Orlando Silva

Publicado em 2001 na série de sites “Os Inventores da Música Brasileira”, do portal UOL

“O maior de todos os tempos”

Orlando Silva, o grande modernizador do canto brasileiro, foi para muitos o maior cantor que a música popular do Brasil produziu nos anos 30 e 40 – e para alguns, simplesmente o maior de todos os tempos já surgido no país.

Suas interpretações se tornaram famosas pelo fraseado flexível, pela emissão macia e pela dicção cristalina. Combinando perfeitamente beleza e potência vocal, seu canto, de uma suavidade natural, era sóbrio e viril, por um lado, ao mesmo tempo que ornado, delicado e sutil, por outro.

Orlando Silva possuía uma notável capacidade de controle e de modulação da voz. Numa mesma canção, podia variá-la de agudos com falsestes a tons bastante graves. Mas não tinha apenas afinação: exibia também muita bossa. Seu sentido rítmico era admirável, e ele não repetia a mesma divisão ao retornar à primeira parte, introduzindo-lhe sempre alterações.

O cantor emprestava sentimento e emoção à interpretação de cada música, sem contudo deixar que seu canto se transformasse em algo derramado. A par disso, deu uma nova dimensão ao microfone, demonstrando uma noção exata no seu uso – um fator importante numa época sem sofisticação tecnológica aplicada ao som.

Para tudo isso, Orlando Silva mostrou ter uma sensibilidade naturalmente moderna. Por tudo isso, transformou a arte de cantar entre nós, lançando um estilo único e original que se firmou como uma escola, servindo de modelo e referência para as gerações subsequentes de cantores brasileiros. A de João Gilberto, por exemplo.

“O Cantor das Multidões”

Orlando Silva foi o primeiro grande ídolo de massas que apareceu no Brasil. Nos anos do auge de sua trajetória, nenhum outro artista obteve tanta popularidade quanto ele no país. Suas apresentações ao ar livre atraíam então imensas concentrações de pessoas, daí ele ter recebido o epíteto de “O Cantor das Multidões”.

Seu sucesso nessa fase – segunda metade da década de 30, primeira da seguinte – já foi comparado ao que Frank Sinatra teve, mas somente alguns anos depois, nos Estados Unidos. Moças e mulheres gritavam e desmaiavam à sua aparição, correndo atrás dele para agarrá-lo ou rasgar-lhe a roupa. Nesse sentido, no contexto nacional, ele precedeu também, em quase trinta anos, a Roberto Carlos.

Mesmo com tanto êxito, Orlando Silva nunca abriu mão da qualidade do trabalho, a começar do repertório que gravou e cantou.

O ponto alto da sua carreira e da sua voz coincidiu com o tempo de contratado pela RCA Victor (hoje BMG), de 1935 a 1942. Mais ou menos a partir de 1945, porém, a voz começou a dar mostras de um problema que afetou a sua sonoridade cristalina, seu timbre perfeito e os seus agudos suavíssimos.

Orlando Silva se tornou o primeiro nome consagrado da música brasileira que sucumbiu ao uso de drogas pesadas. A sua ascensão meteórica teve um relativo ostracismo subsequente; da glória, consolidada pela paixão das massas, ele quase conheceu a obscuridade. Foi portanto uma trajetória tormentosa – e uma existência atribulada – a sua.

Apesar do problema vocal, sua interpretação se manteve a mesma até o fim de sua carreira, nos anos 70: excelente. Embora alguns (jornalistas sobretudo) considerem vertiginoso o declínio de sua voz, para outros (artistas principalmente), nenhum outro cantor do passado se comparou a ele mesmo em sua fase decadente. Entre estes se contam os cantores e compositores Caetano Veloso e Paulinho da Viola.

Modelo para a bossa nova e o Tropicalismo

Orlando Silva serviu de modelo e referência para dois dos mais importantes e prestigiados movimentos de modernização da música, da arte e da cultura brasileira no século 20: a bossa nova e o Tropicalismo.

Dentre os elementos da tradição brasileira, o cantor e violonista João Gilberto o escolheu como uma das bases a partir das quais construiu o edifício da bossa nova. Na origem da invenção joãogilbertiana, Orlando adquiriu uma importância capital, ao lado do compositor Dorival Caymmi e do cantor Ciro Monteiro, entre outros.

O estilo de João vem de Orlando, para ele “o maior cantor do mundo”. A contenção e a economia sem perda do colorido melódico do velhaguardista levaram o bossanovista a se influenciar por ele e a elegê-lo mestre. Não à toa, João desde sempre visitou clássicos de Orlando, como “A Primeira Vez”, “Preconceito”, “Curare” e “Aos Pés da Cruz”. Este samba chegou a ser gravado por Miles Davis, por causa de João – e, indiretamente, por causa de Orlando.

A maciez na emissão macia e a flexibilidade no fraseado foram o que o carioca legou ao baiano, segundo Caetano Veloso, co-autor de outra revolução estética e musical que também viu no “Cantor das Multidões” uma espécie de farol. Para o líder tropicalista, Orlando representou particular e especial interesse por ter sido ao mesmo tempo “um fenômeno de massa e um artista do maior refinamento”.

Mais do que isso, Caetano, assim como um companheiro de geração, Paulinho da Viola, se deixou influenciar pelas interpretações de Orlando e tomou seus principais valores como cantor como critério de avaliação de canto. Em referência a ele, acabou gravando outro de seus clássicos, “Lábios que Beijei”.

