine Babo

Publicado em 2001 na série de sites “Os Inventores da Música Brasileira”, do portal UOL

O lugar de Lalá

Lamartine Babo foi um dos maiores compositores da época de ouro da história da música popular brasileira, a década de 30. Ao lado de nomes como Noel Rosa, Ary Barroso e Assis Valente, entre outros, ele se alinha no time dos criadores mais inventivos e originais, responsáveis pela formação do que veio a se chamar mais tarde de MPB.

Como Noel, Ary e Assis, da mesma geração, e como Dorival Caymmi, da posterior, LB (1904-1963) fixou rápida e definitivamente um estilo próprio no cenário musical nacional de seu tempo. Autor de marchas e sambas inconfundíveis, ele se distingue perfeitamente de qualquer outro grande marchista ou sambista brasileiro. O compositor, carnavalesco por excelência, se constitui “em um caso à parte, pela apurada sensibilidade e pelo fino humor de suas produções” – como escreveu seu biógrafo, Suetônio Soares Valença, em “Tra-la-lá” (edição Funarte, 1981).

Os clássicos de Lalá

O nome do carioca Lamartine Babo, ou simplesmente Lalá, como era carinhosamente chamado, é sinônimo de carnaval. É que a fase áurea de desenvolvimento de sua obra – de 1931 a 1937 – se pautou principalmente pela produção voltada para esse tipo de música. Naquele período, todo início de ano ele deu o tom do que ia ser cantado no Rio de Janeiro e em outros pontos do Brasil. Suas composições acabaram se consagrando como as mais expressivas no gênero em todos os tempos. Algumas se tornaram autênticos hinos da festa máxima do povo brasileiro.

“O Teu Cabelo Não Nega”, por exemplo, é uma das mais populares, senão a mais popular das marchas de carnaval já compostas. Mas ele compôs outras, num leque de grande variedade estilística. As românticas, como “Linda Morena”; as brejeiras, na linha de “Moleque Indigesto”; as maliciosas, do tipo de “Aí, Hem”. E entre seus clássicos carnavalescos figuram ainda “A Tua Vida É Um Segredo” e “Marchinha do Grande Galo”, além do samba “Rasguei a Minha Fantasia”.

Lalá não se limitou a esse repertório, porém. Investiu também com sucesso na expressão de outros aspectos da alma brasileira. Assim, perpetrou algumas canções sentimentais antológicas do nosso cancioneiro, como a sertaneja “No Rancho Fundo”, feita em parceria com Ary Barroso, e “Serra da Boa Esperança”. Além de valsas de um singelo romantismo, como “Eu Sonhei Que Tu Estavas Tão Linda” e “Mais Uma Valsa, Mais uma Saudade”.

Por outro lado, suas incursões no filão das músicas feitas para festas juninas resultaram em pelo menos duas das melhores composições no estilo: “Chegou a Hora da Fogueira” e “Isto É Lá com Santo Antônio”.

Por fim, dedicou-se à produção dos hinos dos grandes clubes de futebol do Rio, dos mais bonitos e conhecidos, dentre todos os já criados para times brasileiros: do Flamengo, do Fluminense, do Botafogo, do Vasco da Gama, do América – do qual era torcedor – e até do Bangu. Marchas de imensa popularidade entre nós, praticamente não passa uma semana no país sem que sejam executadas e entusiasticamente cantadas.

Canções de invenção

“Lamartine Babo, o verdadeiro artista da graça, do improviso, maravilhava a todos com versos humorísticos e frases cheias de espírito”. A sentença, colhida em um jornal do Rio nos anos 30, falava sobre uma de suas apresentações. Mas se aplica perfeitamente às suas canções, que o colocam entre os compositores-letristas brasileiros de maior inventividade do passado, do presente e do futuro.

Veja-se o caso de “Canção para Inglês Ver”. Obra-prima do nonsense popular brasileiro, é ao mesmo tempo uma sátira à influência americana e à moda da língua inglesa, no momento em que começam a se introduzir entre nós através do cinema falado (nesse sentido, guarda relações com “Não Tem Tradução”, de Noel Rosa, e “Good-bye”, de Assis Valente). Seus versos misturam palavras do português e do inglês deliciosamente rimadas, usando ainda termos franceses.

Outra tirada de bom humor de extração tipicamente lamartiniana é a rancheira “Babo…zeira”. Aqui, seu gosto por trocadilhos – e também sua auto-ironia – já se percebem no título. Numa passagem, chega a dizer: “Rancheira, o nome está dizendo,/ É rã que cheira…”.

