A proezia de Haroldo de Campos

Publicado na “Folha de S.Paulo” (“Ilustrada”), em 23/10/1984, sob o título “A proesia de Haroldo de Campos”

Em 1963 o poeta Haroldo de Campos imaginou um texto no limite entre a prosa e a poesia, uma escrita que realizasse aquilo que propunha em teoria: a ruptura entre gêneros. Hoje, com uma bela edição da Editora Ex Libris, realizada pelo artista plástico Frederico Nasser, a obra vem a público finalmente encerrada num volume próprio. Chama-se “Galáxias”, e o lançamento está marcado para as 20 horas, na livraria Brasiliense (rua Oscar Freire, 561, em São Paulo).

A ideia da viagem como livro e do livro como viagem norteia a obra no seu todo e abrange outras constantes de “Galáxias”. Muitas são suas personagens e alusões, mas todas elas se entrelaçam por meio daquela que é, na verdade, a sua principal personagem: a própria linguagem. É através desta que o livro propõe e faz sua própria viagem. Entre a prosa e a poesia. Via proesia. Nesta entrevista o autor aborda alguns aspectos da sua obra.

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— Folha – O que o levou, há mais de vinte anos, a esboçar um livro no qual enveredasse por um tipo de prosa, “feita de limalha de prosa” e no limite com a poesia, retomando um lado barroco pertencente ao início do seu percurso textual?

Haroldo de Campos — Desde longa data eu vinha me preocupando com o problema da ruptura dos gêneros na literatura contemporânea, da rarefação dos limites entre poesia e prosa, e também entre ficção e ensaio crítico, entre o exercício ficcional e o exercício metalingüístico da escritura. Em 1962, escrevendo sobre Guimarães Rosa (“A Linguagem do Iauaretê”), como em 1964, ao publicar o meu estudo introdutório à reedição das “Memórias Sentimentais de João Miramar”, de Oswald de Andrade, eu tive a oportunidade de deter-me sobre o assunto. Em 1970, dei formato mais completo a essa reflexão, dedicando-lhe todo um ensaio, primeiro publicado numa obra coletiva auspiciada pela Unesco e depois editado em livro autônomo, “Ruptura dos Gêneros na Literatura Latino-Americana” (Perspectiva, 1976). Neste meu trabalho, referia-me ao Barroco, pelo fusionismo que lhe é próprio, pelo hibridismo de línguas e culturas que o caracteriza, como o momento embrionário, em nossa América, dessa rebelião contra a normatividade clássica dos gêneros. De um Barroco moderno, das possibilidades criativas de um neo-barroco, oposto à obra de arte clássica “perfeita”, do “tipo diamante”, eu já vinha falando desde 1955, em meu artigo-manifesto “A Obra de Arte Aberta” (que antecipou de alguns anos o livro quase homônimo de Umberto Eco…). No meu caso, o fascínio das questões teóricas está sempre ligado à minha prática de escritor, ao meu fazer poético. Em 1952, eu havia escrito “Ciropédia ou a Educação do Prínci¬pe”, um poema em segmentos ou blocos de prosa rítmica, onde o texto é a todo momento “hibridiza¬do” por intervenções neológicas, por fraturas e remontagens verbais. Daí à “prosa feita de limalha de prosa” o percurso foi-se impondo necessariamente, quase que por uma exigência interna do meu trabalho. Aliás, no curso de elaboração das “Galáxias”, aproveitei para fazer uma defesa e ilustração do hibridismo textual num fragmento paródico, em que um travesti é perseguido desabaladamente pela rádio-patrulha romana, defensora censória da normatividade dos gêneros…

— No começo dos anos 60, enquanto seus poemas davam prosseguimento ao experimento concreto, você já parecia inaugurar um caminho mais pessoal, não antagônico mas diferen¬te do programado pelo grupo (liderado por você, Augusto de Campos e Décio Pignatari) enquanto movimento. Nos rascunhos e nas feituras das primeiras páginas de “Galáxias” já não estava a gênese de uma fase posterior, pós-concreta?

