Publicado no jornal “Valor”, em 3-4-5/8/2012, sob o título “Caetano Veloso em forma e com estilo”
Se um jovem potencial poeta, para decidir-se pelo ofício ou arte da poesia cantada, precisasse da confirmação de que é possível se fazer poesia de verdade a partir da conjugação de letras e músicas, bastaria a ele ser apresentado à obra de Caetano Veloso. Assim como Bob Dylan, o seu “irmão” contemporâneo norteamericano, Caetano se tornou um grande poeta de nosso tempo, expressando-se no campo da canção popular, como compositor-letrista.
Que, sob o aspecto do fundo, do tema e do conteúdo, a amplitude e a profundidade poética de suas letras sejam facilmente comprováveis, parece não haver dúvida. Ao longo das últimas quase cinco décadas de obra (de suas sete de vida, que se comemoram agora), ele vem demonstrando constantemente ser o cantor libertário por excelência do Brasil moderno. Aquele por cujas canções passam, em visões agudas e interpretações finas, as transformações, os anseios e os problemas centrais de nossa sociedade nos campos social, político, estético, individual e comportamental.
No entanto, simultaneamente ao que ocorre no terreno dos significados, também nos domínios da forma e do estilo – no plano concreto da linguagem poética – evidencia-se e se confirma tal alto grau de qualidade poética aplicada à música. Cabem aqui alguns exemplos disso.
É notável a destreza com que ele maneja, exibindo um rigor espontâneo, formas poético-literárias há muito estabelecidas e praticadas, para além das redondilhas maiores de “Alegria Alegria” e menores de “Lua de São Jorge”. Assim, duas canções lindíssimas como “O Quereres” e “Cajuína” são feitas de versos metrificados de medidas mais longos e eloqüentes; a primeira, letra de longo fôlego, de oito estrofes de seis decassílabos cada, e a segunda, de uma única estrofe de oito dodecassílabos.
Ao mesmo tempo Caetano é capaz de incursionar com igual naturalidade em terreno mais movediço, o da vanguarda, escrevendo letras no limite entre a canção e o poema concreto, como “Julia/Moreno” e “De Palavra em Palavra”, ambas faixas de um disco deliberadamente experimental, “Araçá Azul”, de 1972 (a segunda, não à toa, dedicada ao poeta e amigo de sempre Augusto de Campos). E outras marcadas pela presença de palavras-valise, de inspiração joyceana, como a tropicalista “Acrilírico” (onde cintilam termos como “colírico”, “telástico”, “grandicidade”, “Santo Amargo da Putrificação”) e “Outras Palavras”, de 1981.
Nesta, em mais um texto de fatura extensa, reponta a última estrofe, toda ela construída com esses vocábulos compostos, inventados (usados pioneiramente por Lewis Carroll e posteriormente por James Joyce em seu livro formalmente mais radical, Finnegans Wake). De modo sugestivamente libertário, empregando termos de conotação sexual, Caetano a finaliza com essas – “outras” – palavras: “Lambetelho frúturo orgasmaravalha-me, Logun / Homenina nel paraís de felicidadania”.
Pelas referências eruditas que fazem, explícita ou implicitamente, várias letras suas correspondem ao que, no contexto literário, é chamado de cult poetry. Assim, numa simples e graciosa canção de amor como “Lindeza”, podemos nos deparar surpreendentemente com duas definições de beleza, uma dada pelo poeta romântico inglês John Keats (“Uma alegria pra sempre”, citação do célebre verso “A thing of beauty is a joy forever”), a outra pelo romancista realista francês Stendhal (“Promessa de felicidade”, da frase “La beauté n´est que la promesse du bonheur”).
O procedimento constitui um elemento do estilo de Caetano desde os tempos de tropicalismo, quando o refrão de “Os Argonautas” (“Navegar é preciso, viver não é preciso”) citou Fernando Pessoa – o “ele mesmo”, o de “Mensagem”. Outro escritor de língua portuguesa, o poeta maranhense Sousândrade, que na época do Romantismo viveu em Nova York e escreveu um espantoso poema épico mesclando índios sulamericanos e Wall Street, “O Guesa”, também é apropriadamente referido em “Manhatã”, na qual o cantor-compositor baiano rima “cunhã” com “Manhattan”.
