Publicado na “Folha de S.Paulo” (“Mais!”), em 18/3/2001, sob o título “As múltiplas faces do som”
No shopping center de variedades que é o vasto mundo do disco e do showbiz – o comércio de encantos da música popular contemporânea –, o que ele fez é um feito: depois de um grande disco, realizou outro grande disco. Pois é. Nem bem estávamos refeitos dos impactantes efeitos de “Com Defeito de Fabricação” (seu CD anterior) e mais uma vez Tom Zé nos pegou no contrapé: o lançamento de “Jogos de Armar – Faça Você Mesmo” (ambos pela gravadora Trama) constitui uma proeza, mais marcante ainda por ser inédita: trata-se da primeira obra discográfica realmente, literalmente, aberta já realizada por alguém no terreno da música popular produzida até estes dias, no Brasil e no mundo, pode-se dizer. Alguém tem notícia de um caso dessa natureza? É improvável.
Senão, vejamos. O artista prova que verdadeiramente preza a sua platéia: incita-a a participar da sua criação, a somar, a produzir também. Uma velha utopia artística dos anos 60 (o consumidor se tornar produtor) se concretiza no fim/começo de século. A tecnologia possibilita a materialização do sonho por meio de um “CD auxiliar”, “Cartilha de Parceiros”, algo antes imaginável, sim, mas quem o fizera?
Convém, no entanto, reconhecer a primazia não só dessa idéia em particular, mas também a inventividade, a originalidade, a simplicidade e a riqueza das idéias em geral. Como a dos instrumentos experimentais (armazenados há anos), os “instromzémentos”, cinco, finalmente fazendo a sua estréia em disco. De aspecto algo futurista, são todos bonitos e esquisitos (aos olhos e aos ouvidos), a começar (1) pela orquestra de herz, ou “hertzé”, um tipo diferente de sampler, de 78, “made in Brazil”: um sampler pré-sampler (o “hertzé”, como seu inventor ele mesmo diz, “é um som e uma sintaxe: funciona sintaxialmente”); (2) o buzinório; (3) o enceroscópio (eletrodomésticos como enceradeiras, aspiradores de pó, liquidificadores; microfones de contato captam não o ruído do motor, mas a vibração do metal); as canetas Lazzari (4); além (5) da serroteria (canos de PVC, madeira e outros materiais; um serrote faz o papel de arco de violino).
Mas afinal o que é tudo isso? Apenas a arte incorporando elementos trazidos pela vida (a mais benéfica das influências). No plano da composição, Tom Zé complexifica, aplicando o método da justaposição ao conceito comum de canção. Por vezes, as peças parecem se mostrar em múltiplas faces, cubista. Em matéria de formatos e gêneros musicais, dessa vez o eclético e inventivo compositor introduz em nosso léxico um novo ritmo-dança, o chamegá (como Luiz Gonzaga, o xaxado, em outra época; e entre outras formas de cruzamento (baião-acalanto, baião-lenda, samba-rap, chameguinho-choro), idiossincráticas e sincréticas, apresenta-nos a “maracapoeira” (maracatu no baixo mais capoeira no cavaquinho).
Ao mesmo tempo não deixa de traduzir uma tradição viva, a que ele se volta e que atualiza. Agora, intervém no Nordeste clássico, revisitando-o com uma versão esfuziante e energética de “Pisa na Fulô”, em que o forró se torna uma farra só e com a, possivelmente, mais diferente de todas (e são muitas) as releituras já forjadas de “Asa Branca”, em que baixo, guitarra e sanfona degeneram o baião, enquanto a zabumba o sustém.
Os arranjos retomam, como é habitual, sonoridades inabituais, instrumentações inusuais, vocalizações inusitadas, isto é: um bonitíssimo vocalise feminino simplesmente extasiante – “um orgasmo lógico-cartesiano-sonoro”, diz o seu fértil criador (em “Passagem do Som”); um deslumbrante som de assobios (em “Peixe Viva”), outra beleza fina nascida do cérebro do músico; cantos (em “Sonho da Criança-Futuro-Bandido da Favela, na Noite de Natal”) e outros acontecimentos sonoros paralelos de matizes e técnicas diversas.
As interpretações, inteligentes, estabelecem isomorfismos entre “motz et son”. Além disso, destacam as teatrais-criativas, funcionais, cômico-dramáticas vozes feitas pelo intérprete. “Last but not least”, há os ruidosos-musicais, bizarros sons dos “instromzémentos”.
A propósito, compósitos tomzeanos (compondo todo um refrão -o de “Desafio”, por exemplo) como “instromzémentos” colaboram para a valorização poética dos textos, instrumentalizados com recursos de várias espécies: aliterações e paronomásias (como os chamados “quebra-línguas” nordestinos, numa aprazível melopéia em “Conto de Fraldas”); “non sense” e trocadilhos (uma dúzia deles na série de “Jimi Renda-Se”); fragmentações vocabulares (“Chamegá”); e uma dezena de novas, cantáveis onomatopeias.
No plano temático, o tratamento mordaz, antipatético, sarcástico, de mazelas e tragédias nacionais, prostituição infantil, FMI, “globarbarização”, miséria… “Se eu pudesse atrasaria/ Esse relógio dois mil/ Pra rezar na primeira missa/ Pelo futuro do Brasil” (“Perisséia”, com Capinan). Aguda contundência. Inquietação. Humor crítico. Estranhezas. Sentido ético (e, contudo, auto-ironicamente, ele batiza tudo de “música do século passado”).
“Ele representa um novo pensamento cujas características talvez ainda não conheçamos; é alguma coisa que está prestes a chegar. Ele desenvolve um estilo muito próprio, algo que funde, pode-se dizer, praticamente todas as características que surgiram ultimamente na música, como a superação de certos dualismos, como consonância e dissonância, belo e feio. É um artista que não tem medo, que vai adiante, que apresenta uma arte capaz de transformar as pessoas que a consomem. Para mim, essa é a função principal do artista”, disse um Hans-Joachim Koellreuter emocionado (profetizou, é mais exato dizer).
Não admira, portanto, a admiração da rapaziada que o descobriu na década passada. Aos 64 anos, poucos permanecem tão novos (dirá talvez Augusto de Campos) como ele se mantém. Ou tão singulares (como provavelmente preferirá, por sua vez, Miguel Wisnik, o outro Zé da cena paulistana de Arrigo e Arnaldo a Tom Zé e Zé Miguel: de A a Z na paulicéia desvairada). De fato, quase ninguém se parece tanto apenas consigo mesmo.
Entre tantos gênios que produzem sob a inspiração que cai do céu, partindo sempre do zero, compondo célula por célula, na escuridão completa, totalmente sozinho, ele é um antigênio total. Mas genial. Com suas imperfeições (felizmente). Com suas contribuições e até com seus “arrastões” (como ele, com desconcertante franqueza, chama os seus empréstimos e apropriações). Com seus requintes e suas singelezas.
Tiremos nosso chapéu e aceitemos o convite que ele gentilmente nos faz com este recém-lançado CD. Arte e vida sorriem juntas, outra vez. O que o disco contém alenta, emociona, informa, sensibiliza, entretém. Esses “Jogos” causam prazer estético. Este, o maior, pode-se dizer, de seus méritos.
P.S.: Se não se trata de “bad boy”, “bom rapaz” também está longe de ser. Apocalíptico, sim, com certeza, é. Tom Zé: um eterno rebelde tropicalista, com Schoenberg, contraponto clássico e serialismo de um lado, Zeca Cachangá, Xanduzinha e “cê-cê de marré-deci” de outro.