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Gil aos 70: rimando como sempre – e como nunca

Publicado no jornal “Valor”, em 26/6/2012

Há algumas semanas, no final de uma entrevista com Augusto de Campos dentro de uma série de encontros com poetas na Casa das Rosas, em São Paulo, quando as perguntas se abriram para o público, eu quis saber dele qual a sua visão da rima. Por ser ele um vanguardista, muita gente supõe que esse fenômeno seja de pouca ocorrência em seus poemas, o que não é verdade; de fato, o inventor do concretismo, o mais visual de nossos poetas, rima com bastante freqüência. Além de dizer que em sua poesia a rima participa de um domínio de eventos sonoros de maior abrangência, o das paranomásias, Augusto me respondeu que ela constitui para ele uma oportunidade para promover uma associação inesperada de sentidos a que um poema pode levar.

Imediatamente eu me lembrei do que me disse certa vez Gilberto Gil, a propósito de “Domingo no Parque”, mais exatamente do trecho: “O José como sempre no fim de semana / Guardou a barraca e sumiu / Foi fazer no domingo um passeio no parque / Lá perto da Boca do Rio”. Está registrado no seu comentário sobre a gênese da canção, em “Gilberto Gil – Todas as Letras” (Companhia das Letras; 1996, 2003):

“Algumas pessoas pensam que rima é só ornamento, mas a rima descortina paisagens e universos incríveis; de repente, você se depara no lugar mais absurdo. Eu, que a procuro primeiro na cabeça, no alfabeto interno, […], vejo três fatores simultâneos para a escolha da rima: além do som, o sentido e o necessário deslocamento. Em ´Domingo no Parque´, pra rimar com ´sumiu´, eu cheguei à Boca do Rio (bairro de Salvador). E quando eu pensei na Boca do Rio, me veio um parque de diversões que eu tinha visto, não sei quantos anos antes, instalado lá […]”.

Nada menos que quatro décadas e meia se passaram desde a criação desse grande clássico, que apresentou a primeira grande letra de Gil. Com 25 anos à época, ele apenas começava a aperfeiçoar a sua dicção poética própria, que logo faria dele um grande e genial letrista e, com o tempo, a exemplo de colegas e amigos de profissão e geração da linhagem de Caetano Veloso, Chico Buarque e Jorge Ben Jor, um verdadeiro poeta. Um digno praticante da genuína modalidade de poesia – cantada – que é a letra de música em seus momentos mais especiais, em seus pontos mais altos.

Hoje, ao completar 70 anos de vida e 50 de obra, Gil atesta isto com um imenso conjunto de canções em que pontos luminosos evidenciam o brilhantismo de sua melopeia, a espécie de poesia musical em que a sonoridade e o ritmo orientam os significados das palavras, e na qual a exploração de efeitos sonoros, entre eles a rima, desempenha um papel de enorme relevância. Aproveitando a oportunidade, eu gostaria de chamar a atenção aqui para determinados exemplos (de minha predileção) desses recursos em composições de Gil.

Em matéria de rimário, merecem destaque, ao meu ver, algumas daquelas rimas que são ao mesmo tempo de som e de sentido, e que foram por um certo período a único espécie de rima que Carlos Drummond de Andrade pareceu se permitir praticar. Elas são encontráveis na bela canção que se tornou uma das mais comoventes expressões poético-musicais de compaixão pelas vítimas das desigualdades do mundo, sobretudo as desigualdades sociais no Brasil: “A Novidade” (parceria com os três integrantes dos Paralamas do Sucesso), na qual ocorrem nos pares sereia/baleia e sereia/areia. E se fazem presentes também na canção-jingle “Jurubeba” (jurubeba/beba) e em uma das mais recentes canções de Gil, a forte “Praga” (que eu deixo pra comentar ao fim desse texto).

Gil já praticou igualmente outro tipo formalmente sofisticado de rima, que se dá entre uma palavra e duas ou mais, em “Palco” (cântaro/cantar o), “Metáfora” (metáfora/meta fora) e “O Mar e o Lago” (O Mário Lago/O mar e o lago). E ainda uma outra – cujos termos, homofônicos homógrafos, apresentam contudo sentidos distintos – em grande parte responsável pela graça do refrão de “Punk da Periferia”; aqui, o “Ó” substantivo próprio é imediatamente seguido do “ó” interjeição: um caso, portanto, de rima rica (feita de palavras de classes gramaticais diferentes), tecnicamente falando.

No campo das rimas puras, simples e completas, há também a célebre “Flamengo/Realengo” (poucos substantivos em nossa língua possuem a terminação “engo”), de “Aquele Abraço”, canção de despedida do Rio de Janeiro – e do Brasil, antes da partida para o exílio em Londres, em fins dos anos 60.

Passagem especialmente destacável no rimário gilbertogiliano constitui-se o início de “Pessoa Nefasta”, onde duas sequências de rimas carregadamente aliterativas (uma em efes, esses e tês; outra em bês, esses e tês), algumas internas, como que exprimem, com aspereza, no plano fônico, o sentimento de repulsa e aversão pelo protagonista da canção: “Tu, pessoa nefasta / Vê se afasta teu mal / Teu astral que se arrasta / […]; / Tu, pessoa nefasta / Tens a a aura da besta / Essa alma bissexta…”

Exibindo uma carga mais leve e sutil, mas não menos impressionantes no efeito que causam, há as quase rimas, também aliterativas, que em versos de uma única palavra, sempre seguidos por um longo, estruturam a letra de “Extra”: “Baixa / […] / Acha / […] / Flecha / […] / Puxa / […] / Racha / […]” e “Baixa / […] / Rocha / […] / Bicho / […] / Brecha / […] / Deixa / […]”.

A propósito de aliteração, essa figura de linguagem tão cara a dois outros grandes poetas maiores de nossa música popular – Caetano e Chico – e que contribui notavelmente para a comunicação poética, mais um trecho a ser lembrado é o do delicioso verso de “Marcha da Tietagem”: “Pro mato, pro motel, de moto ou de metrô”. E, com mais virtuosismo ainda, este outro, do rock “Chuck Berry Fields Forever”: “Tambor de tinto timbre tanto tonto tom tocou”. Aqui, como no trecho citado de “Pessoa Nefasta”, a paronomásia adquire funções isomórficas, fazendo sons e sentidos vocabulares corresponderem-se biunivocamente. Ao empregar nada menos que dez tês num verso de catorze sílabas, Gil não teve outro objetivo senão o de mimetizar a sonoridade inebriante dos tambores “trazidos d´África para Américas de Norte a Sul”, do verso imediatamente anterior, que abre a canção.

Por falar em equivalência entre som e sentido (análoga à entre signo e significante), fenômeno que enriquece esteticamente qualquer verso, quando se trata de canção, arte resultante da combinação da música com a poesia, uma correspondência sempre desejável é a que se pode instaurar entre as frases verbais e as musicais: o casamento, enfim, de letra e música. Nesse aspecto, ganham relevo determinados instantes em que uma e outra coisa parecem falar exatamente a mesma linguagem.

Um caso antológico desses acontece em “Beatriz”, de 1982, como apontou o próprio autor da música, Edu Lobo, quando falou o que Chico Buarque fez, ao letrá-la. Colocando a palavra “chão” sobre a nota mais grave, e a palavra “céu” sobre a nota mais aguda da melodia pré-composta por seu parceiro, Chico estabeleceu assim o tão buscado casamento verbo-musical. É claro que tal procedimento colaborou, subconscientemente – isto é: profundamente – para a transmissão da emoção que o poeta quis passar.

Desde a publicação do comentário de Edu, o fato com certeza já foi várias vezes comentado por pessoas ligadas nesses detalhes internos do processo de composição de canções. Mas eu ainda não vi alguém observar que Gil fez a mesma coisa dois anos antes, em “Se Eu Quiser Falar Com Deus”, de 1980. Nessa que também virou um standard da moderna MPB, e em cujas linhas nosso poeta místico-religioso enumera com intensidade de sentimento as posições e atitudes reverentes que ele deve tomar para alcançar o que o título indica, ao final do verso “Tenho que lamber o chão” ele também canta “chão” sobre a nota mais baixa, e do verso “Tenho que subir aos céus”, também a palavra “céus” atinge no canto a nota mais alta da música.

Numa de suas mais recentes canções, “Praga”, feita para sua filha Preta Gil cantar (e para defendê-la de ataques ofensivos feitos covardemente pela internet), Gil escreve: “Que a tua boca suja na internet / Não me alfinete ou canivete nunca mais / Estou pedindo a Deus no meu tablete / Que delete os teus ataques virtuais”. Percebe, leitor, as rimas entre internet, tablete e (internamente) delete? E entre alfinete e canivete? Sim: rimas não só de som, mas também de sentido. Pois é, poesia é (também) isso. Num tempo em que, por força da força de um gênero – o rap – que privilegia o poético, a palavra “rima” se tornou sinônimo de “poesia” (de música), e “rimar”, de “fazer poesia” (cantada ou cantofalada), o poeta-músico Gil, septuagenário, mostra que segue rimando como sempre – e como nunca.

Caetano, em forma e com estilo

Publicado no jornal “Valor”, em 3-4-5/8/2012, sob o título “Caetano Veloso em forma e com estilo”

Se um jovem potencial poeta, para decidir-se pelo ofício ou arte da poesia cantada, precisasse da confirmação de que é possível se fazer poesia de verdade a partir da conjugação de letras e músicas, bastaria a ele ser apresentado à obra de Caetano Veloso. Assim como Bob Dylan, o seu “irmão” contemporâneo norteamericano, Caetano se tornou um grande poeta de nosso tempo, expressando-se no campo da canção popular, como compositor-letrista.

Que, sob o aspecto do fundo, do tema e do conteúdo, a amplitude e a profundidade poética de suas letras sejam facilmente comprováveis, parece não haver dúvida. Ao longo das últimas quase cinco décadas de obra (de suas sete de vida, que se comemoram agora), ele vem demonstrando constantemente ser o cantor libertário por excelência do Brasil moderno. Aquele por cujas canções passam, em visões agudas e interpretações finas, as transformações, os anseios e os problemas centrais de nossa sociedade nos campos social, político, estético, individual e comportamental.

No entanto, simultaneamente ao que ocorre no terreno dos significados, também nos domínios da forma e do estilo – no plano concreto da linguagem poética – evidencia-se e se confirma tal alto grau de qualidade poética aplicada à música. Cabem aqui alguns exemplos disso.

É notável a destreza com que ele maneja, exibindo um rigor espontâneo, formas poético-literárias há muito estabelecidas e praticadas, para além das redondilhas maiores de “Alegria Alegria” e menores de “Lua de São Jorge”. Assim, duas canções lindíssimas como “O Quereres” e “Cajuína” são feitas de versos metrificados de medidas mais longos e eloqüentes; a primeira, letra de longo fôlego, de oito estrofes de seis decassílabos cada, e a segunda, de uma única estrofe de oito dodecassílabos.

