Gil aos 70: rimando como sempre – e como nunca

Publicado no jornal “Valor”, em 26/6/2012

Há algumas semanas, no final de uma entrevista com Augusto de Campos dentro de uma série de encontros com poetas na Casa das Rosas, em São Paulo, quando as perguntas se abriram para o público, eu quis saber dele qual a sua visão da rima. Por ser ele um vanguardista, muita gente supõe que esse fenômeno seja de pouca ocorrência em seus poemas, o que não é verdade; de fato, o inventor do concretismo, o mais visual de nossos poetas, rima com bastante freqüência. Além de dizer que em sua poesia a rima participa de um domínio de eventos sonoros de maior abrangência, o das paranomásias, Augusto me respondeu que ela constitui para ele uma oportunidade para promover uma associação inesperada de sentidos a que um poema pode levar.

Imediatamente eu me lembrei do que me disse certa vez Gilberto Gil, a propósito de “Domingo no Parque”, mais exatamente do trecho: “O José como sempre no fim de semana / Guardou a barraca e sumiu / Foi fazer no domingo um passeio no parque / Lá perto da Boca do Rio”. Está registrado no seu comentário sobre a gênese da canção, em “Gilberto Gil – Todas as Letras” (Companhia das Letras; 1996, 2003):

“Algumas pessoas pensam que rima é só ornamento, mas a rima descortina paisagens e universos incríveis; de repente, você se depara no lugar mais absurdo. Eu, que a procuro primeiro na cabeça, no alfabeto interno, […], vejo três fatores simultâneos para a escolha da rima: além do som, o sentido e o necessário deslocamento. Em ´Domingo no Parque´, pra rimar com ´sumiu´, eu cheguei à Boca do Rio (bairro de Salvador). E quando eu pensei na Boca do Rio, me veio um parque de diversões que eu tinha visto, não sei quantos anos antes, instalado lá […]”.

Nada menos que quatro décadas e meia se passaram desde a criação desse grande clássico, que apresentou a primeira grande letra de Gil. Com 25 anos à época, ele apenas começava a aperfeiçoar a sua dicção poética própria, que logo faria dele um grande e genial letrista e, com o tempo, a exemplo de colegas e amigos de profissão e geração da linhagem de Caetano Veloso, Chico Buarque e Jorge Ben Jor, um verdadeiro poeta. Um digno praticante da genuína modalidade de poesia – cantada – que é a letra de música em seus momentos mais especiais, em seus pontos mais altos.

Hoje, ao completar 70 anos de vida e 50 de obra, Gil atesta isto com um imenso conjunto de canções em que pontos luminosos evidenciam o brilhantismo de sua melopeia, a espécie de poesia musical em que a sonoridade e o ritmo orientam os significados das palavras, e na qual a exploração de efeitos sonoros, entre eles a rima, desempenha um papel de enorme relevância. Aproveitando a oportunidade, eu gostaria de chamar a atenção aqui para determinados exemplos (de minha predileção) desses recursos em composições de Gil.

Em matéria de rimário, merecem destaque, ao meu ver, algumas daquelas rimas que são ao mesmo tempo de som e de sentido, e que foram por um certo período a único espécie de rima que Carlos Drummond de Andrade pareceu se permitir praticar. Elas são encontráveis na bela canção que se tornou uma das mais comoventes expressões poético-musicais de compaixão pelas vítimas das desigualdades do mundo, sobretudo as desigualdades sociais no Brasil: “A Novidade” (parceria com os três integrantes dos Paralamas do Sucesso), na qual ocorrem nos pares sereia/baleia e sereia/areia. E se fazem presentes também na canção-jingle “Jurubeba” (jurubeba/beba) e em uma das mais recentes canções de Gil, a forte “Praga” (que eu deixo pra comentar ao fim desse texto).

Gil já praticou igualmente outro tipo formalmente sofisticado de rima, que se dá entre uma palavra e duas ou mais, em “Palco” (cântaro/cantar o), “Metáfora” (metáfora/meta fora) e “O Mar e o Lago” (O Mário Lago/O mar e o lago). E ainda uma outra – cujos termos, homofônicos homógrafos, apresentam contudo sentidos distintos – em grande parte responsável pela graça do refrão de “Punk da Periferia”; aqui, o “Ó” substantivo próprio é imediatamente seguido do “ó” interjeição: um caso, portanto, de rima rica (feita de palavras de classes gramaticais diferentes), tecnicamente falando.

No campo das rimas puras, simples e completas, há também a célebre “Flamengo/Realengo” (poucos substantivos em nossa língua possuem a terminação “engo”), de “Aquele Abraço”, canção de despedida do Rio de Janeiro – e do Brasil, antes da partida para o exílio em Londres, em fins dos anos 60.

