Publicado na “Folha de S.Paulo” (“Ilustrada”), em 5/10/1992, sob o título “Bob Dylan levou Lennon à letra-arte”
A presença ostensiva da expres¬são “I love you” nos refrões de “Love Me Do” e “P.S. I Love You”, de Paul McCartney, é somente um dos indicadores do lugar-comum poético dessas canções. Em suas letras, contudo, colocam-se vários outros que também John Lennon escreveria apenas “profissionalmente”, sem ambições artísticas, no período inicial dos Beatles. Um fato, po¬rém, mudaria radicalmente a vi-são de Lennon sobre a importân¬cia do texto na música: o reconhe¬cimento da qualidade poética das canções de Bob Dylan.
Dylan: desde Cole Porter e Ira Gershwin a poesia popular canta¬da de língua inglesa não alçava voos tão altos, de imaginação e inventividade. À época, Lennon, popstar intelectualizado, já tinha escrito dois livros, num deles incursionando ludicamente pela linguagem chamada de invenção – “Um Atrapalho no Trabalho” (na tra¬dução de Paulo Leminsky). Para ele, porém, a palavra só podia adquirir expressão estética em li¬teratura, não em música pop. Com Dylan, encarnação supermoderna do bardo, gênio indiscu¬tível, Lennon descobriu a letra-ar¬te. E percebeu que uma canção, além de voar, poderia transmitir belezas e verdades (especialmente as próprias) através de sua letra.
Mas, ao contrário do metafóri¬co, profuso e às vezes obscuro Dylan, Lennon definiu-se pelo de¬sign mais nítido, a expressão cla¬ra, direta e objetiva. Fez mais sucesso por isso, mas nem por isso foi mais simples. Sua “enga¬nosa simplicidade” (Glauco Mattoso) pode ser atestada por um exame cuidadoso de, por exem¬plo, “Julia” (atentar para suas sutilezas estruturais e suas ambi¬guidades), em homenagem a sua mãe, mas também em referência a sua mulher, Yoko (“ocean¬child”). Escrevendo na primeira pessoa, Lennon sempre falou dele mesmo em suas letras, de suas experiências. Do drama existen¬cial de “Help” às memórias de “In My Life” e “Strawberry Fields Forever”. Do psicodelismo pioneiro de “Tomorrow Never Knows” até os hinos contracultu¬rais “All You Need Is Love” (antibélico) e “Revolution”.
“A Day In the Life” pode ser considerada, se se pensar em “Ulisses”, a mais joyceana de suas letras. Mas onde ele mais explicita suas referências literá¬rias, radicalizando no experimen¬talismo (pelo surrealismo e pelo uso das palavras-va¬lise inventadas por Lewis Car¬roll – e radicalizadas em Joyce), é em “I Am the Walrus”. Não parou por aí. Em “Across the Universe” traçou uma bela sequência de “lances de imagens sobre o intelecto” (fanopeia), de inspiração cósmico-religiosa, ao mesmo tempo em que refletiu sobre o ato poético-criativo. E em “Come Together”, uma livre-as¬sociação imagética que beira a incomunicabilidade, e onde o sen¬tido importa menos que o som, salvo no refrão, uma ce1ebração ao orgasmo simultâneo.
Paul não foi tão longe, é óbvio – seu negócio era mais música mesmo –, mas deu sua contribuição, especialmente como contador de histórias, na terceira pessoa. Basta dizer que foram dele a ideia e o desenvolvimento da maior parte de “Eleanor Rigby” e “She’s Leaving Home”, para¬digmática da adolescente que foge de casa. E que ele fez sozinho “The Fool On the Hill”, a lindís¬sima “For No One”, “Hey Ju¬de” e “A Little Help From My Friends”(que melodias!).
As palavras das canções de Lennon e McCartney representa¬ram o contraponto verbal à revo¬lução que os Beatles detonaram nos planos musical, comportamental e mental de sua geração. É certo que mesmo as melhores letras do grupo não exibiram a engenhosa sofisticação das que Cole e Ira fizeram nos anos 30: seria uma repetição. Mas enrique¬ceram demais o repertório geral com temas, formas e imagens até então inéditos. E serviram para colocar Lennon, ao lado de Dylan e também de Jim Morrison, entre os maiores músicos-poetas dos 60 e de todos os tempos.