Ao mesmo tempo Caetano é capaz de incursionar com igual naturalidade em terreno mais movediço, o da vanguarda, escrevendo letras no limite entre a canção e o poema concreto, como “Julia/Moreno” e “De Palavra em Palavra”, ambas faixas de um disco deliberadamente experimental, “Araçá Azul”, de 1972 (a segunda, não à toa, dedicada ao poeta e amigo de sempre Augusto de Campos). E outras marcadas pela presença de palavras-valise, de inspiração joyceana, como a tropicalista “Acrilírico” (onde cintilam termos como “colírico”, “telástico”, “grandicidade”, “Santo Amargo da Putrificação”) e “Outras Palavras”, de 1981.

Nesta, em mais um texto de fatura extensa, reponta a última estrofe, toda ela construída com esses vocábulos compostos, inventados (usados pioneiramente por Lewis Carroll e posteriormente por James Joyce em seu livro formalmente mais radical, Finnegans Wake). De modo sugestivamente libertário, empregando termos de conotação sexual, Caetano a finaliza com essas – “outras” – palavras: “Lambetelho frúturo orgasmaravalha-me, Logun / Homenina nel paraís de felicidadania”.

Pelas referências eruditas que fazem, explícita ou implicitamente, várias letras suas correspondem ao que, no contexto literário, é chamado de cult poetry. Assim, numa simples e graciosa canção de amor como “Lindeza”, podemos nos deparar surpreendentemente com duas definições de beleza, uma dada pelo poeta romântico inglês John Keats (“Uma alegria pra sempre”, citação do célebre verso “A thing of beauty is a joy forever”), a outra pelo romancista realista francês Stendhal (“Promessa de felicidade”, da frase “La beauté n´est que la promesse du bonheur”).

O procedimento constitui um elemento do estilo de Caetano desde os tempos de tropicalismo, quando o refrão de “Os Argonautas” (“Navegar é preciso, viver não é preciso”) citou Fernando Pessoa – o “ele mesmo”, o de “Mensagem”. Outro escritor de língua portuguesa, o poeta maranhense Sousândrade, que na época do Romantismo viveu em Nova York e escreveu um espantoso poema épico mesclando índios sulamericanos e Wall Street, “O Guesa”, também é apropriadamente referido em “Manhatã”, na qual o cantor-compositor baiano rima “cunhã” com “Manhattan”.

De Sousândrade, poeta por longo tempo marginalizado e resgatado a partir dos anos 1960 pelos irmãos Augusto e Haroldo de Campos num importante trabalho de caráter revisionista, Caetano musicou um enigmático verso – “Gil-engendra em gil rouxinol…” – que dessa forma se transformou na canção “Gil Misterioso”. Outra musicalização de sua autoria foi feita para “O Pulsar”, de Augusto. É significativo que o trabalho – uma transposição, para a linguagem sonora, de um poema visual, empregando uma solução simples e perfeita – tenha sido elogiado por ninguém menos que o compositor norte-americano John Cage, ícone da música de vanguarda do século 20, e se tornado ainda por cima um hit (para os padrões da poesia experimental).

E como não pensar que o verso final da letra de “A Rã”, feita sobre música de João Donato, mais do que uma oblíqua alusão, seja uma espécie de tradução, para o plano musical, do superclássico haikai do sapo na água, de Bashô? É o que podemos depreender da observação feita pelo compositor, cantor, escritor e professor de Literatura Brasileira José Miguel Wisnik, que na frase “A rama, o sapo, o salto de uma rã” destacou a relação isomórfica, verbo-musical, que se estabelece quando a sílaba “sal”, de “salto”, é cantada uma nota acima daquela em que são cantadas as sílabas das demais palavras do verso. Tipo da correspondência existente na transcrição original do poema, em cujo desenho o salto é sugerido, numa relação de afinidade entre signo e significado própria da natureza do ideograma.

Aqui, que tal lançarmos um olhar um pouco mais fundo para o refrão de “A Luz de Tieta”? “Eta, eta, eta, eta / É a lua, é o sol, é a luz de Tieta / Eta, eta!”? Não bastasse o fato de que a rima, além de agradável aos ouvidos, é rica por se dar entre termos de classes gramaticais distintas (sendo uma delas uma interjeição, o que a torna ainda menos comum), há o fato de que, na escrita chinesa, o ideograma de luz é formado pela sobreposição dos ideogramas de lua e de sol… Não nos enganemos: Caetano é profundo mesmo quando não parece ser. Eis por que, quando ele não nos parece ser, exige de nosso olhar que assim seja: profundo.

É natural que, por essas e muitas outras, sua poesiamúsica seja objeto da observação e da admiração de poetas. Décio Pignatari, num pequeno livro chamado “Comunicação Poética”, chama a atenção, no verso “Acho que a chuva ajuda a gente a se ver”, para a aliteração de consoantes fricativas (ch, j, g), cujo som, chiado, parece sugerir o da chuva. Esses fonemas aparecem ao longo da maior parte da letra (como em seus versos-chave: “A gente se olha, se beija, se molha/ De chuva, suor e cerveja”), num frevo que afinal de contas trata do que diz seu título: “Chuva, Suor e Cerveja”.

Em “Sampa”, rebrilha a sonoridade das aliterações da linha: “Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas”. As em vês e efes, particularmente, como que acentuam a expressão do sentido do verso – que lembra os problemas da parcela da população com menos recursos –, já que seu modo de articulação em série representa certa dificuldade de pronúncia, por exigirem que a passagem do ar se dê por um espaço estreito do buraco da boca.

“Sampa”, diga-se, constitui uma síntese do que se está querendo dizer aqui. Como se não bastasse a intrincada construção de trechos como “E à mente apavora o que ainda não é mesmo velho / Nada do que não era antes quando não somos mutantes” (e o que dizer de “Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso”?), há ainda o caráter carregadamente alusivo de certos versos que os vincularia mais a uma poesia literária, erudita: “Tuas oficinas de florestas, teus deuses da chuva / Pan-Américas de Áfricas utópicas, túmulo do samba / Mas possível novo quilombo de Zumbi”.

É quase inacreditável que uma canção assim tenha se tornado tão popular como é. Deve ser motivo de orgulho para São Paulo que ela o seja. Da mesma forma que um poeta como Caetano tenha, entre nós, brasileiros, a popularidade que tem.

Em sons e sentidos, Caetano não tem fim

Publicado na revista “L’Officiel Brasil”, em agosto de 2012, sob o título “Outras palavras”

Existe uma coisa fundamental para a comunicação da beleza numa letra de música: a sonoridade das palavras. Além do sentido, é o som delas, cantadas, que faz uma canção nos arrebatar com um poder de sedução tal, que às vezes nem temos consciência do que fez com que nos encantássemos e nos persuadíssemos.

Entre dezenas de compositores muito bons nisso, há alguns, raros e caros, que já deixaram a sua marca indelével na história dessa arte. Cole Porter foi um deles. Um outro é Caetano Veloso. Esse velho sempre novo, agora com setenta anos, não se cansa de nos brindar com exemplos da mais aperfeiçoada combinação de palavras e sons em poesia de música. Em suas letras, a força e a graça poéticas não provém apenas do que é dito, mas também de como é dito. O que elas são deve muito ao como elas soam.

Inventivo por excelência, Caetano já começou desarvorando: foi dos primeiros a usar uma rima que até então nem era considerada rima em MPB, a toante (em que só as vogais rimam, não as consoantes). Rima de origem pop, empregada no rock´n´roll desde os anos 50 e no blues desde os anos 20 do século passado, nos Estados Unidos. E ao mesmo tempo erudita, introduzida em nossa literatura pelo poeta João Cabral de Melo Neto, que a assimilou da poesia de língua inglesa modernista.

“Alegria Alegria” está cheia delas: guerrilhas / bonitas, nome / telefone, preguiça /notícia. Nesse sentido, porém, uma outra canção do período tropicalista, a belíssima “A Tua Presença”, é paradigmática: as quinze palavras que nela rimam terminam em e-a, na maioria das vezes como toantes: cabeça, orelhas, presença, pernas, amarela, negra, janelas, motocicletas, reza, sangrenta… Mais tarde, ele forjaria outro clássico somente com rimas com a terminação i-o, quase todas toantes, “Oração ao Tempo” (“És um senhor tão bonito / Quanto a cara do meu filho / Tempo tempo tempo tempo / Vou te fazer um pedido”).

E o que dizer de rimas raras, novas, imprevistas, como mãe / champagne (em “Meu Bem, Meu Mal”)? Ou como rapte-me, adapte-me e capte-me ressoando, simplesmente, em up to me (em “Rapte-me, Camaleoa”)?

Ou então, mais sofisticadas ainda, aquelas que se dão entre uma palavra e duas ou mais, muito mais facilmente encontráveis em poesia inglesa e norteamericana por causa da estrutura do idioma, cheio de monossílabos. Em “Trilhos Urbanos” há a célebre rima interna dos versos “Pena de pavão de Krishna / Maravilha, vixe Ma-/ria mãe de Deus”. E, menos conhecidas, mas até mais abusadas, as de “Escândalo”, canção feita para Ângela Rô Rô cantar: sândalo / sã da lo(ucura), vândalo e escândalo / irmã-luz, manhã da luz e maçã da lux(úria) /escândalo.

Um fator a mais a chamar a atenção nessas rimas é o fato de a coincidência fônica não se dar entre os finais das palavras, mas entre o fim de uma e o começo de outra. Em matéria de rimário, Caetano é, sim, um luxo, um escândalo.

Melopeia é o nome que se dá para a modalidade poética na qual as palavras estão impregnadas de propriedade musical. As rimas desempenham um papel muito importante aqui, mas, além delas, há as aliterações – as sequências de fonemas caracterizados pela repetição de consoantes de espécies similares, que contribuem para a criação de um efeito sonoro esteticamente interessante. Também aqui Caetano exubera.

Lembremo-nos de um verso de “London London”, feita no exílio. Não bastasse o vigor da imagem que lança na imaginação do receptor – de notável força de síntese de um lugar e de um tempo, colaborando para a transmissão da emoção de um sentimento de profunda melancolia passada pela canção –, a sucessão das sílabas é de um poder encantatório: “Green grass, blue eyes, grey Sky, God bless [Silent pain…]”. Por quê? Por causa da sequência de três grs (além de um quarto gê) e de dois bls, além da proximidade de três ditongos, dois em ai e um em ei.

Outro verso antológico merece alusão aqui: “Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas”, de outro clássico, “Sampa”, de 1978. A Caetano podem ter ocorrido primeiramente os termos “nas filas, nas vilas”, e ele ter então sentido necessidade de completar a linha com um plus de inventividade, já que fila e vila, aliterando, já haviam sido usadas por Chico Buarque – outro gênio das aliterações – alguns anos antes, na absurdamente linda “Flor da Idade” (“A gente faz hora, faz fila, na vila do meio-dia/ Pra ver Maria”), que o baiano, com toda razão, adora e até já gravou. Nesse sentido, a complementação do seu verso foi genial, pois favelas vem complementar filas e vilas tanto em termos semânticos quanto sônicos, com suas sílabas em efe, vê e ele.