HC — A poesia concreta responde a uma das vertentes da minha personalidade, as “Galáxias” respondem a outra. Que elas tenham podido coexistir, é algo que me demonstrou a inexistência de uma oposição antagônica entre barroquismo e construtivismo. Como o demonstram, no nível plástico, Ouro Preto e a arquite¬tura de Brasília. Não se teria sido possível, por outro lado, sem a experiência de rigor e controle do acaso da poesia concreta, disciplinar o turbilhão barroquizante que a escritura galática desencadeia. Pulsão e contenção são os dois polos dialéticos que regem o “Livro das Galáxias”, que eu gostaria de definir, meio-sorrindo, como um manual de cosmonáutica textual…

— O projeto original de uma prosa especial acabou se resolvendo num texto cuja concentração lhe deu mais um caráter de poesia do que propriamente de prosa. Como se processou essa transformação que resultou num texto com aparência de prosa mas que, no fundo, está mais para um poema longo?

HC — A escritura galática foi para mim um gesto épico que se resolveu numa epifânica. Na epifania, a visão prevalece sobre a ação. Quero dizer que o narrar – o gesto narrativo próprio da prosa – deixou-se levar de roldão pela proliferação de imagens, pela voragem fônica, pelas fosforescências de uma semântica móvel que o contagia dos significantes é capaz de suscitar e sustar, com a vertiginosi¬dade de um videoclipe. Afirma Walter Benjamin que, para os românticos alemães, a ideia (entenda-se, o método) da poesia foi a prosa. Para eles, pode-se dizer, o romance foi a alternativa “poética” da epopeia clássica. Para mim, a epifânica, aparentemente conduzida em prosa, foi o modo de lidar com o problema do poema longo, com a possibilidade (ainda que fragmentária) de uma épica moderna. Um gesto estratégico também, face ao rigor projetual da poesia concreta), que definia a poesia propriamente dita em outros termos, coerentemente marcados, à época, por uma estética “minimalista” radical, à Webern e à Mondrian.

— “Galáxias” propõe uma leitura não contínua nem metódica, mas livre, aleatória, ao sabor de uma fruição suscitada pelo desejo, como um texto para ser curtido com e por prazer. O que você tem a dizer sobre isto e sobre uma possível relação entre o seu e aquele a que Roland Barthes se refere como um “texto de prazer”?

HC — Entre os críticos franceses ligados ao momento estruturalista, Roland Barthes foi certamente aquele que melhor compreendeu e abordou os textos de ruptura, marcados pela inovação no plano da linguagem. De fato, a experiência das “Galáxias” aspira a ser, no sentido barthesiano, um “texto de prazer”. Lembro-me que em “S/Z”, livro publicado em 1970, Barthes usa da expressão “galáxia de significantes” para definir o que ele chama “texto-plural” (por oposição ao texto “clássico”, “legível”). E acrescenta: esse texto “não tem começo; é reversível; nele se ingressa por múltiplas entradas, nenhuma das quais pode ser, com segurança, considerada principal; os códigos que ele mobiliza se perfilam a perder de vista, são indecidíveis (…); desse texto absolutamente plu¬ral, os sistemas de sentido podem apossar-se, mas seu número jamais será fechado, tendo por medida o infinito da linguagem”. Por um programa semelhante – por uma análoga miragem? – se norteavam as “Galáxias”, quando comecei a escrevê-las, em 1963…

— Em “Galáxias” a fugacidade e a velocidade das imagens e lembranças, em sequências cinematográficas, sugerem uma correlação com um fluxo livre de pensamento e mesmo de inconsciente. Ao mesmo tempo percebe-se que tudo foi submetido a um controle rigoroso e minucioso da linguagem. Pelas indicações ao final do livro, nota-se que alguns fragmentos-páginas foram escritos em um só dia, outros em um mês ou mais. Com que pique você produziu “Galáxias”? Em que medida espontaneidade e elaboração ¬– possivelmente uma incitando a outra – incidiram no ritmo do seu fazer?