Passagem especialmente destacável no rimário gilbertogiliano constitui-se o início de “Pessoa Nefasta”, onde duas sequências de rimas carregadamente aliterativas (uma em efes, esses e tês; outra em bês, esses e tês), algumas internas, como que exprimem, com aspereza, no plano fônico, o sentimento de repulsa e aversão pelo protagonista da canção: “Tu, pessoa nefasta / Vê se afasta teu mal / Teu astral que se arrasta / […]; / Tu, pessoa nefasta / Tens a a aura da besta / Essa alma bissexta…”

Exibindo uma carga mais leve e sutil, mas não menos impressionantes no efeito que causam, há as quase rimas, também aliterativas, que em versos de uma única palavra, sempre seguidos por um longo, estruturam a letra de “Extra”: “Baixa / […] / Acha / […] / Flecha / […] / Puxa / […] / Racha / […]” e “Baixa / […] / Rocha / […] / Bicho / […] / Brecha / […] / Deixa / […]”.

A propósito de aliteração, essa figura de linguagem tão cara a dois outros grandes poetas maiores de nossa música popular – Caetano e Chico – e que contribui notavelmente para a comunicação poética, mais um trecho a ser lembrado é o do delicioso verso de “Marcha da Tietagem”: “Pro mato, pro motel, de moto ou de metrô”. E, com mais virtuosismo ainda, este outro, do rock “Chuck Berry Fields Forever”: “Tambor de tinto timbre tanto tonto tom tocou”. Aqui, como no trecho citado de “Pessoa Nefasta”, a paronomásia adquire funções isomórficas, fazendo sons e sentidos vocabulares corresponderem-se biunivocamente. Ao empregar nada menos que dez tês num verso de catorze sílabas, Gil não teve outro objetivo senão o de mimetizar a sonoridade inebriante dos tambores “trazidos d´África para Américas de Norte a Sul”, do verso imediatamente anterior, que abre a canção.

Por falar em equivalência entre som e sentido (análoga à entre signo e significante), fenômeno que enriquece esteticamente qualquer verso, quando se trata de canção, arte resultante da combinação da música com a poesia, uma correspondência sempre desejável é a que se pode instaurar entre as frases verbais e as musicais: o casamento, enfim, de letra e música. Nesse aspecto, ganham relevo determinados instantes em que uma e outra coisa parecem falar exatamente a mesma linguagem.

Um caso antológico desses acontece em “Beatriz”, de 1982, como apontou o próprio autor da música, Edu Lobo, quando falou o que Chico Buarque fez, ao letrá-la. Colocando a palavra “chão” sobre a nota mais grave, e a palavra “céu” sobre a nota mais aguda da melodia pré-composta por seu parceiro, Chico estabeleceu assim o tão buscado casamento verbo-musical. É claro que tal procedimento colaborou, subconscientemente – isto é: profundamente – para a transmissão da emoção que o poeta quis passar.

Desde a publicação do comentário de Edu, o fato com certeza já foi várias vezes comentado por pessoas ligadas nesses detalhes internos do processo de composição de canções. Mas eu ainda não vi alguém observar que Gil fez a mesma coisa dois anos antes, em “Se Eu Quiser Falar Com Deus”, de 1980. Nessa que também virou um standard da moderna MPB, e em cujas linhas nosso poeta místico-religioso enumera com intensidade de sentimento as posições e atitudes reverentes que ele deve tomar para alcançar o que o título indica, ao final do verso “Tenho que lamber o chão” ele também canta “chão” sobre a nota mais baixa, e do verso “Tenho que subir aos céus”, também a palavra “céus” atinge no canto a nota mais alta da música.

Numa de suas mais recentes canções, “Praga”, feita para sua filha Preta Gil cantar (e para defendê-la de ataques ofensivos feitos covardemente pela internet), Gil escreve: “Que a tua boca suja na internet / Não me alfinete ou canivete nunca mais / Estou pedindo a Deus no meu tablete / Que delete os teus ataques virtuais”. Percebe, leitor, as rimas entre internet, tablete e (internamente) delete? E entre alfinete e canivete? Sim: rimas não só de som, mas também de sentido. Pois é, poesia é (também) isso. Num tempo em que, por força da força de um gênero – o rap – que privilegia o poético, a palavra “rima” se tornou sinônimo de “poesia” (de música), e “rimar”, de “fazer poesia” (cantada ou cantofalada), o poeta-músico Gil, septuagenário, mostra que segue rimando como sempre – e como nunca.