Nelson Cavaquinho

Escrito com Paquito e publicado em 2001 na série de sites “Os Inventores da Música Brasileira”, do portal UOL

Único, inconfundível, original

A voz negra, rouca e suja. O toque rústico do violão. As cordas graves – a baixaria – conduzindo a harmonia. As melodias tristes de contornos incomuns. Os temas da morte e do sofrimento repetidos obssesivamente. As imagens e resoluções poéticas insólitas. Estas características se combinam na obra de Nelson Cavaquinho, formando um todo único, indissociável, e conferindo ao sambista um lugar especial entre os artistas mais originais da música popular brasileira de todos os tempos.

Nelson Cavaquinho foi contemporâneo dos principais nomes da chamada era de ouro da música popular brasileira, que durou dos anos trinta até o início da década de quarenta. Ao contrário daqueles, porém, ele permaneceu na condição de marginalizado durante a maior parte de sua carreira. O cantor e compositor não se preocupava com a comercialização de suas músicas, preferindo tocar e cantar, como um trovador urbano, nos bares, pelas madrugadas.

Por isso, muitos de seus sambas ficaram longo tempo no ineditismo, até serem gravados – casos de clássicos como “Luz Negra”, “Rugas” e “Palhaço”. Suas músicas foram apenas eventualmente registradas em disco até os anos sessenta. Foi quando ele começou a obter o devido reconhecimento, com a redescoberta dos sambistas de morro pelos bossa-novistas da segunda geração. Naquela década e na seguinte, Nelson viveu finalmente o ponto alto de sua carreira.

No início dos anos setenta, no auge desse processo, ele já era sexagenário.

Guilherme de Brito, o parceiro ideal

Na obra de Nelson Cavaquinho ressaltam, em quantidade e em qualidade, as músicas que ele fez com um de seus vários parceiros, o mais importante deles: Guilherme de Brito. Ao iniciarem seu trabalho, nos anos cinquenta, os dois fizeram um pacto de só comporem juntos, formando uma dupla que bem poderia ser chamada “o Lennon e McCartney do samba”.

Enquanto Nelson era um boêmio de passar dias e noites seguidas nos bares, Guilherme, opostamente, trabalhou na Casa Edson (antiga fábrica de discos) durante trinta anos. Mas a afinidade estética superou as diferenças de comportamento, e eles produziram uma série de sambas antológicos – um deles, o famoso “A Flor e o Espinho”, que possui um dos inícios mais fortes e surpreendentes dentre as canções já escritas em língua portuguesa: “Tire o seu sorriso do caminho/ Que eu quero passar com a minha dor”.

Da dupla nasceram ainda, entre outros: “Folhas Secas”, “Pranto de Poeta”, “O Bem e o Mal” e “Quando Eu Me Chamar Saudade”. No trabalho da dupla, não havia rigidez na divisão de papéis. Ambos faziam letra e música e, segundo depoimento de Guilherme de Brito, “no final ele passou a fazer a melodia, e eu a letra”. Em “A Flor e o Espinho”, por exemplo, a primeira parte é de Guilherme, e a segunda, de Nelson.

Os outros parceiros de Nelson, anteriores a Guilherme, foram ocasionais, e muitos entraram na parceria em troca de favores, como era costume na época. Algumas exceções foram Jair do Cavaquinho, da escola de samba Portela, com quem ele compôs “Eu e as Flores”, e Cartola, companheiro de boemia e de Mangueira, co-autor de “Devia Ser Condenada”.
A parceria com Zé Kéti é curiosa: como pertenciam a sociedades arrecadadoras diferentes, não podiam assinar conjuntamente uma composição, segundo uma regra vigente na época. Por isso, a Nelson (e a dois outros, José Alcides e José Ribeiro de Souza) foi creditado o samba “Nome Sagrado”, também de Zé; e a este, sozinho, “Meu Pecado” (gravado por Paulinho da Viola), composto pelos dois.

O tema da morte

A morte é obsessão na obra de Nelson Cavaquinho. Eis um dos maiores fatores de originalidade em sua arte: não se encontra, entre os compositores brasileiros, um outro que tenha feito desse – um assunto difícil por excelência – o tema principal de suas obras, sendo isso raro também na música popular de qualquer país.

Em Nelson, a angústia da morte e a efemeridade da vida incidem, às vezes inesperadamente, em canções falando de amor ou da escola de samba do compositor (“Folhas Secas”, por exemplo). Mesmo um símbolo poético como a flor – comumente associado à feminilidade, à mulher, à delicadeza – pode se apresentar na sua conotação funérea. Como em “Eu e as Flores”: “Quando eu passo perto das flores/ Quase elas dizem assim:/ ‘Vai, que amanhã enfeitaremos o seu fim’”.

A que poeta ocorreria a inspiração – levada à ousadia – de fazer um samba revelando ter dado enfim o beijo há tanto tempo esperado em sua amada, agora que ela está morta, no caixão? Pois foi o que Nelson Cavaquinho – e Guilherme de Brito – fizeram, em “Depois da Vida” (gravada por Paulinho da Viola, em 1971).

