Publicado na revista “L’Officiel Brasil”, em agosto de 2012, sob o título “Outras palavras”
Existe uma coisa fundamental para a comunicação da beleza numa letra de música: a sonoridade das palavras. Além do sentido, é o som delas, cantadas, que faz uma canção nos arrebatar com um poder de sedução tal, que às vezes nem temos consciência do que fez com que nos encantássemos e nos persuadíssemos.
Entre dezenas de compositores muito bons nisso, há alguns, raros e caros, que já deixaram a sua marca indelével na história dessa arte. Cole Porter foi um deles. Um outro é Caetano Veloso. Esse velho sempre novo, agora com setenta anos, não se cansa de nos brindar com exemplos da mais aperfeiçoada combinação de palavras e sons em poesia de música. Em suas letras, a força e a graça poéticas não provém apenas do que é dito, mas também de como é dito. O que elas são deve muito ao como elas soam.
Inventivo por excelência, Caetano já começou desarvorando: foi dos primeiros a usar uma rima que até então nem era considerada rima em MPB, a toante (em que só as vogais rimam, não as consoantes). Rima de origem pop, empregada no rock´n´roll desde os anos 50 e no blues desde os anos 20 do século passado, nos Estados Unidos. E ao mesmo tempo erudita, introduzida em nossa literatura pelo poeta João Cabral de Melo Neto, que a assimilou da poesia de língua inglesa modernista.
“Alegria Alegria” está cheia delas: guerrilhas / bonitas, nome / telefone, preguiça /notícia. Nesse sentido, porém, uma outra canção do período tropicalista, a belíssima “A Tua Presença”, é paradigmática: as quinze palavras que nela rimam terminam em e-a, na maioria das vezes como toantes: cabeça, orelhas, presença, pernas, amarela, negra, janelas, motocicletas, reza, sangrenta… Mais tarde, ele forjaria outro clássico somente com rimas com a terminação i-o, quase todas toantes, “Oração ao Tempo” (“És um senhor tão bonito / Quanto a cara do meu filho / Tempo tempo tempo tempo / Vou te fazer um pedido”).
E o que dizer de rimas raras, novas, imprevistas, como mãe / champagne (em “Meu Bem, Meu Mal”)? Ou como rapte-me, adapte-me e capte-me ressoando, simplesmente, em up to me (em “Rapte-me, Camaleoa”)?
Ou então, mais sofisticadas ainda, aquelas que se dão entre uma palavra e duas ou mais, muito mais facilmente encontráveis em poesia inglesa e norteamericana por causa da estrutura do idioma, cheio de monossílabos. Em “Trilhos Urbanos” há a célebre rima interna dos versos “Pena de pavão de Krishna / Maravilha, vixe Ma-/ria mãe de Deus”. E, menos conhecidas, mas até mais abusadas, as de “Escândalo”, canção feita para Ângela Rô Rô cantar: sândalo / sã da lo(ucura), vândalo e escândalo / irmã-luz, manhã da luz e maçã da lux(úria) /escândalo.
Um fator a mais a chamar a atenção nessas rimas é o fato de a coincidência fônica não se dar entre os finais das palavras, mas entre o fim de uma e o começo de outra. Em matéria de rimário, Caetano é, sim, um luxo, um escândalo.
Melopeia é o nome que se dá para a modalidade poética na qual as palavras estão impregnadas de propriedade musical. As rimas desempenham um papel muito importante aqui, mas, além delas, há as aliterações – as sequências de fonemas caracterizados pela repetição de consoantes de espécies similares, que contribuem para a criação de um efeito sonoro esteticamente interessante. Também aqui Caetano exubera.
Lembremo-nos de um verso de “London London”, feita no exílio. Não bastasse o vigor da imagem que lança na imaginação do receptor – de notável força de síntese de um lugar e de um tempo, colaborando para a transmissão da emoção de um sentimento de profunda melancolia passada pela canção –, a sucessão das sílabas é de um poder encantatório: “Green grass, blue eyes, grey Sky, God bless [Silent pain…]”. Por quê? Por causa da sequência de três grs (além de um quarto gê) e de dois bls, além da proximidade de três ditongos, dois em ai e um em ei.
Outro verso antológico merece alusão aqui: “Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas”, de outro clássico, “Sampa”, de 1978. A Caetano podem ter ocorrido primeiramente os termos “nas filas, nas vilas”, e ele ter então sentido necessidade de completar a linha com um plus de inventividade, já que fila e vila, aliterando, já haviam sido usadas por Chico Buarque – outro gênio das aliterações – alguns anos antes, na absurdamente linda “Flor da Idade” (“A gente faz hora, faz fila, na vila do meio-dia/ Pra ver Maria”), que o baiano, com toda razão, adora e até já gravou. Nesse sentido, a complementação do seu verso foi genial, pois favelas vem complementar filas e vilas tanto em termos semânticos quanto sônicos, com suas sílabas em efe, vê e ele.
E em “Vaca Profana”, com suas referências a Madri e Barcelona, o que temos? Nada menos que essa marcadíssima sequência de pês (além de duas sílabas em enes e o atrito de ks com cas: “Napoli, Pino, Pi, Pau, punks / Picassos… ”. E em “A Rã”? Essa lindeza, remetendo ao célebre haikai de Bashô: “A rama, o sapo, o salto de uma rã”. Na qual ressalta não apenas a sucessão de ras, mas e sas, mas também os elementos anagramáticos de “rama” e “uma rã”.
Anagramas. Por falar nos tais, todo o refrão de uma composição dos anos 2 mil – “Zera a Reza” – é erguido, barrocamente, com exemplares deles: “Vela leva a seta tesa / Rema na maré / Rima mira a terça certa / E zera a reza”. Uma outra, dos 80, “Itapuã” – bela canção de reminiscências do início da vida amorosa com a primeira mulher do artista – traz o verso “Itapuã, tuas lamas, algas, almas que amalgamas”, em que a última palavra, “amalgamas”, literal, concreta e efetivamente amalgama os termos imediatamente anteriores – “lamas, algas, almas”…
(Em “Gente”, por sinal, ocorre algo semelhante no verso “Gente quer respirar ar pelo nariz”, em que o fonema “ar”, integrante de “respirAR”, entra literalmente – literalmente mesmo – “pelo nariz”, no meio, por dentro da palavra “nARiz”).
Indo mais longe, dos três anagramas do samba “Os Passistas” – cada um ocorrendo precisamente no mesmíssimo ponto de cada uma das estrofes –, dois constituem-se também em palíndromos: Roda / a dor e Roma / amor.
Assim como em termos de sentido, também em matéria de sons, Caetano não tem fim.