E em “Vaca Profana”, com suas referências a Madri e Barcelona, o que temos? Nada menos que essa marcadíssima sequência de pês (além de duas sílabas em enes e o atrito de ks com cas: “Napoli, Pino, Pi, Pau, punks / Picassos… ”. E em “A Rã”? Essa lindeza, remetendo ao célebre haikai de Bashô: “A rama, o sapo, o salto de uma rã”. Na qual ressalta não apenas a sucessão de ras, mas e sas, mas também os elementos anagramáticos de “rama” e “uma rã”.

Anagramas. Por falar nos tais, todo o refrão de uma composição dos anos 2 mil – “Zera a Reza” – é erguido, barrocamente, com exemplares deles: “Vela leva a seta tesa / Rema na maré / Rima mira a terça certa / E zera a reza”. Uma outra, dos 80, “Itapuã” – bela canção de reminiscências do início da vida amorosa com a primeira mulher do artista – traz o verso “Itapuã, tuas lamas, algas, almas que amalgamas”, em que a última palavra, “amalgamas”, literal, concreta e efetivamente amalgama os termos imediatamente anteriores – “lamas, algas, almas”…

(Em “Gente”, por sinal, ocorre algo semelhante no verso “Gente quer respirar ar pelo nariz”, em que o fonema “ar”, integrante de “respirAR”, entra literalmente – literalmente mesmo – “pelo nariz”, no meio, por dentro da palavra “nARiz”).

Indo mais longe, dos três anagramas do samba “Os Passistas” – cada um ocorrendo precisamente no mesmíssimo ponto de cada uma das estrofes –, dois constituem-se também em palíndromos: Roda / a dor e Roma / amor.

Assim como em termos de sentido, também em matéria de sons, Caetano não tem fim.

Bob Dylan Thomas

Publicado na “Folha de S.Paulo” (“Ilustrada”), em 5/3/2008, sob o título “Músico devorou poemas de fôlego”

Nos anos 60 Augusto de Campos viu em Caetano Veloso e Gilberto Gil dois sucessores, nos tempos modernos, dos trovadores provençais da Idade Média. Nos 70 Allen Ginsberg aludiu aos “bardos e menestréis” medievais a propósito de Bob Dylan (em “Songs of Redemption”, texto sobre as canções do álbum “Desire”).

Canções: assim eram chamados os poemas trovadorescos (um dos momentos em que a poesia e a música estiveram mais próximas), todos eles cantados. Não seria um despropósito anunciar o show que Dylan faz nesta semana em São Paulo e no Rio como um concerto de “canções” na acepção poético-literária do termo. Não é outra coisa senão uma sucessão delas cada apresentação sua.

Não se sabe exatamente o que ele canta: toda noite o repertório muda. Uns dois terços das músicas são antigas, entre elas exemplares daquelas coisas inefáveis, velhas conhecidas sempre vivas na memória e duráveis no tempo: “Like a Rolling Stone”, “It´s Allright, Ma”, “Blowing in the Wind”… De certo, isto: umas seis composições, que variam a cada show, são do novo disco.

“Modern Times” é uma obra da maturidade, uma reunião de “songs of experience” com certo pendor para tons graves, fazendo corresponder a voz do letrista e a do cantor hoje; para atmosferas misteriosas, noturnas, monólogos interiores e versos reflexivos, inclusive sobre o sentido da vida e o destino de cada um. Canções-pensamento. Nessa linha, baladas como “When The Deal Goes Down” e “Workingman´s Blues” constituem momentos tocantes.

Mas há também lugar para rock´n´roll (“Thunder on The Mountain”) e rhythm´n´blues (“Someday Baby”, “The Leeve´s Gonna Break”). Para canções de amor sobre mulheres difíceis; canções de trabalho rural; cenas da natureza. Para o comentário crítico-social e imagens como esta: “Algumas pessoas na estrada carregando tudo que têm;/ Algumas pessoas com pele bastante apenas para cobrir seus ossos”.

A força das imagens ainda é uma das marcas da poesia de Dylan, assim como a onipresença das rimas, as aliterações faiscantes e a eloquência, a abundância dos versos.

Ninguém escreveu letras tão longas antes dele (nem depois). Cole Porter, Ira Gershwin e Lorenz Hart as praticaram, mas elas não são regra em suas obras. Nem na de Woody Guthrie, menos ainda na de Robert Johnson, para citar duas grandes influências sofridas por Dylan.

De onde então ele as “tirou”? Da poesia dos livros. Na sua formação, o jovem que adotou seu nome artístico por causa de Dylan Thomas e incluiu Rimbaud em seu paideuma, ou altar, particular, se acostumou a devorar e a decorar poemas de longo fôlego, como contam as suas “Chronicles”, livro de reminiscências.

Em “No Direction Home”, o belo documentário de Martin Scorcese que, entre outros benefícios, está levando a nova geração a descobrir Dylan, Ginsberg faz uma revelação. Diz que, ao ouvi-lo pela primeira vez (cantando “A Hard Rain´s A-Gonna Fall”), chorou, “porque pareceu que a tocha havia sido passada para uma outra geração”.

Dylan já afirmou que não é poeta. Que poeta é (era) Ginsberg. Chico Buarque também já fez questão de dizer que não é poeta – que poeta são Drummond, Bandeira… Mas não adianta. Nós não acreditamos. Continuamos a vê-los também como poetas. Poetas populares da canção. Mestres da palavra cantada.

Preguiça qualitativamente produtiva

Publicado na “Folha de S.Paulo” (“Ilustrada Especial”), em 17/8/2008, sob o título “´Preguiça criadora´ gerou o mais original compositor brasileiro”

O que chama a atenção na obra de Dorival Caymmi, se comparada às de outros compositores brasileiros, é a sua relativamente pequena produção e o seu grande percentual de “standards”, isto é: de canções-modelo. Nesse aspecto, nem nosso maior compositor, Tom Jobim, o superou. À luz da informação estética, seria o mais original, pois o menos redundante.

Qualidade muita, quantidade pouca. Foram pouco mais de cem canções em cerca de 60 anos de atividade como compositor. Pudera. Uma (“João Valentão”) levou nove para ser acabada, outra (“Saudade da Bahia”) passou 12 na gaveta. Perfeccionista sem obsessão e sem esforço, Caymmi compunha “devagarinho” e “aos pedacinhos”, como chegou a dizer.

A esse método correspondeu uma atitude de descompromisso com o mercado e comprometimento só com o público. Caymmi raramente compôs por encomenda e sempre cantou menos pelas circunstanciais avaliações comerciais de sua arte do que pela sua disposição. Quis e ganhou o bastante para poder curtir o “dolce far niente” de uma “vida de artista” (ou o ócio do ofício…).

Aliás, foi para tirá-lo da vadiagem que seu pai, o funcionário público Durval, neto de italiano, lhe arranjou seu primeiro emprego no jornal “O Imparcial”, de Salvador, como auxiliar de escritório, aos 16. Mas a convivência com a música começava já em casa – onde o pai tocava piano, violão e bandolim, e a mãe cantava – e prosseguia na rua, nos festejos do povo baiano. Desse modo, da primeira composição, uma toada sentimental intitulada “No Sertão”, de 1930, às primeiras apresentações em rádio, em 1935, foi um passo. O salto ele daria em 1939, já no Rio e com uma coleção de canções sobre a Bahia na bagagem.

Com a sua “O que É que a Baiana Tem?” na voz de Carmen Miranda, Caymmi entrou em cena para não mais sair. A associação, se foi determinante para a projeção nacional dele, também o foi para a construção da imagem internacional dela – Caymmi lhe ensinou os trejeitos que se tornaram inseparáveis da sua interpretação. Em 40, saía o seu primeiro disco, com “O que É que a Baiana Tem?” e “A Preta do Acarajé”, em duo com Carmen.

Data do mesmo ano, e com outra cantora, Stella Maris, o início de uma parceria que duraria de fato até que a morte os separasse, e da qual resultaria a outra parte da sua herança musical: os filhos Nana, Dori e Danilo Caymmi.

Costuma-se dividir a obra de Caymmi em duas fases/faces principais. Na primeira, tendo como referente uma Bahia pré-industrial e idealizada, sobressaem as canções praieiras – obras-primas como “O Mar” e “O Vento”. A segunda, “carioca” e urbana, põe em relevo os sambas-canções em cujas harmonias se viu um prenúncio da bossa nova – jóias tipo “Marina”, “Só Louco”, “Nem Eu” etc.

Há quem acrescente uma terceira, definida pelo predomínio de canções com forte acento afro-religioso. É quando ele intensifica sua relação com o candomblé, assumindo obrigações sócio-administrativas como Obá de Xangô do terreiro Axé Ôpô Afonjá, em Salvador, em 1969. Ele e seus grandes amigos Jorge Amado e Carybé.

Na verdade, todas constituem expressões distintas de uma mesma e sempre presente baianidade. Até a chamada fase carioca. Nesta, os casos – e descasos – amorosos são tratados com uma doçura que quase não se nota num compositor do Rio. Quanto às dissonâncias harmônicas, elas já estavam lá, no violão do período marinho-soteropolitano; à época, diziam que ele tocava errado: “Mas eu sempre achei que havia beleza fora do acorde perfeito”.

Caymmi viveu em Salvador só até os 24 anos, mas, como disse Vinicius de Moraes, “é difícil encontrar alguém mais baianamente dengoso que ele”. De fato, o Rio, aonde chegou em 1938, foi a sua principal sede. No Rio, Caymmi fez as mais diversas amizades nos meios artístico e jornalístico. Da esquerda à direita; dos padrinhos de casamento Jorge Amado, que o chamava de irmão caçula, e Samuel Wainer, que o chamou para uma coluna sobre rádio no “Última Hora”, nos anos 50, a Carlos Lacerda. De Rubem Braga a Carlinhos Guinle, com quem, segundo outro amigo, Fernando Lobo, a parceria funcionava nessa base: Dorival entrava com a música, e Carlinhos, com o uísque…

Caymmi foi gravado pelos maiores intérpretes da MPB, de Elis Regina e Gal, que lhe dedicou um álbum em 1976; de João Gilberto, que recriou três músicas suas em plena bossa nova, a Gil e Caetano. Nenhuma dessas gravações, contudo, se compara ao próprio Caymmi se interpretando. Ele próprio era convencido disso. Não porque fosse vaidoso – coisa que ele, naturalmente, era. Mas porque tinha plena consciência de si.

Sua famosa e, segundo Amado, “criadora” preguiça inspirou a divulgação de histórias folclóricas e a criação de anedotas gozadas. Durante um tempo, se contou muito esta: existiriam três ritmos na Bahia: o devagar, o muito devagar e o Caymmi. Eu mesmo tive uma prova de sua lentidão.

Em 1994, eu coordenava a área de música do Museu da Imagem e do Som de SP e quis trazê-lo para um depoimento. Conversávamos muito, toda semana, por telefone, mas na hora de decidir vir, ele sempre dava uma desculpa. Numa dessas, chegou a me propor que eu ligasse para ele num dia para marcarmos então o dia em que eu ligaria de novo para marcarmos enfim o dia em que viria…

“Mais Provençais”

Publicado na “Folha de S.Paulo” (“Mais!”), em 7/8/2005, na coluna “Biblioteca básica”

Sou um leitor sobretudo de livros de ou sobre poesia. Além disso, escrevo letras de música, ofício que conjuga as artes das palavras e dos sons. Por isso, a obra do maior poeta brasileiro vivo, e o mais músico de nossos poetas, Augusto de Campos, teve um papel exponencial na minha formação. Por isso, um de seus livros de tradução, “Mais Provençais”, destacando as 18 canções do trovador Arnaut Daniel, tem um lugar especial para mim.