O conflito básico presente nas letras dos seus sambas pode ser sintetizado no paradoxo final de “Rugas”: “Feliz daquele que sabe sofrer”. A consciência de que ser feliz consiste apenas em administrar o sofrimento e a tristeza leva à crença num cristianismo popular e pessimista, no qual a caridade é uma virtude. A todos só restaria levar a vida tendo compaixão uns dos outros; afinal existir é sofrer, e viver bem é sofrer sem demonstrar. A única saída, portanto, se torna o descanso final, a morte, paradoxalmente também fonte de sofrimento, pois implica perda.

Abordando a morte ou não, Nelson transforma o lugar-comum em incomum. O imprevisto caracteriza também várias outras imagens lançadas nas letras curtas e fortes, ao mesmo tempo simples e surpreendentes, de seus sambas: “A luz negra de um destino cruel/ Ilumina o teatro sem cor/ Onde estou desempenhando o papel/ De palhaço do amor”, canta ele, em “Luz Negra”. Letras despojadas na construção, mas ricas nas novas realidades que cria.

O significado de Mangueira

Nelson Cavaquinho começou sua história musical como um chorão – provavelmente vem do choro a imprevisibilidade de suas melodias. Nessa fase, seu instrumento era o cavaquinho: daí o apelido com que ficou conhecido.

Foi num segundo momento que ele conheceu o morro de Mangueira, devido a seu emprego como soldado da cavalaria da Polícia Militar do Rio de Janeiro. O contato com Cartola, Carlos Cachaça e outros bambas mangueirenses o transformou definitivamente num sambista.

Só então seu instrumento passou a ser o violão. Nelson o tocava de uma maneira muito especial: beliscando as cordas com o indicador e o polegar, tirando assim um som único – uma das principais peculiaridades de seu personalíssimo trabalho.

Mesmo tendo residido em Mangueira por apenas um ano e meio, a ela o compositor dedicou vários sambas, entre eles “Sempre Mangueira”, “Pranto de Poeta”, “Folhas Secas” e “A Mangueira Me Chama”. A Mangueira está para Nelson Cavaquinho assim como a Vila Isabel está para Noel Rosa, e a velha cidade de Salvador para Dorival Caymmi: trata-se de pátria utópica, motivo de canção e morada ideal do poeta.

Os principais intérpretes

Ciro Monteiro foi o primeiro grande intérprete da obra de Nelson Cavaquinho, responsável pelo seu primeiro sucesso como compositor, com a gravação de “Rugas”, em 1946. Dentre os cantores da mesma geração, Dalva de Oliveira (“Palhaço”) e Roberto Silva (“Notícia”) também lançaram importantes composições do sambista.

Nos anos sessenta, Nara Leão (“Luz Negra” e “Pranto de Poeta”) e, em seguida, Elizeth Cardoso (“A Flor e o Espinho” e “Luz Negra”) deram início a uma onda de descoberta e gravação de seus sambas. Esse processo veio a se realizar de fato na década seguinte.

Um número crescente de cantores da MPB passou então a incorporá-lo a seus repertórios. Entre eles, tornaram-se grandes divulgadores de sua obra os sambistas Paulinho da Viola (“Depois da Vida”, “Duas Horas da Manhã”), Clara Nunes (“Minha Festa”, “O Bem e o Mal”) e Beth Carvalho (“Folhas Secas”, “Miragem”). Elis Regina fez de “Folhas Secas” um grande sucesso, e Chico Buarque lançou “Cuidado com a Outra”.

Nos anos noventa, a jazzista Leny Andrade lhe dedicou um songbook, “Luz Negra – Nelson Cavaquinho por Leny Andrade”. Em 2000, a musa das novas gerações Marisa Monte registrou em CD um de seus sambas com Guilherme de Brito: “Gotas de Luar”.

O próprio Nelson só passou a gravar discos individuais nos anos setenta. E, no entanto, é ele, acompanhado apenas do seu violão, “sempre colado ao peito tão amargurado”, o melhor intérprete de si mesmo.

É impressionante a organicidade que se estabelece entre canto, acompanhamento, música e letra, quando ele interpreta seus sambas. O tema da morte e o tom de amargura que caracterizam os textos têm a sua correspondência no timbre da voz desafinada e na crueza do som do violão. Tudo – palavras e sons – parece falar a mesma coisa. Não é comum se observar isso com tanta densidade e intensidade.

Aqui, merecem lembrança os nomes de Dorival Caymmi, na música brasileira, e Robert Johnson, o grande criador do blues rural, na música norte-americana (ao qual, aliás, o poeta Augusto de Campos associou Nelson Cavaquinho). São dois outros exemplos dessa classe rara de compositores-cantores que interpretam suas criações com uma inteireza, uma integridade e uma expressividade tais, que ninguém mais – por melhor que seja o cantor – pode fazê-lo.