“Ecos do ão”
ENQUANTO ECOA pelo país o “Pentacampeão!”, minha mente viaja e se lembra de uma bela letra da moderna canção brasileira, “Ecos do Ão”, de Lenine e Carlos Rennó: “Rebenta na Febem rebelião/ um vem com um refém e um facão/ a mãe aflita grita logo: não!/ e gruda as mãos na grade do portão/ aqui no caos total do cu do mundo cão/ tal a pobreza, tal a podridão/ que assim nosso destino e direção/ são um enigma, uma interrogação/ e, se nos cabe apenas decepção,/ colapso, lapso, rapto, corrupção?/ e mais desgraça, mais degradação?/ concentração, má distribuição?/ então a nossa contribuição não é senão canção, consolação?/ não haverá então mais solução?/ não, não, não, não, não…/ (…) mas, se nós temos planos, e eles são/ o fim da fome e da difamação/ por que não pô-los logo em ação?/ tal seja agora a inauguração/ da nova nossa civilização/ tão singular igual ao nosso ão/ e sejam belos, livres, luminosos os nossos sonhos de nação”.
Quanto ao conteúdo, a letra dispensa comentários. Como diria Belchior, “ao vivo, é muito pior”. Concentremo-nos, pois, num dos aspectos formais do texto. O leitor certamente notou que à triste e dura temática foi associado um dado linguístico importante: o “ão” (“tão singular igual ao nosso ão”). Eis um belo exemplo de como é possível unir forma e conteúdo. Em outras palavras, os autores pregam a idéia de que a solução de nossos problemas deve ter nossa marca.
Mas o “ão” nem sempre é solução. Guimarães Rosa já dizia que “pão ou pães, é questão de opiniães”. Em rigor, Guimarães tem razão, uma vez que são as “opiniães” dos usuários que estabelecem que o plural de “mão” seja “mãos”, que o de “cão” seja “cães” e que o de “coração” seja “corações”.
Mas a coisa nem sempre é tão simples assim. Atire a primeira pedra aquele que nunca se viu perdido diante do plural de alguma palavra terminada em “ão”! Genericamente, essas palavras fazem o plural em “ões” (portão/ portões, sabão/sabões etc.), mas não são poucas as que o fazem em “ães” (alemão/alemães, pão/ pães) ou “ãos” (grão/grãos, mão/ mãos). Na dúvida, a melhor saída é mesmo um dicionário.
Bem, sobre essa história do “ão”, parece conveniente pôr o dedo numa questão importante: se o “nosso” da letra de “Ecos do Ão” (“tão igual ao nosso ão”) se refere à língua dos brasileiros, refere-se à de todos os lusoparlantes. Posto isso, não resisto à tentação de lembrar que, em Portugal, terminam em “ão” (“protão”, “eletrão”, “neutrão”, oxítonas) algumas das palavras que no nosso português terminam em “on” (“próton”, “elétron”, “nêutron”). Como se vê, as “opiniães” vão mais longe do que supomos.
Para encerrar, duas palavras sobre “pentacampeão” etc. Mal terminou o jogo contra a Alemanha, o pessoal de rádio e televisão se pôs a falar do “hexa”. “Hexa”, que vem do grego e significa “seis”, está presente em vários termos técnicos (“hexápode”, “hexágono”, “hexagonal” etc.). O problema é a pronúncia: o “Aurélio”, o “Vocabulário Ortográfico” e o dicionário de Caldas Aulete recomendam que o “x” de todas essas palavras seja lido como “cs”; o “Houaiss” sugere que se leia esse “x” como “z”. É isso.
Pasquale Cipro Neto
(Publicado no jornal “Folha de São Paulo”, em 4 de Julho de 2002)