Ainda Caetano, sobre Orlando (em seu livro de reminiscências tropicalistas, “Verdade Tropical”): “Tinha uma voz bela e poderosa, mas não impunha exibicionisticamente sua potência vocal, antes amaciando a emissão nos agudos, o que, combinado com seu senso do fraseado, suas divisões rítmicas inventivas e a clareza da dicção, fazia dele um músico da canção”.

Esta última característica é de certa forma sublinhada também em outro livro, “Orlando Silva – O Cantor das Multidões”. Nele, o biógrafo Jonas Vieira advoga uma tese para a origem do estilo orlandiano, associando-a ao choro carioca, em cujo berço o artista nasceu, “constituindo-se no único cantor fruto desse gênero de música”. Um gênero de música popular elaborada, melodicamente sofisticada, cultuada pelos melhores músicos. Segundo o autor, Orlando “transportou toda a magia instrumental do choro para o canto, emprestando-lhe voz e poesia”.

O jornalista Ruy Castro também vincula as interpretações de Orlando ao choro, apontando ainda, especialmente nos foxes e nas valsas que ele gravou, uma influência do cantor Bing Crosby, o grande inovador, nos anos 20 e 30, do canto norte-americano. “É Crosby à brasileira, com fabulações de choro e uma exclusiva bossa sestrosa e carioca”,escreveu.

Belo repertório, belos arranjos

Um dos segredos para o nível da arte de Orlando Silva está na fina sensibilidade demonstrada pelo intérprete na seleção e promoção de um repertório de alta qualidade. Assinado por muitos dos melhores compositores da época, nele se alinham algumas dezenas de clássicos da música brasileira (ver Uma seleção de clássicos do intérprete).

Excelente como cantor de sambas, Orlando se mostrou, no entanto, insuperável nas canções lentas – sambas-canções e valsas, além de foxes. Esta parte do seu repertório constituía na mais adequada para o tipo de cantor, romântico, que era.

De sensibilidade ele também deu mostras na escolha dos criadores dos arranjos e do acompanhamento das suas gravações. O cantor estabeleceu uma relação perfeita, entrosada, com o maestro Radamés Gnatalli, que “arranjou” vários de seus sucessos e que se revelou um grande modernizador das orquestrações. Outro importante arranjador com que Orlando contou foi Pixinguinha.

Uma seleção de clássicos do intérprete

  • De Pixinguinha: “Carinhoso” (com João de Barro), “Rosa” (com Otávio de Souza) e “Página de Dor” (com Cândido das Neves).
  • De J. Cascata e Leonel Azevedo: “Lábios que Beijei”, “Juramento Falso” e “Meu Romance” (este, só de J. Cascata).
  • De Custódio Mesquita e Mário Lago: “Nada Além” e “Enquanto Houver Saudade”.
  • De Pedro Caetano e Claudionor Cruz: “Caprichos do Destino”.
  • De Assis Valente: “Alegria” (com Durval Maia).
  • De Noel Rosa: “Dama do Cabaré”.
  • De Benedito Lacerda e Humberto Porto: “A Jardineira”.
  • De Bororó: “Curare”.
  • De Wilson Batista e Marino Pinto: “Preconceito”.
  • De Zé da Zilda e Marino Pinto: “Aos Pés da Cruz”.
  • De Joubert de Carvalho: “Por Quanto Tempo Ainda”.
  • De Octavio Mendes, José Marcílio e Déo: “Súplica”.
  • De Ary Barroso: “Faixa de Cetim”.
  • De Ataulfo Alves e Mário Lago: “Atire a Primeira Pedra”.
  • De Lupicínio Rodrigues: “Brasa”.

O ato de cantar, segundo o cantor

“Um momento de extrema tensão vivida tanto pelo cantor como pelo ouvinte. E que precisa ser tratado com o máximo de suavidade e o máximo de impacto, num estado de concentração absoluta.
“O som transmitido pelo intérprete não pode ser muito forte nem muito fraco, mas modulado de forma que não gere desconforto. Não deve haver excesso de ruído nem escassez de som, isto é, não se deve gritar nem baixar a voz a ponto de o ouvinte perturbar-se ou sentir-se incomodado pela palavra mal emitida pelo intérprete.
“Trata-se de um ato difícil de realizar. Porque no momento em que se está cantando, as tensões são fortíssimas. A mínima falha pode ser fatal, derrubando o encanto geral do espetáculo.
“Deve-se também ser esperto e dosar a voz a fim de aproveitá-la com o máximo de precisão, tirando partido dos momentos em que a música pede elevação ou diminuição da voz, ou seja, nos agudos com falsetes e nos tons graves muito baixos – nas modulações.
“E explorar ao máximo as vantagens do potencial de voz, como a elevação de um tom para outro numa única emissão.”

Poucos nomes do canto brasileiro demonstraram tal clareza de consciência técnica da linguagem que dominava.

Na descrição da criação de seu estilo, Orlando Silva o comparou ao dos dois mais importantes nomes do canto brasileiro na época em que surgiu. Segundo afirmou, ele quis reunir o que Francisco Alves possuía em termos de voz e o que Sílvio Caldas possuía em termos de intepretação. Tinha-se, em um, o cantor, e em outro, o intérprete. Orlando buscou – e logrou – ser a síntese de ambos, cantor e intérprete.

O cantor também disse certa vez ter uma dívida com “O Rei da Voz”, pelos toques que recebeu deste no início de carreira. “A noção de aproximação e distanciamento do microfone, ou então o seu uso mais ou menos de lado para provocar um efeito de voz, constituía-se num jogo discreto mas importantíssimo entre o cantor e o seu público. Muito cedo aprendi isso – que com o rádio moderno se tornou mais fácil –, orientado pelo Chico Alves.”