Texto de Braulio Tavares sobre “Todas Elas Juntas Num Só Ser”

“Todas elas juntas num só ser”

O Prêmio Tim de música popular indicou como a Melhor Canção de 2004 uma parceria de Lenine e Carlos Rennó, “Todas Elas Juntas Num Só Ser”. É uma notável canção, com letra quilométrica, e faz um recenseamento das musas da música popular, brasileira ou estrangeira, comparando-as com a “destinatária” da canção, e julgando-as inferiores a ela. Uma amostra: “Não canto mais Bebete nem Domingas / Nem Xica nem Tereza, de Ben Jor; / Nem Drão nem Flora, do baiano Gil; / Tereza nem Luiza, do maior; / Já não homenageio Januária, / Joana, Ana, Bárbara, de Chico; / Nem Yoko, a nipônica de Lennon; / Nem a cabocla, de Tinoco e de Tonico… Só você! / Eu hoje canto mesmo só você! / Só você, que é todas elas juntas num só ser”. E basta, porque são dezenas de estrofes.

Eu conhecia essa letra antes de ser musicada (e consideravelmente reduzida, compactada) por Lenine, e sempre a achei um “tour de force”, uma idéia simples e forte, executada com imensa erudição e impecável competência. Porque é um Poema Enumerativo, um dos gêneros aparentemente mais fáceis e sutilmente mais difíceis da poesia. Cantador de viola adora fazer essas intermináveis estrofes com nomes de cidades, de peixes, de rios; nomes de personagens da Mitologia Grega, nomes de outros cantadores. O propósito mais visível de tais poemas é mostrar erudição (no sentido de “muita informação sobre assunto específico”); mas o poema enumerativo acaba se transformando num jogo de palavras onde nome se sucede a nome, com efeito puramente de melodia, de uma musicalidade abstracionista, que até na leitura silenciosa se impõe.

Mas o poema é para uma Musa, comparando-a com todas as Musas da canção. E me lembro de um trecho do conto de Jorge Luís Borges, “O Zahir”. O narrador, o próprio Borges, confessa ter sido apaixonado por uma socialite de Buenos Aires, vaidosa e fútil. Depois que ela morre, ele toma uma bebida num botequim e recebe de troco uma moeda de vinte centavos. Essa moeda se transforma num “zahir”, um objeto inesquecível. Desse momento em diante, ele não consegue parar de pensar na moeda, e de fazer associação com moedas famosas da História: as 30 moedas de Judas, o óbolo que se colocava na boca dos mortos para que pagassem a Caronte, o barqueiro do Rio das Sombras…

Borges sugere que para apaixonar-se por uma moeda de vinte centavos basta pensar que ela encarna em si todas as moedas míticas da História. Jung dizia que a “Anima” é a imagem-plasma de todas as mulheres, o arquétipo feminino que todo homem traz em seu inconsciente; e que a paixão ocorre quando ele acha uma mulher que, para ele, é todas as outras (o que o dispensa de continuar procurando). Trazendo esse conceito para o domínio da letra de música, e forjando a partir dele um poema enumerativo cheio de achados de aliteração, Carlos Rennó criou um Zahir feminino e metalingüístico: a mulher que contém em si todas as mulheres, e a canção de amor que contém em si todas as canções.

(publicado no “Jornal da Paraíba”, em 17 de julho de 2005)

*