HC — De fato, o ritmo de composição do texto variou, da pulsão instantânea à elaboração mais lenta, espraiada por um arco de tempo mais longo. Alguns fragmentos surgiram de jato; outros foram-se montando aos poucos. Deixei alguns de lado, depois de prontos, quando não me satisfaziam de todo, para repensá-los depois, no conjunto, no organograma geral. Tratava-se de controlar o acaso, de “organizar o delírio”, para usar uma expressão do compositor francês Pierre Boulez. Para tanto, interiorizei no meu processo escritural de¬terminados dispositivos seletivos, em nível sintático e em nível fono-semântico, que me permitiram um trabalho minucioso sobre a lingua¬gem, ainda nos fragmentos aparen¬temente mais “espontâneos”, naque¬les mais vertiginosamente visionári¬os… Por outro lado, não devemos nos esquecer que Lacan, radicalizando Freud, insiste em que a estrutura do inconsciente é a estrutura da lingua¬gem e que a “lei do paralelismo do significante”, lei “cujo concerto rege a primitiva gesta eslava e a mais refinada poesia chinesa”, é funda¬mental para a compreensão dessa estrutura… Também o inconsciente, enquanto efeito de linguagem, obede¬ce a uma poética implícita…

— Traçando um paralelo com a música, sua obra pode ser vista como uma sofisticada e complexa peça erudita de vanguarda. Simulta¬neamente, há momentos de uma linguagem simples e direta que remete à da poesia mais popular, a cantada. O que você tem a dizer sobre isto?

HC — As “Galáxias” têm muito a ver com a música, seja a erudita, de vanguarda, seja a popular. Já mencionei Pierre Boulez, de quem tirei a ideia dos formantes (as páginas inicial e final, impressas em itálico) que balizam o texto como polos rotativos, cambiantes, que falam reversivelmente de fim e de começo, engendrando o jogo da viagem. Isto do ponto de vista da estrutura, da integração e controle dos elementos aleatórios, por exemplo. Mas envolvem também um canto, um cantar, no qual não deixam de reverberar as invenções espontâneas de nossos can¬tadores populares (cuja “virtuosida¬de por vezes deslumbrante”, combinando improvisação com “modelos exatamente codificados”, é ressaltada por um estudioso do porte de Paul Zumthor no seu recente livro dedica¬do às formas da poesia oral em várias culturas e povos). Claro, nem é preciso falar das afinidades com a nossa música popular urbana, de Caetano, Gil, Walter Franco, Arrigo…

— Com os romances de invenção oswaldianos “Memórias Sentimentais de João Miramar” e “Serafim Ponte Grande”, “Galáxias” guar¬dam uma relação tanto ao nível formal como ao temático, residindo nas referências às viagens o princi¬pal ponto de comparação quanto ao segundo aspecto. Eu apontaria uma outra constante temática nestas obras: o erótico. Como na linguagem daqueles livros de Oswald, a de “Galáxias” exubera em alusões sexuais e sensuais, e promove também uma leitura erótica do mundo e da vida. Você concorda?

HC — É certo. Mas a temática da viagem, do périplo, da mobilidade perene se dá, nas “Galáxias”, no nível dos significantes, permanentemente imantados de significado, de semântica – mas de uma semântica evasiva, fugidia, como uma “aura” ou uma fata morgana. Os “microenredos” proliferam: se anunciam e desaparecem, como miragens. A ficção é objeto de ilusão e elusão (o que cria um certo “suspense” detetivesco, segundo me observou uma vez Anatol Rosenfeld). O trabalho no nível do significante (da materiali¬dade da linguagem) tem alguma coisa de corpóreo. O verbal é um corpo, quase táctil. Daí essa erótica do texto, que você observa. Pois, como está expresso num dos fragmentos galáticos, “a linguagem é lavagem é resíduo de drenagem é ressaca e é cloaca e nessa noite inócua é que está sua mensagem…”