Ainda hoje me emociona a primeira publicação, artesanal, da obra, em folhas soltas, feita por um pequeno editor catarinense (Cleber Teixeira). Que poesia! Uma poesia libertária e transgressora, que colocava a mulher lá no alto, quando a regra era rebaixá-la. E que tradução! Tão brilhante que nos faz pensar que, para traduzir grande poesia, talvez só mesmo grandes poetas.

Grandes poetas escreveram a maioria dos livros mais importantes da minha vida: Pessoa (“Mensagem”), Drummond (“Reunião”), Cabral (“Obra Completa”), Haroldo (“Galáxias”), o próprio Augusto (“Poesia”), entre outros. Aqui, eu destaco “Mais Provençais”, por apresentar peças modelares de uma arte que combinou poesia e música de modo sublime, indelével. Arte de autores que, como sugeriu Augusto, acabaram tendo nos Porters, Dylans, Caetanos, Chicos e Princes os seus legítimos sucessores no tempo.

A obra: “Mais Provençais”, de Augusto de Campos, 160 págs., Companhia das Letras (esgotado).

A Pauliceia em 25 canções

Publicado na “Folha de S.Paulo” (“Revista da Folha”), em 25/1/2004, sob o título “25 músicas inspiradoras”

  1.  “Sampa” (Caetano Veloso) – É quase miraculoso que uma canção com tantas referências cultas tenha se popularizado a ponto se tornar o hino contemporâneo de São Paulo. Que este tenha sido composto (em 78) por um baiano (genial) é também muito significativo.
  2. “Trem das Onze” (Adoniran Barbosa) – Filho único, o sujeito tem de deixar a mulher porque a mãe o espera, em Jaçanã. O hino tradicional da cidade, do mais original dos sambistas paulistas. De 63.
  3. “Saudosa Maloca” (Adoniran Barbosa) – Nenhuma canção expressou como essa, de 55, os efeitos de uma violenta urbanização. Exemplo de uma inventiva linguagem macarrônica.
  4. “Ronda” (Paulo Vanzolini) – Canção de amor obsessivo (de 51) em que o eu-lírico feminino vislumbra no final uma “cena de sangue num bar da avenida São João”. Um dos sambas-símbolos da cidade, de outro criador maior no gênero em SP.
  5. “São São Paulo” (Tom Zé) – O tropicalismo, que só pôde mesmo acontecer aqui, teria que dar, em tons e cores típicas (e no calor da hora, 68), um hino de um outro baiano à cidade.
  6. “Augusta, Angélica e Consolação” (Tom Zé) – Radicado na concreta “cidade-city-cité”, o mesmo baiano nos deu ainda esse belo clássico de 73, em que trata as famosas vias como amantes.
  7. “Orra Meu” (Rita Lee) – O cara só larga da guitarra quando todo o bairro da Pompéia grita. O hino do roqueiro brasileiro, de 80, é coisa nossa; prova-o a expressão-título: tipicamente paulistana.
  8. “Fim de Semana no Parque” (Mano Brown) – O parque em questão é o Ipê, o Regina, o Santo Antônio, bairros da periferia que têm sua tragédia flagrada neste contundente rap de 93 dos Racionais.
  9. “Lampião de Gás” (Zica Bergami) – A graciosa e hoje clássica valsinha já surgiu, em 58, saudosa de uma São Paulo anterior, “calma e serena, que era pequena”.
  10. “Perfil de São Paulo” (Francisco de Assis Bezerra de Menezes) – Samba-exaltação de versos bem-construídos, igualmente nostálgico, datado de 53.
  11. “Samba do Arnesto” (Adoniran Barbosa) – Outro exemplo do humor e da singular linguagem adoniraniana. A história, de 55, se passa no Brás.
  12. “Tradição” (Geraldo Filme) – Samba (provavelmente sessentista) e sambista (negro) históricos de SP, cantando com muita força o Bexiga, o próprio samba e aludindo à Vai-Vai.
  13. “Sinfonia Paulistana” (Billy Blanco) – Conjunto de cançonetas, uma delas com uma melodia das mais identificadas com a cidade. Obra de longo fôlego de um paraense bossa-novista, de 74.
  14. “Lá Vou Eu” (Rita Lee e Luiz Sérgio) – Balada setentista locada “num apartamento perdido na cidade” de Sampa. Outra da “sua mais completa tradução”.
  15. “Sonora Garoa” (Passoca) – Tivesse sido lançada por Elis Regina (figurava no repertório do LP da cantora que não saiu), essa canção urbano-caipira de 81 talvez fosse um clássico hoje. A ser (re)descoberta.
  16. “Venha Até São Paulo” (Itamar Assumpção) – Irresistível convite feito em 93 por quem, nascido às margens do Tietê – em Tietê –, tinha mesmo que vir integrar a vanguarda paulistana.
  17. “São Paulo, São Paulo” (Wandy, Oswaldo, Marcelo, Claus e Biafra) – Declaração de amor e humor (perto do sarcástico) do Premê à metrópole, com uma pertinente paródia a “New York, New York”. Década de 80.
  18. “Pobre Paulista” (Edgard Scandurra) – Rock adolescente do Ira, de 85. Os versos são obscuros, mas o refrão é curto e grosso: “Pobre São Paulo!/ Pobre Paulista!”.
  19. “Pânico em SP” (Antonio Clemente) – Crônica dos Inocentes emblemática do espírito do punk bandeirante então (86) vigente.
  20. “Punk da Periferia” (Gilberto Gil) – Em 83, o grande mestre baiano vestiu a máscara poética do punkeiro nativo da Freguesia do Ó; não foi entendido (por punks da periferia).
  21. “Praça Clóvis” (Paulo Vanzolini) – Amor, ironia e um roubo de carteira no logradouro são os componentes de mais um complexo samba (de 67) do autor.
  22. “A Briga do Edifício Itália com o Hilton Hotel” (Tom Zé) – O título sinaliza o que está de novo em jogo: a imaginação tom-zeana. Safra de 72.
  23. “Paulista” (Eduardo Gudim e Costa Netto) – Samba de amor (de 88) tendo como pano de fundo a avenida e os Jardins.
  24. “Inverno (Anhangabaú da Felicidade)” (Zé Miguel Wisnik) – A mais poética e tocante composição relacionada com a cidade – e seus cidadãos sem cidadania – dos últimos anos (é de 2000).
  25. “São Paulo Gigante (25 de Janeiro)” (Tonico e Ariston Oliveira) – Não poderia faltar uma música caipira para ela e seu aniversário: ei-la, com Tonico e Tinoco.

Mais uma armação de Tom Zé

Publicado na “Folha de S.Paulo” (“Mais!”), em 18/3/2001, sob o título “As múltiplas faces do som”

No shopping center de variedades que é o vasto mundo do disco e do showbiz – o comércio de encantos da música popular contemporânea –, o que ele fez é um feito: depois de um grande disco, realizou outro grande disco. Pois é. Nem bem estávamos refeitos dos impactantes efeitos de “Com Defeito de Fabricação” (seu CD anterior) e mais uma vez Tom Zé nos pegou no contrapé: o lançamento de “Jogos de Armar – Faça Você Mesmo” (ambos pela gravadora Trama) constitui uma proeza, mais marcante ainda por ser inédita: trata-se da primeira obra discográfica realmente, literalmente, aberta já realizada por alguém no terreno da música popular produzida até estes dias, no Brasil e no mundo, pode-se dizer. Alguém tem notícia de um caso dessa natureza? É improvável.

Senão, vejamos. O artista prova que verdadeiramente preza a sua platéia: incita-a a participar da sua criação, a somar, a produzir também. Uma velha utopia artística dos anos 60 (o consumidor se tornar produtor) se concretiza no fim/começo de século. A tecnologia possibilita a materialização do sonho por meio de um “CD auxiliar”, “Cartilha de Parceiros”, algo antes imaginável, sim, mas quem o fizera?

Convém, no entanto, reconhecer a primazia não só dessa idéia em particular, mas também a inventividade, a originalidade, a simplicidade e a riqueza das idéias em geral. Como a dos instrumentos experimentais (armazenados há anos), os “instromzémentos”, cinco, finalmente fazendo a sua estréia em disco. De aspecto algo futurista, são todos bonitos e esquisitos (aos olhos e aos ouvidos), a começar (1) pela orquestra de herz, ou “hertzé”, um tipo diferente de sampler, de 78, “made in Brazil”: um sampler pré-sampler (o “hertzé”, como seu inventor ele mesmo diz, “é um som e uma sintaxe: funciona sintaxialmente”); (2) o buzinório; (3) o enceroscópio (eletrodomésticos como enceradeiras, aspiradores de pó, liquidificadores; microfones de contato captam não o ruído do motor, mas a vibração do metal); as canetas Lazzari (4); além (5) da serroteria (canos de PVC, madeira e outros materiais; um serrote faz o papel de arco de violino).

Mas afinal o que é tudo isso? Apenas a arte incorporando elementos trazidos pela vida (a mais benéfica das influências). No plano da composição, Tom Zé complexifica, aplicando o método da justaposição ao conceito comum de canção. Por vezes, as peças parecem se mostrar em múltiplas faces, cubista. Em matéria de formatos e gêneros musicais, dessa vez o eclético e inventivo compositor introduz em nosso léxico um novo ritmo-dança, o chamegá (como Luiz Gonzaga, o xaxado, em outra época; e entre outras formas de cruzamento (baião-acalanto, baião-lenda, samba-rap, chameguinho-choro), idiossincráticas e sincréticas, apresenta-nos a “maracapoeira” (maracatu no baixo mais capoeira no cavaquinho).

Ao mesmo tempo não deixa de traduzir uma tradição viva, a que ele se volta e que atualiza. Agora, intervém no Nordeste clássico, revisitando-o com uma versão esfuziante e energética de “Pisa na Fulô”, em que o forró se torna uma farra só e com a, possivelmente, mais diferente de todas (e são muitas) as releituras já forjadas de “Asa Branca”, em que baixo, guitarra e sanfona degeneram o baião, enquanto a zabumba o sustém.

Os arranjos retomam, como é habitual, sonoridades inabituais, instrumentações inusuais, vocalizações inusitadas, isto é: um bonitíssimo vocalise feminino simplesmente extasiante – “um orgasmo lógico-cartesiano-sonoro”, diz o seu fértil criador (em “Passagem do Som”); um deslumbrante som de assobios (em “Peixe Viva”), outra beleza fina nascida do cérebro do músico; cantos (em “Sonho da Criança-Futuro-Bandido da Favela, na Noite de Natal”) e outros acontecimentos sonoros paralelos de matizes e técnicas diversas.

