Publicado na “Folha de S.Paulo” (“Ilustrada”), em 26/9/1997, sob o título “Antunes une forma e som”
O CD “Dois ou + Corpos no Mesmo Espaço”, acoplado ao livro homônimo, é mais uma pequena amostra do complexo conjunto de visões e vivências poéticas muito particulares em que consiste o instigante trabalho de Arnaldo Antunes, agora numa bem-sucedida transposição sonora.
Nele reencontramos, apropriadamente (isto é: estruturalmente) materializados no plano vocal, os mesmos elementos presentes na poesia de marcada caracterização visual de Antunes, como seus sugestivos jogos linguísticos e suas sintaxes rebeldes, de leituras simultâneas.
Assim, por exemplo, na peça-título, à medida que cada fonema é recortado, a pronúncia promove paradoxalmente a multiplicação de corpos-sílabas no espaço do som a que parece aludir a máxima do poema (“Dois ou mais corpos no mesmo espaço se multiplicam…”).
Do mesmo modo, na voz de Arnaldo soa, ou pressente-se, o ritmo irregular das ondas em “O Mar”. E o agá gagueja, quase silencia ou quase ecoa em “Agá”. Isomorfismo em poesia falada, correspondência íntima entre forma, sentido e som. No CD, os treze poemas viram palavras-coisas, como Sartre sugeriu que a poesia é.
Sob tais aspectos, o disco constitui mais uma experiência importante, depois do divisor de águas “Poesia é Risco”, de Augusto de Campos e Cid Campos. Só que, diferentemente deste, “Dois…” não emprega outro instrumento que não a voz.
Nesse sentido, eis, enfim, entre nós, um poeta com voz – clara, bela, firme, forte (melhor dizendo, um poeta com vozes, pois são várias as que usa). Quero dizer: um experto na oralização da palavra poética em suas dimensões cantada, falada, gravada, sampleada e editada.
O Brasil não possui uma tradição de leitura de poesia. Ezra Pound ou Dylan Thomas recitando seus poemas é algo maravilhoso, envolvente, impactante, não dando para dizer o mesmo de imensos poetas nossos como Drummond ou Cabral em suas próprias vozes. E se eles são “interpretados” por atores, aí podemos muitas vezes esperar pelo pior, estes pecando pelo excesso, aqueles, pela escassez.
Tal panorama começa a mudar. Quando o processo se consumar, a atuação de Arnaldo Antunes – com seu ótimo timbre, seu domínio do ritmo, seu ataque irresistível – terá sido decisiva ou, no mínimo, colaborado muito.
Por ora, não deixa de ser significativo que um dos mais promissores sinais dessa mudança parta de um poeta-vocalista, que se move na área da música popular. É também compreensível. O próprio “Poesia é Risco” é obra do mais músico dos poetas brasileiros das gerações anteriores.