Disparates como esse, de um dadaísmo ingênuo, fazem a graça também da sintomaticamente intitulada “Canção do A.B.surdo”, uma de suas parcerias com Noel Rosa. E com Noel ele compôs ainda “A.E.I.O.U.” (sobre a personagem Juju, que “foi pra Ásia e teve azia…”), classificada bem-humoradamente pela dupla como “marcha colegial”.

História do Brasil

Quem foi que inventou o Brasil?
Foi seu Cabral
No dia 21 de abril
Dois meses depois do Carnaval

Depois Ceci amou Peri
Peri beijou Ceci
Ao som do “Guarani”
Do “Guarani” ao guaraná
Surgiu a feijoada
E mais tarde o parati

Pelo espírito e pelo estilo, pelo tema e pela forma, essa composição carnavalesca de LB poderia tranquilamente ter sido criada pelo grande poeta modernista Oswald de Andrade, o autor de “Poesia Pau-Brasil” – não por acaso, um apologista do Carnaval brasileiro, em seu “Manifesto Antropófago”.

Certas bossas criadas por Lalá foram antecipadoras na sua modernidade. Que dizer da enumeração de “Senhorita Carnaval”: “Carioquíssima!/ Animadíssima!/ Renovadíssima!/ Nacionalíssima!/ Amabilíssima!/ Valiosíssima!/ Assanhadíssima!/ Luxuosíssima!”?

Ou então do jogo sonoro-linguístico de “Hino do Carnaval Brasileiro”, em que, pela exploração de um artifício simples mas de ótimo efeito, uma frase emenda na outra, o som da última sílaba de um verso dando início ao seguinte: “Cor do café, a nossa grande produção/ – São, são, são, são quinhentas mil morenas!”.

Mais de trinta anos depois, não seria outro o procedimento que Caetano Veloso empregaria em “Cara a Cara”, justamente na sua fase de maior dedicação à produção de músicas para carnaval, no começo dos 70. Desde o primeiro verso a letra faz a mesma brincadeira de som e sentido, culminando com: “De alegria/ ria, ria, ria, ria,/ Que a luz se irradia/ – Dia, dia, dia, dia,/ Dia de sol na Bahia”.

A musicalidade de Lalá

O talento do compositor LB não se reduziu ao seu desempenho como letrista. Ele foi também, reconhecidamente, de um senso musical admirável na criação de muitas de suas melodias e até na definição de vários arranjos que as vestiram.

“Um dos poucos compositores que sabiam exatamente o que queriam com suas músicas”: eis como o definiu certa vez Radamés Gnatalli, o grande maestro que – assim como Pixinguinha – se responsabilizou pelos mais bonitos acompanhamentos que se fizeram para as músicas de LB. “Ele descrevia todo o arranjo, cantando a introdução, meio e fim, solfejava acordes e sugeria partes instrumentais. A gente só fazia escrever”.

Lalá se notabilizou pela concepção das introduções instrumentais que colaboraram decisivamente para a fixação de canções suas como “Linda Morena”, “Chegou a Hora da Fogueira”, “Menina Oxigenê”, “2 a 2” e, acima de todas, a internacionalmente conhecida introdução de “O Teu Cabelo Não Nega”.

Os intérprete e a permanência da obra

LB foi cantado, gravado e lançado pelos mais significativos cantores do seu círculo no seu tempo. Mas sobretudo por Mário Reis, cuja voz, pequena, e tipo de interpretação, contida, despojada, moderna, combinava à perfeição com o espírito das suas canções. Sozinho ou em dupla com Francisco Alves ou mesmo com Lalá, Mário Reis constituiu-se no principal intérprete de LB, de quem aliás era grande amigo.

O próprio autor também se constitui num ótimo intérprete dele mesmo, principalmente das peças mais engraçadas de seu repertório, que teve ainda em Carmen Miranda outro intérprete importante e funcionalmente adequado. Francisco Alves e Carlos Galhardo completam o grupo de principais cantores da sua obra.

Uma prova da sua durabilidade já foi dada pelas regravações – e suas repercussões públicas – recebidas de artistas de gerações muito posteriores à de LB. Foram particularmente os casos de Erasmo Carlos (com “Eu Sonhei Que Tu Estavas Tão Linda”) nos anos 60, de Chico Buarque, Maria Bethânia e Nara Leão (“Cantores do Rádio”) nos anos 70, e de João Gilberto e Rita Lee (“Joujoux e Balangandãs”), As Frenéticas (“Linda Morena”) e Xitãozinho e Chororó (“No Rancho Fundo”) nos 80. Lalá vive para sempre.