As interpretações, inteligentes, estabelecem isomorfismos entre “motz et son”. Além disso, destacam as teatrais-criativas, funcionais, cômico-dramáticas vozes feitas pelo intérprete. “Last but not least”, há os ruidosos-musicais, bizarros sons dos “instromzémentos”.

A propósito, compósitos tomzeanos (compondo todo um refrão -o de “Desafio”, por exemplo) como “instromzémentos” colaboram para a valorização poética dos textos, instrumentalizados com recursos de várias espécies: aliterações e paronomásias (como os chamados “quebra-línguas” nordestinos, numa aprazível melopéia em “Conto de Fraldas”); “non sense” e trocadilhos (uma dúzia deles na série de “Jimi Renda-Se”); fragmentações vocabulares (“Chamegá”); e uma dezena de novas, cantáveis onomatopeias.

No plano temático, o tratamento mordaz, antipatético, sarcástico, de mazelas e tragédias nacionais, prostituição infantil, FMI, “globarbarização”, miséria… “Se eu pudesse atrasaria/ Esse relógio dois mil/ Pra rezar na primeira missa/ Pelo futuro do Brasil” (“Perisséia”, com Capinan). Aguda contundência. Inquietação. Humor crítico. Estranhezas. Sentido ético (e, contudo, auto-ironicamente, ele batiza tudo de “música do século passado”).

“Ele representa um novo pensamento cujas características talvez ainda não conheçamos; é alguma coisa que está prestes a chegar. Ele desenvolve um estilo muito próprio, algo que funde, pode-se dizer, praticamente todas as características que surgiram ultimamente na música, como a superação de certos dualismos, como consonância e dissonância, belo e feio. É um artista que não tem medo, que vai adiante, que apresenta uma arte capaz de transformar as pessoas que a consomem. Para mim, essa é a função principal do artista”, disse um Hans-Joachim Koellreuter emocionado (profetizou, é mais exato dizer).

Não admira, portanto, a admiração da rapaziada que o descobriu na década passada. Aos 64 anos, poucos permanecem tão novos (dirá talvez Augusto de Campos) como ele se mantém. Ou tão singulares (como provavelmente preferirá, por sua vez, Miguel Wisnik, o outro Zé da cena paulistana de Arrigo e Arnaldo a Tom Zé e Zé Miguel: de A a Z na paulicéia desvairada). De fato, quase ninguém se parece tanto apenas consigo mesmo.

Entre tantos gênios que produzem sob a inspiração que cai do céu, partindo sempre do zero, compondo célula por célula, na escuridão completa, totalmente sozinho, ele é um antigênio total. Mas genial. Com suas imperfeições (felizmente). Com suas contribuições e até com seus “arrastões” (como ele, com desconcertante franqueza, chama os seus empréstimos e apropriações). Com seus requintes e suas singelezas.

Tiremos nosso chapéu e aceitemos o convite que ele gentilmente nos faz com este recém-lançado CD. Arte e vida sorriem juntas, outra vez. O que o disco contém alenta, emociona, informa, sensibiliza, entretém. Esses “Jogos” causam prazer estético. Este, o maior, pode-se dizer, de seus méritos.

P.S.: Se não se trata de “bad boy”, “bom rapaz” também está longe de ser. Apocalíptico, sim, com certeza, é. Tom Zé: um eterno rebelde tropicalista, com Schoenberg, contraponto clássico e serialismo de um lado, Zeca Cachangá, Xanduzinha e “cê-cê de marré-deci” de outro.

Radicais MCs

Publicado na revista “Época” em 10/8/1998, sob o título“Radicais MCs – contundentes na forma e na temática”

A radicalização da violência social no Brasil não poderia deixar de ter sua expressão igualmente violenta e radical na música brasileira: os Ra¬cionais MC’s. Já vão longe os tempos em que Chico Buarque, nos anos 60, começou a obra que lhe renderia o epíteto de “poeta social” da MPB. Nos anos 90, os mais novos poetas so-ciais de nossa música atendem pelos nomes de Mano Brown e Edy Rock.

Comum a um e outros, há a ideolo¬gia, de esquerda. Em Chico, porém, existe um componente utópico que seria pouco provável num jovem de hoje – menos ainda em um da perife¬ria paulistana. De origem abastada, ele interpreta magistralmente uma tragédia a que assiste com envolvi¬mento e humanidade. Já os Racionais não apenas narram, mas são perso¬nagens reais desse filme de horro¬res que é o processo de miserabilização num país com um índice de desi¬gualdade quase sem igual no mun¬do. Mais importante: a par das signi¬ficações políticas e intenções de cons-cientização, suas letras são de alta qualidade artística.

Versos simples mas elaborados; ima¬gens claras e fortes; histórias bem desenvolvidas, personagens bem carac¬terizados. Uma poesia-vida usando a linguagem agressiva dos jovens ne¬gros de regiões pobres de São Paulo, entrecortada de gírias e palavrões, em raps de duração incomum. Sem concessões. Em processo de absorção, mas sem perder a contundência de seu dis¬curso político, poético. Éticos, os Ra¬cionais indicam a existência de digni¬dade em meio à vergonha nacional; ao descalabro. Não fosse tanta treva e tan¬ta sem-razão, talvez não houvesse Racionais. Se há Racionais, há luz.

Vocalização de Antunes coisifica sua poesia

Publicado na “Folha de S.Paulo” (“Ilustrada”), em 26/9/1997, sob o título “Antunes une forma e som”

O CD “Dois ou + Corpos no Mesmo Espaço”, acoplado ao livro homônimo, é mais uma pequena amostra do complexo conjunto de visões e vivências poéticas muito particulares em que consiste o instigante trabalho de Arnaldo Antunes, agora numa bem-sucedida transposição sonora.

Nele reencontramos, apropriadamente (isto é: estruturalmente) materializados no plano vocal, os mesmos elementos presentes na poesia de marcada caracterização visual de Antunes, como seus sugestivos jogos linguísticos e suas sintaxes rebeldes, de leituras simultâneas.

Assim, por exemplo, na peça-título, à medida que cada fonema é recortado, a pronúncia promove paradoxalmente a multiplicação de corpos-sílabas no espaço do som a que parece aludir a máxima do poema (“Dois ou mais corpos no mesmo espaço se multiplicam…”).

Do mesmo modo, na voz de Arnaldo soa, ou pressente-se, o ritmo irregular das ondas em “O Mar”. E o agá gagueja, quase silencia ou quase ecoa em “Agá”. Isomorfismo em poesia falada, correspondência íntima entre forma, sentido e som. No CD, os treze poemas viram palavras-coisas, como Sartre sugeriu que a poesia é.

Sob tais aspectos, o disco constitui mais uma experiência importante, depois do divisor de águas “Poesia é Risco”, de Augusto de Campos e Cid Campos. Só que, diferentemente deste, “Dois…” não emprega outro instrumento que não a voz.

Nesse sentido, eis, enfim, entre nós, um poeta com voz – clara, bela, firme, forte (melhor dizendo, um poeta com vozes, pois são várias as que usa). Quero dizer: um experto na oralização da palavra poética em suas dimensões cantada, falada, gravada, sampleada e editada.

O Brasil não possui uma tradição de leitura de poesia. Ezra Pound ou Dylan Thomas recitando seus poemas é algo maravilhoso, envolvente, impactante, não dando para dizer o mesmo de imensos poetas nossos como Drummond ou Cabral em suas próprias vozes. E se eles são “interpretados” por atores, aí podemos muitas vezes esperar pelo pior, estes pecando pelo excesso, aqueles, pela escassez.

Tal panorama começa a mudar. Quando o processo se consumar, a atuação de Arnaldo Antunes – com seu ótimo timbre, seu domínio do ritmo, seu ataque irresistível – terá sido decisiva ou, no mínimo, colaborado muito.

Por ora, não deixa de ser significativo que um dos mais promissores sinais dessa mudança parta de um poeta-vocalista, que se move na área da música popular. É também compreensível. O próprio “Poesia é Risco” é obra do mais músico dos poetas brasileiros das gerações anteriores.

Um senhor letrista

Publicado na “Folha de S.Paulo”(“Mais!”), em 1/12/1996, sob o título “A letra culta (e elegante) de Mr. Words”

Perto do centésimo aniversário de seu nascimento, no próximo dia 6, torna-se oportuno lançar aqui um olhar mais detido, ainda que rápido e algo digressivo, ao trabalho de Ira Gershwin (1896-1983), o letrista e parceiro de George Gershwin (1898-1937), no momento em que já se inicia nos Estados Unidos a série de comemorações que por dois anos celebrarão, até a data do centenário do nascimento de George, a imensa e valiosa herança prematuramente deixada por ele.

Se Cole Porter é sinônimo de sofisticação por tudo que, juntas, sua obra e sua figura, arte e vida, significaram, no plano mais estrito dos versos não seria fácil apontar quem supera quem em engenhosidade: se o autor de “You’re the Top” ou o co-autor de “The Man I Love”, “S’Wonderful”, “A Foggy Day”, “Fascinatin’ Rhythm” e tantos outros clássicos da música americana dos anos 20 aos 40. Ambos estão entre ”i migliori fabbri” da moderna palavra cantada.

Não à toa, Ira era chamado de “Mister Words” (Senhor Palavras), em complementação ao “Mister Music” (Senhor Música), George: é muito raro se encontrar um letrista tão elegante, culto, cônscio e praticante de um sem-número de requintes linguísticos.

Com Porter, Ira partilhou da visão do criar como algo difícil, a requerer esforço e trabalho. Em suas mãos, melodias sofreram um processo palimpséstico, em que várias letras foram escritas até chegar à forma definitiva. Tanto rigor valeu. Em termos de melopeia, a modalidade musical de poesia tão considerada por Ezra Pound, Ira simplesmente cintilou.

Favorecido pela plasticidade do inglês, criou versos de beleza encantatória, para os quais convocou os melhores efeitos aliterativos e paronomásticos. Como: “Music is the magic makes a gloomy day sunshiny”, na abertura de “I Can’t Be Bothered Now”. Ou este, anagramaticamente enriquecido: “I must win some winsome miss”, de “Oh, Lady, Be Good” – aliás, citada por Pound em seus “Cantos Pisanos”.

Munido de um conhecimento largo e um domínio pleno dos artifícios poéticos aplicáveis à música, Ira os empregava sempre para um maior refinamento de suas letras. Criando compostos e trocadilhos, verbalizando substantivos (“Ding dang it!”), empregando metásteses (“nosy cook/cosy nook”), ele as injetava de inventividade.

Por outro lado, em seu expressivo rimário impera e exubera, aqui e ali, a imprevisibilidade (“passion’ll/national”, “Napoli/happily”, “when you/menu”), sobretudo no uso de rimas leoninas, polissilábicas (“free’n’easy/Viennesey”). Neste campo, é raro, em se tratando de uma balada sentimental de grande popularidade, o caso de “Embraceable You”, quase inteiramente composta de rimas de quatro sílabas (entre elas a modelar “glorify love / ‘Encore’ if I love”).

