Publicado na “Folha de S.Paulo” (“Mais!”), em 9/5/1993, sob o título “Orestes leva para canção os sinais do moderno”
Orestes Barbosa figura no primeiro time do elenco de compositores que atuaram naqueles anos douradíssimos da MPB, os anos 30 (do século vinte). É certo que suas composições não são tão populares quanto as de contemporâneos seus como Noel Rosa, Ary Barroso, Lamartine Babo. Embora de inspiração popular, seus versos têm um quê de aristocráticos no balanceamento entre um coloquia¬lismo menos comum e o uso de termos mais poéticos. Mesmo assim, bastaria citar uma criação sua para lhe atestar a importância como letrista e lhe assegurar um lugar no Olimpo dos compositores clássicos do Brasil: “Chão de Estrelas”. A canção, uma de suas parcerias com Sílvio Caldas, é das mais populares de todos os tempos entre nós, e das mais belas em imagens ricas de significado.
Na terceira de suas quatro estrofes, o flagrante fotográfico da favela constitui expressão-síntese de um espírito de época e de um momento histórico. Quantas ideias não podem suscitar aqueles versos que comparam os trapos estendi¬dos no varal a bandeiras agitadas, a um festival no morro onde todo dia e (era) feriado nacional?
Orestes Barbosa é um caso especial de letrista que legou uma obra conhecida por seu nome, independentemente de seus parceiros. Nesse sentido, antecedeu Vinícius de Moraes. Como Vinícius, conferiu prestígio à área da música com a literariedade de suas letras, elogiadas por intelectuais e poetas como Manuel Bandeira e Guilherme de Almeida.
Letrista consciente do fazer poético, poetizou a canção de seu tempo com versos da classe da letra-arte. Duas foram suas marcas registradas como elaborador e manipulador dessa linguagem: a inovação vocabular e a invenção imagética. No rebuscamento frásico, ele se alinha a predecessores como Candido das Neves e Catulo da Paixão – letristas lunares, tristes e enamorados como ele. Mas os suplanta de longe na incorporação de signos novos, com os quais urbanizou e modernizou o lirismo da época.
Motor; abajur, tapete, telefone; veneziana; biombo, apartamento, elevador, arranha-céu; reclames, anúncios luminosos; clichê, manchete; manteau, peignoir. Termos e temas tais foram introduzidos por ele, às vezes em remates deslumbrantes, como no caso dos “delírios nervosos/ Dos anúncios luminosos/ Que são a vida a mentir” , de “Arranha-Céu” .
Último romântico de sua época, em sua obra ele de fato reuniu a Zona Norte à Zona Sul do Rio, cantando casos em subúrbios e em bares, cassinos e cabarés da moda; idílios em barracos de morro e romances em elegantes apartamentos da cidade. Em geral suas letras expõem o sentimento, definido em sua “Torturante Ironia”, de quem “ama e não pode amar”. Paixões secretas, casos acabados, desejos insatisfeitos – o que nos confidenciam suas canções-queixas. Porém, mais que um enredo, o que elas destacam são versos sensorialistas, de forte apelo visual, sobres-saindo em alto-relevo:
“E triste escuto o seu riso/ E sem querer fiscalizo/ Tua vida no apogeu/ Ouço o chuveiro em cascata/ A água em fios de prata / É mais feliz do que eu” – canta ele, em “Bailarina”.
Poeta-pintor, “cenógrafo do samba”, na expressão de Mario Lago, Orestes Barbosa foi um incansável caçador de imagens imprevistas e desconcertantes. Visionário de ilusões fugidias, via a amada em situações insólitas, alucinadas: “E quando bebendo, espio/ Uma taça que esvazio/ Vejo uma visão qualquer/ Não distingo bem o vulto / Mas deve ser do meu culto / O vulto dessa mulher” (“A Mulher Que Ficou na Taça”); “Hoje ver o relógio me tortura / Os ponteiros são braços de mulher” (“Nestas Noites de Amor”). Ou, exagerado, jogado aos seus pés, em cenas de amor servil: “Mas eu sufocarei o meu soluço/ Se consen¬tires, boa como és, / Que o meu desejo, como um galgo russo,/ Possa humilde dormir junto a teus pés” (“Galgo Russo”).
Em canções mais felizes, a mulher era mirada e admirada em linhas delicadas: “Oh minha avenca nervosa/ De unhas pintadas de rosa/ E olheiras de tanto amar/ Olheiras de violetas/ Tarjando essas borboletas/ Noturnas do teu olhar”; seus lábios (“de doçuras”), comparados a “tâmaras maduras”, a boca, a “morango do meu jantar”.
Às vezes suas equiparaçõs tomavam feições simbolistas. À Lua, termo recorrente em suas letras, ele aplicou as mais diversas corporificações e simbolizaçõs. De “clichê dourado impresso em papel azul” a “gema do ovo no copo azul do céu”; de “lâmpada acesa da tristeza” a “mentira branca dos espaços”. Além destas – “hóstia de mágoa” e “freira do céu” – que poderiam até figurar em “Litanias dos Quatro Crescentes da Lua”, do genial Jules Laforgue.
Raramente no âmbito da palavra cantada o sentido plástico impregnou tanto o conjunto de uma obra.
Nos anos 60, estiveram na moda as canções psicodélicas, das quais “Voodooo Chile”, de Jimi Hendrix, constitui um caso exemplar de fanopeia pop. Influenciado pelo cinematografismo bíblico, Bob Dylan se tornou mestre nessa modalidade poética. Há pouco tempo, Prince, o mais fecundo e interessante letrista surgido de 80 para cá, nos brindou com essa deliciosa sequência de movimentos contrastantes: “When 2 are in love/ Falling leaves will appear to them like slow motion rain/ When 2 are in love/ The speed of their hips can be faster than a runaway train” .
