Todos os posts de Carlos Rennó

Verão (Summertime)


de “Nego”, de Carlos Rennó

2009_NEGO_Cancoes_americanas_em_versoes_brasileiras_1024

É verão,
E a vida tá boa.
Quanto peixe!
E que lindo o algodão!
O papai tá rico
E a mamãe tá bonita.
Então, nenenzinho,
Chora não.

Um dia desses
Vais acordar cantando,
Vais abrir as asas
E o céu atingir.
Até tal dia,
Nada vai te fazer mal,
Com o papi e a mami
Junto a ti.

______________________________________________

Summertime,
And the livin’ is easy.
Fish are jumpin’
And the cotton is high.
Oh, your daddy’s rich
And your mom’s good lookin’.
So, hush, little baby,
Don’t you cry.

One of these mornings
You’re going to rise up singing.
Then you’ll spread your wings,
And you’ll take to the sky.
But till that morning
There’s a’ nothing can harm you,
With daddy and mommy
Standing by.

Música de George Gershwin e letra de Ira Gershwin e Dubose Heyward, 1935

Tenho um Xodó Por Ti (I´ve Got a Crush on You)


de “Nego”, de Carlos Rennó

2009_NEGO_Cancoes_americanas_em_versoes_brasileiras_1024

Seriam tão felizes
Joanas, Beatrizes,
Ah se
Ganhassem-me.

Você, tão persistente,
A mim, tão resistente,
Venceu –
E convenceu.

Oh meu grande e elegante, meu Romeu,
Sei que te ganhei, não sei como ocorreu.

Nem és assim perfeito,
Mas agitou meu peito
Te ver
Aparecer.

Tenho um xodó por ti,
Pão de mel;
Ando suspirando
Pra dedéu.
Eu nunca tive em mente
Me apaixonar tão intensamente.

Que tal eu,
Que tal tu,
Num chalé charmoso
Pra chuchu?
Do meu chamego tem dó,
Que eu tenho um xodó,
Meu broto, por ti.

Tenho um xodó por ti,
Pão de mel;
Ando suspirando
Pra dedéu.
Não é só azaração;
Provamos que há predestinação.

Topo eu,
Topo tu,
No chalé charmoso
Pra chuchu.
O teu chamego dá dó,
Que eu tenho um xodó,
Meu broto, por ti.

___________________________________________

How glad the many millions
Of Annabelles and Lillians
Would be
To capture me.

But you had such persistence
You wore down my resistance.
I fell –
And it was swell.

You´re my big and brave and handsome Romeo.
How I won you, I shall never, never know.

It´s not that you´re attractive –
But oh, my heart grew active
When you
Came into view.

I´ve got a crush on you,
Sweetie pie.
All the day and night-time
Hear me sigh.
I never had the least notion
That I could fall with so much emotion.

Could you coo?
Could you care
For a cunning cottage
We could share?
The world will pardon my mush,
´Cause I´ve got a crush,
My baby, on you.

I´ve got a crush on you,
Sweetie pie.
All the day and night-time
Hear me sigh.
This isn´t just a flertation;
We´re proving that there´s predestination.

I could coo,
I could care
For that cunning cottage
We could share.
Your mush I never shall shush,
´Cause I´ve got a crush,
My baby, on you.

Música de George Gershwin e letra de Ira Gershwin, 1928

Sou Fiel

Sou fiel de coração
Sou fiel a uma paixão
Sou fiel, graças a Deus
Sou fiel a uma religião

Timão, ê-ô
Timão eu sou

Eu sou a garra dos gaviões
Eu sou a raça nas decisões
Eu sou a farra nas explosões

Sou fiel de coração
Sou fiel a uma paixão
Sou fiel, graças a Deus
Sou fiel a uma religião

Timão, ê-ô
Timão eu sou

Eu sou quase 30 milhões
De corações fiéis
Ao campeão dos campeões
Eu sou uma nação

Sou fiel de coração
Sou fiel a uma paixão
Sou fiel, graças a Deus
Sou fiel a uma religião

Timão, ê-ô
Timão eu sou

Eu sou o pavilhão 9
Sou a camisa 12
E a estrela do timão
Eu sou uma nação

Sou fiel de coração
Sou fiel a uma paixão
Sou fiel, orra meu
Sou fiel a uma religião

Ê-o timão
Eu sou timão
Eu sou fiel
Sou uma nação

Exaltação dos Inventores

Tiro minha cartola, reverente
Pro galhardo bahiano assaz valente
Babo pelos batutas, pelo dom
De dongaroto e do menino bom
Gamo pela magnífica divina
E notável pequena linda flor
Devoto de Gonzaga e do divino
Eu rendo graças ao nosso sinhô

Bebo na fonte de cascata e cascatinha
De ribeiro e riachão
Num ban-kéti no matão
Colho do fruto benedito de oliveiras
De pereira, de moreiras
De carvalho e jamelão
Devoro jararaca e ratinho
Bebo araca e mordo a carmen
De peixoto e de martins
Degluto batatinha e gordurinha
Como muita clementina
E chupo muito amorim

Tomo cachaça e fumo charutinho
Baixa em mim um caboclinho
Danço ao jack-som do pandeiro
Além do bandolim, do cavaquinho
De viola e vassourinha
E por fim de um seresteiro
Então qual um joão-de-barro, um ás
De um bando de tangarás
Ou que nem um rouxinol
Canto que nem sabiá:
Lalá, lalá, lalá, lalá, lalá!