Por tais características, o virtuosístico estilo ira-gershwiniano guarda parentesco com trabalhos de autores que na época exerceram, em sua vertente mais leve, a chamada ”light poetry”, entre os quais destacou-se por exemplo o nome de Ogden Nash. Uma diferenciação essencial, contudo, se impõe: os jogos verbais de Ira foram criados sobre melodias preexistentes, sendo assim a sua uma arte muito mais complexa, qual seja a de sobrepor, conjugando-os, palavras a sons.

Canção é o nome que se dá a essa arte, em que Ira é um mestre, alinhando-se, numa visão aberta, remotamente aos trovadores medievais, em particular os provençais, e aos cancionistas ingleses da era elisabetana; contemporaneamente a Porter e a Lorenz Hart (parceiro de Richard Rodgers); e posteriormente aos Dylans, Caetanos e Princes da música pop/popular de nosso tempo.

Quanto aos últimos e penúltimos: acaso seus trabalhos não seriam “sérios” só porque de entretenimento? Arnold Schoenberg, num texto sobre Gershwin, diz que, “sério ou não, ele é um compositor”. Para o inventor do dodecafonismo, o que caracterizava a seriedade de alguns compositores ditos “sérios” era apenas “uma perfeita falta de humor e de alma”. Gershwin, para ele, foi “um inovador”.

George foi vitimado por um tumor cerebral aos 38 anos, numa das mortes mais trágicas da história da música moderna. O que ele e Ira tinham até então criado, no entanto, bastou para configurar uma das grandes obras do século (obliquamente evocada na letra de “Love Is Here to Stay”, feita pouco depois que George morreu, e na qual Ira, a pretexto de fazer uma canção de amor permanente, parece aludir, homenageando o irmão, ao que os dois haviam construído juntos). O tímido e retraído Ira, que sempre cuidara dos negócios do irmão galante, extrovertido e namorador para que este levasse plenamente sua “vida de artista”, tornou-se então o guardião da sua obra. Ao mesmo tempo, seguiu compondo, com parceiros da estirpe de Kurt Weill, Jerome Kern e Aaron Copland.

A letra aqui apresentada não prima pelo artesanato elaborado predominante em Ira. De todo modo, constitui uma de suas vertentes mais inventivas, uma de suas “canções-invenções” mesmo, como o poeta Augusto de Campos a denominou em “Cole Porter – Canções, Versões” (de Carlos Rennó, Paulicéia, 1991), assinalando que ela poderia ter sido escrita por Oswald de Andrade – e quem sabe cantada por João Gilberto, o bissexto compositor de “Bim-Bom” e ”Hô-ba-la-lá”, eu acrescentaria.

Datada de 1931, “Blah, Blah, Blah” faz (com humor) uma crítica ao tema das canções-temas (de amor) dos filmes de Hollywood. Canção-piada, portanto; em cima dos clichês das ”love songs”. Aqui, na língua e na linguagem do poeta de “amor/humor”, num tributo ao espirituoso letrista americano. Afinal, ele também usou de humor – sutil, inteligente, irresistível – para falar de amor, tendo dito, em “Love Is Sweeping The Country”: “All the sexes/ From Maine to Texas/ Have never known such love before”… (Todos os sexos/ De Maine ao Texas/ Nunca conheceram um amor assim antes).

Blah, Blah, Blah
(George e Ira Gershwin)

I´ve written you a song,
A beautiful routine;
(I hope you like it.)
My technique can´t be wrong:
I learned it from the screen.
(I hope you like it.)
I studied all the rhymes that all the lovers sing;
Then just for you I wrote this little thing.

Blah, blah, blah, blah, moon,
Blah, blah, blah, above;
Blah, blah, blah, blah, croon,
Blah, blah, blah, blah, love.

Tra la la la, merry month of May;
Tra la la la, ‘neath the clouds of gray.

Blah, blah, blah, your hair,
Blah, blah, blah, your eyes;
Blah, blah, blah, blah, care,
Blah, blah, blah, blah, skies.

Tra la la la, tra la la la, cottage for two –
Blah, blah, blah, blah, blah, darling with you!

Blablablá
(versão de Carlos Rennó)

Eu fiz só pra você
Uma canção que é
Tão bonitinha;
A técnica aprendi
Nas músicas que ouvi
Lá na telinha.
As rimas todas das canções eu estudei;
E eis a coisinha linda que eu criei:

Blablablá, canção;
Blablablá, luar;
Blablablá, paixão;
Blablablá, no ar.

Tralalalá, tralalalalá, seu olhar em mim;
Tralalalá, tralalalalá, tudo, tudo enfim.

Blablablá, o céu;
Blablablá, a flor;
Blablablá, o mel;
Blablablá, o amor.

Tralalalá, tralalalalá, casa de sapê;
Blablablablablá, eu e você.

O poeta da canção Orestes Barbosa

Publicado na “Folha de S.Paulo” (“Mais!”), em 9/5/1993, sob o título “Orestes leva para canção os sinais do moderno”

Orestes Barbosa figura no primeiro time do elenco de compositores que atuaram naqueles anos douradíssimos da MPB, os anos 30 (do século vinte). É certo que suas composições não são tão populares quanto as de contemporâneos seus como Noel Rosa, Ary Barroso, Lamartine Babo. Embora de inspiração popular, seus versos têm um quê de aristocráticos no balanceamento entre um coloquia¬lismo menos comum e o uso de termos mais poéticos. Mesmo assim, bastaria citar uma criação sua para lhe atestar a importância como letrista e lhe assegurar um lugar no Olimpo dos compositores clássicos do Brasil: “Chão de Estrelas”. A canção, uma de suas parcerias com Sílvio Caldas, é das mais populares de todos os tempos entre nós, e das mais belas em imagens ricas de significado.

Na terceira de suas quatro estrofes, o flagrante fotográfico da favela constitui expressão-síntese de um espírito de época e de um momento histórico. Quantas ideias não podem suscitar aqueles versos que comparam os trapos estendi¬dos no varal a bandeiras agitadas, a um festival no morro onde todo dia e (era) feriado nacional?

Orestes Barbosa é um caso especial de letrista que legou uma obra conhecida por seu nome, independentemente de seus parceiros. Nesse sentido, antecedeu Vinícius de Moraes. Como Vinícius, conferiu prestígio à área da música com a literariedade de suas letras, elogiadas por intelectuais e poetas como Manuel Bandeira e Guilherme de Almeida.

Letrista consciente do fazer poético, poetizou a canção de seu tempo com versos da classe da letra-arte. Duas foram suas marcas registradas como elaborador e manipulador dessa linguagem: a inovação vocabular e a invenção imagética. No rebuscamento frásico, ele se alinha a predecessores como Candido das Neves e Catulo da Paixão – letristas lunares, tristes e enamorados como ele. Mas os suplanta de longe na incorporação de signos novos, com os quais urbanizou e modernizou o lirismo da época.

Motor; abajur, tapete, telefone; veneziana; biombo, apartamento, elevador, arranha-céu; reclames, anúncios luminosos; clichê, manchete; manteau, peignoir. Termos e temas tais foram introduzidos por ele, às vezes em remates deslumbrantes, como no caso dos “delírios nervosos/ Dos anúncios luminosos/ Que são a vida a mentir” , de “Arranha-Céu” .

Último romântico de sua época, em sua obra ele de fato reuniu a Zona Norte à Zona Sul do Rio, cantando casos em subúrbios e em bares, cassinos e cabarés da moda; idílios em barracos de morro e romances em elegantes apartamentos da cidade. Em geral suas letras expõem o sentimento, definido em sua “Torturante Ironia”, de quem “ama e não pode amar”. Paixões secretas, casos acabados, desejos insatisfeitos – o que nos confidenciam suas canções-queixas. Porém, mais que um enredo, o que elas destacam são versos sensorialistas, de forte apelo visual, sobres-saindo em alto-relevo:

“E triste escuto o seu riso/ E sem querer fiscalizo/ Tua vida no apogeu/ Ouço o chuveiro em cascata/ A água em fios de prata / É mais feliz do que eu” – canta ele, em “Bailarina”.

Poeta-pintor, “cenógrafo do samba”, na expressão de Mario Lago, Orestes Barbosa foi um incansável caçador de imagens imprevistas e desconcertantes. Visionário de ilusões fugidias, via a amada em situações insólitas, alucinadas: “E quando bebendo, espio/ Uma taça que esvazio/ Vejo uma visão qualquer/ Não distingo bem o vulto / Mas deve ser do meu culto / O vulto dessa mulher” (“A Mulher Que Ficou na Taça”); “Hoje ver o relógio me tortura / Os ponteiros são braços de mulher” (“Nestas Noites de Amor”). Ou, exagerado, jogado aos seus pés, em cenas de amor servil: “Mas eu sufocarei o meu soluço/ Se consen¬tires, boa como és, / Que o meu desejo, como um galgo russo,/ Possa humilde dormir junto a teus pés” (“Galgo Russo”).

Em canções mais felizes, a mulher era mirada e admirada em linhas delicadas: “Oh minha avenca nervosa/ De unhas pintadas de rosa/ E olheiras de tanto amar/ Olheiras de violetas/ Tarjando essas borboletas/ Noturnas do teu olhar”; seus lábios (“de doçuras”), comparados a “tâmaras maduras”, a boca, a “morango do meu jantar”.

Às vezes suas equiparaçõs tomavam feições simbolistas. À Lua, termo recorrente em suas letras, ele aplicou as mais diversas corporificações e simbolizaçõs. De “clichê dourado impresso em papel azul” a “gema do ovo no copo azul do céu”; de “lâmpada acesa da tristeza” a “mentira branca dos espaços”. Além destas – “hóstia de mágoa” e “freira do céu” – que poderiam até figurar em “Litanias dos Quatro Crescentes da Lua”, do genial Jules Laforgue.

Raramente no âmbito da palavra cantada o sentido plástico impregnou tanto o conjunto de uma obra.

Nos anos 60, estiveram na moda as canções psicodélicas, das quais “Voodooo Chile”, de Jimi Hendrix, constitui um caso exemplar de fanopeia pop. Influenciado pelo cinematografismo bíblico, Bob Dylan se tornou mestre nessa modalidade poética. Há pouco tempo, Prince, o mais fecundo e interessante letrista surgido de 80 para cá, nos brindou com essa deliciosa sequência de movimentos contrastantes: “When 2 are in love/ Falling leaves will appear to them like slow motion rain/ When 2 are in love/ The speed of their hips can be faster than a runaway train” .

Na estrofe final de “Chão de Estrelas”, a construção das imagens, passando pelo “salpicar estrelas” e culminando na frase “tu pisavas os astros distraída”, é precisa, perfeita: um dos pontos mais altos e luminosos já atingidos na poesia de canção. Em meu “Cole Porter – Canções, Versões”, depois de lembrar os usos renascentista e barroco de “pisar estrelas”, Augusto de Campos dá vantagem ao verso do “grande Orestes” ao cotejá-lo com outros, similares, escritos por Camões e Gongora. Alguns podem achar exdrúxula a comparação, já que Orestes não foi um poeta “propriamente dito”. Será?

“Muitos músicos não consideram George Gershwin um compositor sério. Mas eles deveriam entender que, sério ou não, ele é um compositor. Há um número de compositores, sérios (como eles acreditam) ou não (como eu sei), que aprenderam a juntar notas. Mas eles são sérios apenas em função de uma perfeita falta de humor e alma” – escreveu Arnold Schoenberg, para quem Gershwin foi um inovador.