Na estrofe final de “Chão de Estrelas”, a construção das imagens, passando pelo “salpicar estrelas” e culminando na frase “tu pisavas os astros distraída”, é precisa, perfeita: um dos pontos mais altos e luminosos já atingidos na poesia de canção. Em meu “Cole Porter – Canções, Versões”, depois de lembrar os usos renascentista e barroco de “pisar estrelas”, Augusto de Campos dá vantagem ao verso do “grande Orestes” ao cotejá-lo com outros, similares, escritos por Camões e Gongora. Alguns podem achar exdrúxula a comparação, já que Orestes não foi um poeta “propriamente dito”. Será?
“Muitos músicos não consideram George Gershwin um compositor sério. Mas eles deveriam entender que, sério ou não, ele é um compositor. Há um número de compositores, sérios (como eles acreditam) ou não (como eu sei), que aprenderam a juntar notas. Mas eles são sérios apenas em função de uma perfeita falta de humor e alma” – escreveu Arnold Schoenberg, para quem Gershwin foi um inovador.
Com alma e ténica, Orestes Barbosa foi um poeta da canção, porque mostrou que esta era sua linguagem natural, e porque nela expressou ideias originais, com simplicidade e singeleza. Mas sem levar em conta essas qualidades, não é possível reconhecer o seu valor, nem compreender a natu¬reza da arte da canção popular.
O letrista de música e o poeta de livro
“O poeta Orestes que eu mais aprecio não é o dos versos proclamados admiráveis por Hermes Fontes, Medeiros e Albuquerque e Agripino Grieco, mas o letrista de sambas e canções”, escreveu, com razão, Manuel Bandeira.
Aplaudidos no ambiente intelectualmente provinciano do Rio dos anos 10 e 20, pouco representaram para a literatura os livros de poemas de Orestes Barbosa, que trocou o mundo das Letras pelo das letras – de música – e aíse tornou realmente maiúsculo.
Seus versos são tão melodiosos e cantantes que às vezes tendem a nem ser cantados. Num dos programas da série que comemorou seus 50 anos, ano passado, Caetano Veloso cantava trechos de música de compositores antigos, cujos nomes lhe eram indicados na hora pelo jornalista Matinas Suzuki. Quando este disse “Orestes Barbosa”, Caetano não cantou, mas declamou a estrofe inicial de “Arranha-Céu”.
O fato, também, é que seus versos chegam a superar as melodias. Sem o concurso delas, eles perderiam muito de sua função e de seu poder de fixação, mas com certeza foram as letras, não as músicas, que conduziram o processo de composição das canções. Às vezes, as melodias parecem servir de moldura para os quadros que os versos pintam. Dois fatores concorrem para isso.
Um: as letras de Orestes são dispostas em formas fixas, definidas por quadras ou sextilhas (seguindo sempre um esquema de rimas AABCCB) divididas em decassílabos ou redondilhas maiores.
Dois: seus principais parceiros – e intérpretes – eram mais cantores que compositores: Sílvio Caldas e Francisco Alves.
Com o “Caboclinho Querido” (um dos inspiradores do verso “Eu vi muitos cabelos brancos na fronte do artista”, de “Força Estranha”, de Caetano), Orestes consolidou o gênero da seresta.
Mas ele trabalhou também com vários outros parceiros, alguns deles compositores de primeira linha. Como Ataulfo Alves e Wilson Batista, em sambas tematizando a negritude – “O Negro e o Café” e “Abolição”, respectivamente. E Custódio Mesquita, “darling” dos músicos, com quem fez “Flauta, Cavaquinho e Violão” (samba-choro que foi sucesso com Aracy de Almeida), “Gato Escondido” (marcha, com as Irmãs Pagãs) e “Nestas Horas de Amor” (valsa).
Com Noel Rosa, criou “Positivismo”, onde prevalece a veia irônica do poeta de Vila Isabel, que gravou o samba e, ao que tudo indica, influenciou também a feitura de “Caixa Econômica”, o mais noelino e bem-humorado dos sambas de Orestes, composto com Nássara e gravado por Luiz Barbosa.
Outros parceiros: Benedito La¬cerda (“Manchete de Estrelas”), Vicente Celestino (“Altar de La¬ma”), J.Tomas (“Verde e Amarelo”), Oswaldo Santiago (“Bangalô”), Newton Teixeira (“Tens Razão”), Valzinho (“Óculos Escuros” e “Imagens”).
Na década de 70, estas duas últimas músicas foram magnificamente recriadas, a primeira por Paulinho da Viola, a segunda por Jards Macalé – numa notável in-terpretação registrada no LP “Aprender a Nadar” (1974), momento excepcional de sua carreira, quando lançou com Waly Salomão a onda da “morbeza romântica”, que alguma coisa deveu a Orestes.
Os Mutantes já tinham realizado uma versão irreverente de “Chão de Estrelas”, em 1970. E Caetano a havia reverenciado, citando-a em “Como Dois e Dois” (“A mesma porta sem trinco/ O mesmo teto/ E a mesma lua a furar nosso zinco”). Anos mais tarde, Augus¬to de Campos reutilizaria os termos “barraco”, “trinco” e “zinco” tirados da canção, ao verter um poema do livro “Hugh Selwyn Mauberley”, de Ezra Pound. A tradução acabou sendo musicalizada com muita sensibilidade por Passoca, em 1984 – três anos depois de Arrigo Barnabé ter entoado o trecho inicial de “Arranha-Céu”, em “Diversões Eletrônicas” (do histórico disco “Clara Crocodilo”).