Publicado na exposição “Lupicínio – O Poeta da Dor de Cotovelo”, no Sesc Vila Mariana, de São Paulo, em julho de 2005
Lupicínio Rodrigues pertence àquela raça rara de compositores possuidores de um timbre único, pessoal, inconfundível. Não à toa, seu nome acabou associado à criação e cristalização de um estilo novo dentro da música brasileira. A chamada “dor-de-cotovelo”, como ficou conhecida, se caracterizou por um notável conjunto de canções – principalmente sambas-canções – de amor marcadas por uma nudez, uma crueza e uma verdade sem paralelo no panorama musical nacional de sua época (fim dos anos 30 em diante).
Com uma qualidade poética invulgar, as peças de LR nos surpreendem com rasgos verbais inesperados, sensacionais; com metáforas e lances de imagens imprevisíveis na exploração do tema das relações amorosas, passíveis de associação até com a Segunda Guerra Mundial: “Onde a dona Divergência com o seu archote/ Espalha os raios da morte/ A destruir os casais;/ E eu, combatente atingido,/ Sou qual um país vencido/ Que não se organiza mais” (“Dona Divergência”, de 1939). Quem senão um poeta cantaria: “Eu não sei se o que trago no peito/ É ciúme, despeito, amizade ou horror;/ Eu só sei é que quando eu a vejo,/ Me dá um desejo de morte ou de dor” (“Nervos de Aço”)? Que ninguém duvide: Lupicínio foi um verdadeiro poeta da canção – dos maiores de nossa música, ao lado de Orestes, Noel, Caetano, Chico.
Mas não se pense que o valor de suas canções se limita ao texto. Em certos momentos, como um Tom Jobim, ele apresenta aquela equivalência sempre conscientemente buscada pelos mais musicalmente qualificados criadores da arte que conjuga palavras e sons: o casamento entre as suas partes. Nesse sentido, constituem-se modelos de isomorfismo poético-musical obras-primas como “Vingança” e “Torre de Babel”, em que Lupi faz letras e músicas falarem a mesma linguagem. E sem usar outro artifício que não o da sua intuição; sem formação musical, ele não tocava instrumento algum, nem sequer um violão para compor.
Poucos recriaram tão particularmente bem o seu repertório quanto ele próprio, nos seus raros registros discográficos, nos quais se mostra um cantor moderno, interpretando com surpreendente serenidade os temas do ressentimento amoroso que povoam suas canções.
Gaúcho que nunca deixou sua Porto Alegre, o compositor entrou na cena musical brasileira em 1938 com “Se Acaso Você Chegasse”, que foi lançada por – e que lançou – um cantor genial de samba: Cyro Monteiro. Dali em diante, sua história não cessou de se pautar por grandes sucessos nas vozes de grandes intérpretes. Alguns exemplos. Com Francisco Alves, estouraram “Nervos de Aço” em 1947 e “Esses Moços” em 1948. Com a paulista Linda Batista, “Vingança”, no início dos anos 50, década que perto de seu final inaugurou a série de gravações de canções de sua autoria que viria a fazer o seu mais assíduo intérprete: Jamelão. Em 1960, “Se Acaso Você Chegasse” virou hit de novo, consagrando outro ícone como sambista: Elza Soares.
Após um breve ostracismo, a geração MPBística dos 60 recuperou LR nos 70, sobretudo com Caetano Veloso (“Felicidade”), Gal Costa (“Volta”) e Paulinho da Viola (“Nervos de Aço”). Nos 80, “Loucura” se popularizou com Maria Bethânia, e “Nunca”, com Zizi Possi. E até hoje, Lupi não deixou de ser reverenciado e revisitado pelas gerações seguintes, como atestam gravações de Arrigo Barnabé e Tetê Espíndolla a Arnaldo Antunes e Adriana Calcanhotto. Lupi, que morreu em 1974, com problemas do coração (poderia ter sido diferente?…), não tem fim.