Com alma e ténica, Orestes Barbosa foi um poeta da canção, porque mostrou que esta era sua linguagem natural, e porque nela expressou ideias originais, com simplicidade e singeleza. Mas sem levar em conta essas qualidades, não é possível reconhecer o seu valor, nem compreender a natu¬reza da arte da canção popular.

O letrista de música e o poeta de livro

“O poeta Orestes que eu mais aprecio não é o dos versos proclamados admiráveis por Hermes Fontes, Medeiros e Albuquerque e Agripino Grieco, mas o letrista de sambas e canções”, escreveu, com razão, Manuel Bandeira.

Aplaudidos no ambiente intelectualmente provinciano do Rio dos anos 10 e 20, pouco representaram para a literatura os livros de poemas de Orestes Barbosa, que trocou o mundo das Letras pelo das letras – de música – e aíse tornou realmente maiúsculo.

Seus versos são tão melodiosos e cantantes que às vezes tendem a nem ser cantados. Num dos programas da série que comemorou seus 50 anos, ano passado, Caetano Veloso cantava trechos de música de compositores antigos, cujos nomes lhe eram indicados na hora pelo jornalista Matinas Suzuki. Quando este disse “Orestes Barbosa”, Caetano não cantou, mas declamou a estrofe inicial de “Arranha-Céu”.

O fato, também, é que seus versos chegam a superar as melodias. Sem o concurso delas, eles perderiam muito de sua função e de seu poder de fixação, mas com certeza foram as letras, não as músicas, que conduziram o processo de composição das canções. Às vezes, as melodias parecem servir de moldura para os quadros que os versos pintam. Dois fatores concorrem para isso.

Um: as letras de Orestes são dispostas em formas fixas, definidas por quadras ou sextilhas (seguindo sempre um esquema de rimas AABCCB) divididas em decassílabos ou redondilhas maiores.

Dois: seus principais parceiros – e intérpretes – eram mais cantores que compositores: Sílvio Caldas e Francisco Alves.

Com o “Caboclinho Querido” (um dos inspiradores do verso “Eu vi muitos cabelos brancos na fronte do artista”, de “Força Estranha”, de Caetano), Orestes consolidou o gênero da seresta.

Mas ele trabalhou também com vários outros parceiros, alguns deles compositores de primeira linha. Como Ataulfo Alves e Wilson Batista, em sambas tematizando a negritude – “O Negro e o Café” e “Abolição”, respectivamente. E Custódio Mesquita, “darling” dos músicos, com quem fez “Flauta, Cavaquinho e Violão” (samba-choro que foi sucesso com Aracy de Almeida), “Gato Escondido” (marcha, com as Irmãs Pagãs) e “Nestas Horas de Amor” (valsa).

Com Noel Rosa, criou “Positivismo”, onde prevalece a veia irônica do poeta de Vila Isabel, que gravou o samba e, ao que tudo indica, influenciou também a feitura de “Caixa Econômica”, o mais noelino e bem-humorado dos sambas de Orestes, composto com Nássara e gravado por Luiz Barbosa.

Outros parceiros: Benedito La¬cerda (“Manchete de Estrelas”), Vicente Celestino (“Altar de La¬ma”), J.Tomas (“Verde e Amarelo”), Oswaldo Santiago (“Bangalô”), Newton Teixeira (“Tens Razão”), Valzinho (“Óculos Escuros” e “Imagens”).

Na década de 70, estas duas últimas músicas foram magnificamente recriadas, a primeira por Paulinho da Viola, a segunda por Jards Macalé – numa notável in-terpretação registrada no LP “Aprender a Nadar” (1974), momento excepcional de sua carreira, quando lançou com Waly Salomão a onda da “morbeza romântica”, que alguma coisa deveu a Orestes.

Os Mutantes já tinham realizado uma versão irreverente de “Chão de Estrelas”, em 1970. E Caetano a havia reverenciado, citando-a em “Como Dois e Dois” (“A mesma porta sem trinco/ O mesmo teto/ E a mesma lua a furar nosso zinco”). Anos mais tarde, Augus¬to de Campos reutilizaria os termos “barraco”, “trinco” e “zinco” tirados da canção, ao verter um poema do livro “Hugh Selwyn Mauberley”, de Ezra Pound. A tradução acabou sendo musicalizada com muita sensibilidade por Passoca, em 1984 – três anos depois de Arrigo Barnabé ter entoado o trecho inicial de “Arranha-Céu”, em “Diversões Eletrônicas” (do histórico disco “Clara Crocodilo”).

Joyce em John Lennon

Publicado na “Folha de S.Paulo” (“Ilustrada”), em 5/10/1992, sob o título “Bob Dylan levou Lennon à letra-arte”

A presença ostensiva da expres¬são “I love you” nos refrões de “Love Me Do” e “P.S. I Love You”, de Paul McCartney, é somente um dos indicadores do lugar-comum poético dessas canções. Em suas letras, contudo, colocam-se vários outros que também John Lennon escreveria apenas “profissionalmente”, sem ambições artísticas, no período inicial dos Beatles. Um fato, po¬rém, mudaria radicalmente a vi-são de Lennon sobre a importân¬cia do texto na música: o reconhe¬cimento da qualidade poética das canções de Bob Dylan.

Dylan: desde Cole Porter e Ira Gershwin a poesia popular canta¬da de língua inglesa não alçava voos tão altos, de imaginação e inventividade. À época, Lennon, popstar intelectualizado, já tinha escrito dois livros, num deles incursionando ludicamente pela linguagem chamada de invenção – “Um Atrapalho no Trabalho” (na tra¬dução de Paulo Leminsky). Para ele, porém, a palavra só podia adquirir expressão estética em li¬teratura, não em música pop. Com Dylan, encarnação supermoderna do bardo, gênio indiscu¬tível, Lennon descobriu a letra-ar¬te. E percebeu que uma canção, além de voar, poderia transmitir belezas e verdades (especialmente as próprias) através de sua letra.

Mas, ao contrário do metafóri¬co, profuso e às vezes obscuro Dylan, Lennon definiu-se pelo de¬sign mais nítido, a expressão cla¬ra, direta e objetiva. Fez mais sucesso por isso, mas nem por isso foi mais simples. Sua “enga¬nosa simplicidade” (Glauco Mattoso) pode ser atestada por um exame cuidadoso de, por exem¬plo, “Julia” (atentar para suas sutilezas estruturais e suas ambi¬guidades), em homenagem a sua mãe, mas também em referência a sua mulher, Yoko (“ocean¬child”). Escrevendo na primeira pessoa, Lennon sempre falou dele mesmo em suas letras, de suas experiências. Do drama existen¬cial de “Help” às memórias de “In My Life” e “Strawberry Fields Forever”. Do psicodelismo pioneiro de “Tomorrow Never Knows” até os hinos contracultu¬rais “All You Need Is Love” (antibélico) e “Revolution”.

“A Day In the Life” pode ser considerada, se se pensar em “Ulisses”, a mais joyceana de suas letras. Mas onde ele mais explicita suas referências literá¬rias, radicalizando no experimen¬talismo (pelo surrealismo e pelo uso das palavras-va¬lise inventadas por Lewis Car¬roll – e radicalizadas em Joyce), é em “I Am the Walrus”. Não parou por aí. Em “Across the Universe” traçou uma bela sequência de “lances de imagens sobre o intelecto” (fanopeia), de inspiração cósmico-religiosa, ao mesmo tempo em que refletiu sobre o ato poético-criativo. E em “Come Together”, uma livre-as¬sociação imagética que beira a incomunicabilidade, e onde o sen¬tido importa menos que o som, salvo no refrão, uma ce1ebração ao orgasmo simultâneo.

Paul não foi tão longe, é óbvio – seu negócio era mais música mesmo –, mas deu sua contribuição, especialmente como contador de histórias, na terceira pessoa. Basta dizer que foram dele a ideia e o desenvolvimento da maior parte de “Eleanor Rigby” e “She’s Leaving Home”, para¬digmática da adolescente que foge de casa. E que ele fez sozinho “The Fool On the Hill”, a lindís¬sima “For No One”, “Hey Ju¬de” e “A Little Help From My Friends”(que melodias!).

As palavras das canções de Lennon e McCartney representa¬ram o contraponto verbal à revo¬lução que os Beatles detonaram nos planos musical, comportamental e mental de sua geração. É certo que mesmo as melhores letras do grupo não exibiram a engenhosa sofisticação das que Cole e Ira fizeram nos anos 30: seria uma repetição. Mas enrique¬ceram demais o repertório geral com temas, formas e imagens até então inéditos. E serviram para colocar Lennon, ao lado de Dylan e também de Jim Morrison, entre os maiores músicos-poetas dos 60 e de todos os tempos.

Engenho e arte nas letras de um gênio

Publicado na“Folha de S.Paulo” em 12/4/1989, sob o título “Letras reúnem o clássico e o pop”

Na história da música popular desempenha um papel fundamental a produção dos principais compositores de canções norte-americanos dos anos 30 e 40, como George e Ira Gershwin, Rodgers e Hart, Irving Berlin, Cole Porter, Johnny Mercer. São eles os Bachs, os Beethovens, os Mozarts, os clássicos autores dos grandes clássicos do gênero. Nesta constelação, um lugar especial cabe a Cole Porter.

Graças ao seu estilo e à sua técnica de ajustar letras elaboradas a melodias relativamente (embora nem sempre) simples, Porter elevou o nível do texto da canção popular a uma alta potência poética, alcançando ele próprio como letrista um grau de sofisticada criatividade em momentos comparável mesmo ao de poetas da área erudita.

Quem quiser provar isso na prática, pode tentar verter algumas canções suas que impõem desafios que só poemas eruditos impõem. Nelas, sem prejuízo da naturalidade, Porter usa recursos que as tornam ainda mais agradáveis à medida que reouvidas: rimas imprevistas, internas, polifônicas; construções ele¬gantes, trocadilhos, enumerações, ambiguidades, paronomásias requintadas e imagens ricas, em temas amorosos tratados com charme e inteligência.

Da supermoderna obra-prima pop “You’re the Top” (uma das maiores – 135 versos mais a introdução e uma estrofe paródica – e melhores letras já escritas) a uma certa “It Was Written In The Stars”, suas mais de 800 canções configuram uma produção marcada mais pela personalidade que pela pessoalidade (tudo foi feito para trilhas da Broadway e Hollywood) e uma obra que excede em quantidade e qualidade. Cole Porter não tem fim.

A proezia de Haroldo de Campos

Publicado na “Folha de S.Paulo” (“Ilustrada”), em 23/10/1984, sob o título “A proesia de Haroldo de Campos”

Em 1963 o poeta Haroldo de Campos imaginou um texto no limite entre a prosa e a poesia, uma escrita que realizasse aquilo que propunha em teoria: a ruptura entre gêneros. Hoje, com uma bela edição da Editora Ex Libris, realizada pelo artista plástico Frederico Nasser, a obra vem a público finalmente encerrada num volume próprio. Chama-se “Galáxias”, e o lançamento está marcado para as 20 horas, na livraria Brasiliense (rua Oscar Freire, 561, em São Paulo).