De Sousândrade, poeta por longo tempo marginalizado e resgatado a partir dos anos 1960 pelos irmãos Augusto e Haroldo de Campos num importante trabalho de caráter revisionista, Caetano musicou um enigmático verso – “Gil-engendra em gil rouxinol…” – que dessa forma se transformou na canção “Gil Misterioso”. Outra musicalização de sua autoria foi feita para “O Pulsar”, de Augusto. É significativo que o trabalho – uma transposição, para a linguagem sonora, de um poema visual, empregando uma solução simples e perfeita – tenha sido elogiado por ninguém menos que o compositor norte-americano John Cage, ícone da música de vanguarda do século 20, e se tornado ainda por cima um hit (para os padrões da poesia experimental).
E como não pensar que o verso final da letra de “A Rã”, feita sobre música de João Donato, mais do que uma oblíqua alusão, seja uma espécie de tradução, para o plano musical, do superclássico haikai do sapo na água, de Bashô? É o que podemos depreender da observação feita pelo compositor, cantor, escritor e professor de Literatura Brasileira José Miguel Wisnik, que na frase “A rama, o sapo, o salto de uma rã” destacou a relação isomórfica, verbo-musical, que se estabelece quando a sílaba “sal”, de “salto”, é cantada uma nota acima daquela em que são cantadas as sílabas das demais palavras do verso. Tipo da correspondência existente na transcrição original do poema, em cujo desenho o salto é sugerido, numa relação de afinidade entre signo e significado própria da natureza do ideograma.
Aqui, que tal lançarmos um olhar um pouco mais fundo para o refrão de “A Luz de Tieta”? “Eta, eta, eta, eta / É a lua, é o sol, é a luz de Tieta / Eta, eta!”? Não bastasse o fato de que a rima, além de agradável aos ouvidos, é rica por se dar entre termos de classes gramaticais distintas (sendo uma delas uma interjeição, o que a torna ainda menos comum), há o fato de que, na escrita chinesa, o ideograma de luz é formado pela sobreposição dos ideogramas de lua e de sol… Não nos enganemos: Caetano é profundo mesmo quando não parece ser. Eis por que, quando ele não nos parece ser, exige de nosso olhar que assim seja: profundo.
É natural que, por essas e muitas outras, sua poesiamúsica seja objeto da observação e da admiração de poetas. Décio Pignatari, num pequeno livro chamado “Comunicação Poética”, chama a atenção, no verso “Acho que a chuva ajuda a gente a se ver”, para a aliteração de consoantes fricativas (ch, j, g), cujo som, chiado, parece sugerir o da chuva. Esses fonemas aparecem ao longo da maior parte da letra (como em seus versos-chave: “A gente se olha, se beija, se molha/ De chuva, suor e cerveja”), num frevo que afinal de contas trata do que diz seu título: “Chuva, Suor e Cerveja”.
Em “Sampa”, rebrilha a sonoridade das aliterações da linha: “Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas”. As em vês e efes, particularmente, como que acentuam a expressão do sentido do verso – que lembra os problemas da parcela da população com menos recursos –, já que seu modo de articulação em série representa certa dificuldade de pronúncia, por exigirem que a passagem do ar se dê por um espaço estreito do buraco da boca.
“Sampa”, diga-se, constitui uma síntese do que se está querendo dizer aqui. Como se não bastasse a intrincada construção de trechos como “E à mente apavora o que ainda não é mesmo velho / Nada do que não era antes quando não somos mutantes” (e o que dizer de “Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso”?), há ainda o caráter carregadamente alusivo de certos versos que os vincularia mais a uma poesia literária, erudita: “Tuas oficinas de florestas, teus deuses da chuva / Pan-Américas de Áfricas utópicas, túmulo do samba / Mas possível novo quilombo de Zumbi”.
É quase inacreditável que uma canção assim tenha se tornado tão popular como é. Deve ser motivo de orgulho para São Paulo que ela o seja. Da mesma forma que um poeta como Caetano tenha, entre nós, brasileiros, a popularidade que tem.