A ideia da viagem como livro e do livro como viagem norteia a obra no seu todo e abrange outras constantes de “Galáxias”. Muitas são suas personagens e alusões, mas todas elas se entrelaçam por meio daquela que é, na verdade, a sua principal personagem: a própria linguagem. É através desta que o livro propõe e faz sua própria viagem. Entre a prosa e a poesia. Via proesia. Nesta entrevista o autor aborda alguns aspectos da sua obra.

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— Folha – O que o levou, há mais de vinte anos, a esboçar um livro no qual enveredasse por um tipo de prosa, “feita de limalha de prosa” e no limite com a poesia, retomando um lado barroco pertencente ao início do seu percurso textual?

Haroldo de Campos — Desde longa data eu vinha me preocupando com o problema da ruptura dos gêneros na literatura contemporânea, da rarefação dos limites entre poesia e prosa, e também entre ficção e ensaio crítico, entre o exercício ficcional e o exercício metalingüístico da escritura. Em 1962, escrevendo sobre Guimarães Rosa (“A Linguagem do Iauaretê”), como em 1964, ao publicar o meu estudo introdutório à reedição das “Memórias Sentimentais de João Miramar”, de Oswald de Andrade, eu tive a oportunidade de deter-me sobre o assunto. Em 1970, dei formato mais completo a essa reflexão, dedicando-lhe todo um ensaio, primeiro publicado numa obra coletiva auspiciada pela Unesco e depois editado em livro autônomo, “Ruptura dos Gêneros na Literatura Latino-Americana” (Perspectiva, 1976). Neste meu trabalho, referia-me ao Barroco, pelo fusionismo que lhe é próprio, pelo hibridismo de línguas e culturas que o caracteriza, como o momento embrionário, em nossa América, dessa rebelião contra a normatividade clássica dos gêneros. De um Barroco moderno, das possibilidades criativas de um neo-barroco, oposto à obra de arte clássica “perfeita”, do “tipo diamante”, eu já vinha falando desde 1955, em meu artigo-manifesto “A Obra de Arte Aberta” (que antecipou de alguns anos o livro quase homônimo de Umberto Eco…). No meu caso, o fascínio das questões teóricas está sempre ligado à minha prática de escritor, ao meu fazer poético. Em 1952, eu havia escrito “Ciropédia ou a Educação do Prínci¬pe”, um poema em segmentos ou blocos de prosa rítmica, onde o texto é a todo momento “hibridiza¬do” por intervenções neológicas, por fraturas e remontagens verbais. Daí à “prosa feita de limalha de prosa” o percurso foi-se impondo necessariamente, quase que por uma exigência interna do meu trabalho. Aliás, no curso de elaboração das “Galáxias”, aproveitei para fazer uma defesa e ilustração do hibridismo textual num fragmento paródico, em que um travesti é perseguido desabaladamente pela rádio-patrulha romana, defensora censória da normatividade dos gêneros…

— No começo dos anos 60, enquanto seus poemas davam prosseguimento ao experimento concreto, você já parecia inaugurar um caminho mais pessoal, não antagônico mas diferen¬te do programado pelo grupo (liderado por você, Augusto de Campos e Décio Pignatari) enquanto movimento. Nos rascunhos e nas feituras das primeiras páginas de “Galáxias” já não estava a gênese de uma fase posterior, pós-concreta?

HC — A poesia concreta responde a uma das vertentes da minha personalidade, as “Galáxias” respondem a outra. Que elas tenham podido coexistir, é algo que me demonstrou a inexistência de uma oposição antagônica entre barroquismo e construtivismo. Como o demonstram, no nível plástico, Ouro Preto e a arquite¬tura de Brasília. Não se teria sido possível, por outro lado, sem a experiência de rigor e controle do acaso da poesia concreta, disciplinar o turbilhão barroquizante que a escritura galática desencadeia. Pulsão e contenção são os dois polos dialéticos que regem o “Livro das Galáxias”, que eu gostaria de definir, meio-sorrindo, como um manual de cosmonáutica textual…

— O projeto original de uma prosa especial acabou se resolvendo num texto cuja concentração lhe deu mais um caráter de poesia do que propriamente de prosa. Como se processou essa transformação que resultou num texto com aparência de prosa mas que, no fundo, está mais para um poema longo?

HC — A escritura galática foi para mim um gesto épico que se resolveu numa epifânica. Na epifania, a visão prevalece sobre a ação. Quero dizer que o narrar – o gesto narrativo próprio da prosa – deixou-se levar de roldão pela proliferação de imagens, pela voragem fônica, pelas fosforescências de uma semântica móvel que o contagia dos significantes é capaz de suscitar e sustar, com a vertiginosi¬dade de um videoclipe. Afirma Walter Benjamin que, para os românticos alemães, a ideia (entenda-se, o método) da poesia foi a prosa. Para eles, pode-se dizer, o romance foi a alternativa “poética” da epopeia clássica. Para mim, a epifânica, aparentemente conduzida em prosa, foi o modo de lidar com o problema do poema longo, com a possibilidade (ainda que fragmentária) de uma épica moderna. Um gesto estratégico também, face ao rigor projetual da poesia concreta), que definia a poesia propriamente dita em outros termos, coerentemente marcados, à época, por uma estética “minimalista” radical, à Webern e à Mondrian.

— “Galáxias” propõe uma leitura não contínua nem metódica, mas livre, aleatória, ao sabor de uma fruição suscitada pelo desejo, como um texto para ser curtido com e por prazer. O que você tem a dizer sobre isto e sobre uma possível relação entre o seu e aquele a que Roland Barthes se refere como um “texto de prazer”?

HC — Entre os críticos franceses ligados ao momento estruturalista, Roland Barthes foi certamente aquele que melhor compreendeu e abordou os textos de ruptura, marcados pela inovação no plano da linguagem. De fato, a experiência das “Galáxias” aspira a ser, no sentido barthesiano, um “texto de prazer”. Lembro-me que em “S/Z”, livro publicado em 1970, Barthes usa da expressão “galáxia de significantes” para definir o que ele chama “texto-plural” (por oposição ao texto “clássico”, “legível”). E acrescenta: esse texto “não tem começo; é reversível; nele se ingressa por múltiplas entradas, nenhuma das quais pode ser, com segurança, considerada principal; os códigos que ele mobiliza se perfilam a perder de vista, são indecidíveis (…); desse texto absolutamente plu¬ral, os sistemas de sentido podem apossar-se, mas seu número jamais será fechado, tendo por medida o infinito da linguagem”. Por um programa semelhante – por uma análoga miragem? – se norteavam as “Galáxias”, quando comecei a escrevê-las, em 1963…

— Em “Galáxias” a fugacidade e a velocidade das imagens e lembranças, em sequências cinematográficas, sugerem uma correlação com um fluxo livre de pensamento e mesmo de inconsciente. Ao mesmo tempo percebe-se que tudo foi submetido a um controle rigoroso e minucioso da linguagem. Pelas indicações ao final do livro, nota-se que alguns fragmentos-páginas foram escritos em um só dia, outros em um mês ou mais. Com que pique você produziu “Galáxias”? Em que medida espontaneidade e elaboração ¬– possivelmente uma incitando a outra – incidiram no ritmo do seu fazer?

HC — De fato, o ritmo de composição do texto variou, da pulsão instantânea à elaboração mais lenta, espraiada por um arco de tempo mais longo. Alguns fragmentos surgiram de jato; outros foram-se montando aos poucos. Deixei alguns de lado, depois de prontos, quando não me satisfaziam de todo, para repensá-los depois, no conjunto, no organograma geral. Tratava-se de controlar o acaso, de “organizar o delírio”, para usar uma expressão do compositor francês Pierre Boulez. Para tanto, interiorizei no meu processo escritural de¬terminados dispositivos seletivos, em nível sintático e em nível fono-semântico, que me permitiram um trabalho minucioso sobre a lingua¬gem, ainda nos fragmentos aparen¬temente mais “espontâneos”, naque¬les mais vertiginosamente visionári¬os… Por outro lado, não devemos nos esquecer que Lacan, radicalizando Freud, insiste em que a estrutura do inconsciente é a estrutura da lingua¬gem e que a “lei do paralelismo do significante”, lei “cujo concerto rege a primitiva gesta eslava e a mais refinada poesia chinesa”, é funda¬mental para a compreensão dessa estrutura… Também o inconsciente, enquanto efeito de linguagem, obede¬ce a uma poética implícita…

— Traçando um paralelo com a música, sua obra pode ser vista como uma sofisticada e complexa peça erudita de vanguarda. Simulta¬neamente, há momentos de uma linguagem simples e direta que remete à da poesia mais popular, a cantada. O que você tem a dizer sobre isto?

HC — As “Galáxias” têm muito a ver com a música, seja a erudita, de vanguarda, seja a popular. Já mencionei Pierre Boulez, de quem tirei a ideia dos formantes (as páginas inicial e final, impressas em itálico) que balizam o texto como polos rotativos, cambiantes, que falam reversivelmente de fim e de começo, engendrando o jogo da viagem. Isto do ponto de vista da estrutura, da integração e controle dos elementos aleatórios, por exemplo. Mas envolvem também um canto, um cantar, no qual não deixam de reverberar as invenções espontâneas de nossos can¬tadores populares (cuja “virtuosida¬de por vezes deslumbrante”, combinando improvisação com “modelos exatamente codificados”, é ressaltada por um estudioso do porte de Paul Zumthor no seu recente livro dedica¬do às formas da poesia oral em várias culturas e povos). Claro, nem é preciso falar das afinidades com a nossa música popular urbana, de Caetano, Gil, Walter Franco, Arrigo…

— Com os romances de invenção oswaldianos “Memórias Sentimentais de João Miramar” e “Serafim Ponte Grande”, “Galáxias” guar¬dam uma relação tanto ao nível formal como ao temático, residindo nas referências às viagens o princi¬pal ponto de comparação quanto ao segundo aspecto. Eu apontaria uma outra constante temática nestas obras: o erótico. Como na linguagem daqueles livros de Oswald, a de “Galáxias” exubera em alusões sexuais e sensuais, e promove também uma leitura erótica do mundo e da vida. Você concorda?

HC — É certo. Mas a temática da viagem, do périplo, da mobilidade perene se dá, nas “Galáxias”, no nível dos significantes, permanentemente imantados de significado, de semântica – mas de uma semântica evasiva, fugidia, como uma “aura” ou uma fata morgana. Os “microenredos” proliferam: se anunciam e desaparecem, como miragens. A ficção é objeto de ilusão e elusão (o que cria um certo “suspense” detetivesco, segundo me observou uma vez Anatol Rosenfeld). O trabalho no nível do significante (da materiali¬dade da linguagem) tem alguma coisa de corpóreo. O verbal é um corpo, quase táctil. Daí essa erótica do texto, que você observa. Pois, como está expresso num dos fragmentos galáticos, “a linguagem é lavagem é resíduo de drenagem é ressaca e é cloaca e nessa noite inócua é que está sua mensagem…”