A aurora humbertei-cheira a noel-rosa
Orl-ando por um la-marçal barroso
Por vales e por lagos encantados
Por mários nunca dantas navegados
Num vale d’ouro (dourival) caí-mmi
Lau-rindo ao wil-som e ao luar tão cândido
De lobos e de lupes a ulular
Seu cântico mansueto pelo ar

In-ciro-me de orestes em diante
Na linhagem de beleza
De poder e realeza
De generais, sargentos, almirantes
De custódios, comandantes
De reis, rainhas, príncipes, princesas

E vamos nelson todos nesse bando
De namorados da lua
Tomando banho de lua
A estrela dalva lá no ab-ismael
Do blecaute da amplidão
Nos en-candeia no chão
Entre os anjos do inferno e os diabos do céu
Vivo e morro dos prazeres
E dolores da paixão
Re-cito Lamartine pra de-déo
Enfim sou um Catulo da canção!

Coração Sem Par

Meu coração sem par,
Sempre a querer teimar,
Teima em querer queimar,
Por não poder não amar.

Meu coração não entende
Nem quer saber de razão,
Pois a razão que ele tem de viver
Vem de morrer de paixão.

Eu tento em vão parar
Meu coração – O quê!
Ei-lo outra vez a amar,
De novo em brasa,
Sem parar, porque

Meu coração sem par,
Sempre a querer teimar,
Teima em querer, queimar,
Por não poder não amar.

Meu coração não se entende
Com o saber da razão,
Pois a paixão que ele tem de viver
Vem de morrer de paixão.

Eu tento em vão parar
Meu coração – O quê!
Eis-me outra vez a amar,
De novo em brasa,
Sem parar, porque

Meu coração ímpar,
Sempre a querer teimar,
Teima em querer queimar,
Por não poder não amar.

Ah coração mais rebelde,
Do qual não sou domador;
Vive na vida o papel de
Louco amante do amor.

Pronto pra Próxima


de “Não Vou Pro Céu Mas Já Não Vivo no Chão”, de João Bosco

2009_Joao_Bosco_Nao_Vou_pro_Ceu__Mas_Ja_Nao_Vivo_no_Chao_1024

Ela incendiou meus dias mornos e normais,
Muito embora às vezes meio tonta…

Mas qualquer mulher não faz as coisas que ela fez;
Mais prazer não dá do que me dava toda vez.
Negra, linda, leve, nova, vejam vocês,
Com nitidez:
Eis minha ex.

Diante do eclipse desse amor,
Ante seu anti-resplendor,
A noite vem reacender
Memórias do calor e do clarão
De cada instante de explosão
Irradiante de prazer.

Me tirando o sono e roubando a minha paz,
O desassossego toma conta.

Portanto o que me importa é pôr um ponto
Enfim nas contas desse amor,
Em cada contra, em cada pró,
E me dispor pro próximo e estar pronto
E ir ao encontro do que for:
O que já era já é pó.

Quero agora uma nova ela,
Pro meu dia irradiar
E meu coração sorrir;
Uma nova ela, nova estrela,
Pr’eu seguir e me guiar,
Me guiar e me seguir.

Pintura


de “Não Vou Pro Céu Mas Já Não Vivo no Chão”, de João Bosco

2009_Joao_Bosco_Nao_Vou_pro_Ceu__Mas_Ja_Nao_Vivo_no_Chao_1024

Céu azul, azul, azul;
Cor-de-rosa pôr-do-sol;
Véu da aurora boreal;
Mar de estrelas lá no céu;
Luz de fogos na amplidão;
Lua-prata qual CD;
Preto eclipse do esplendor;
Arco-íris multicor:

Tudo, tudo isso não
Chega perto de você,
De seus olhos, seu olhar,
Suas pernas, seu andar,
Sua cara, coração,
Sua boca e um não-sei-quê,
De sua pele, sua cor –
Do seu corpo, meu amor…

Verdes pampas lá do Sul;
Costa Branca igual lençol;
Na vazante, o Pantanal;
Barcelona, Parque Guell;
Monte Fuji no Japão;
Garopaba em SC;
Amazônia, selva em flor;
Mar azul de Salvador:

Tudo, tudo isso não
Chega perto de você,
Nem da graça nem da cor
Do seu corpo, meu amor…

Nego

2009_NEGO_Cancoes_americanas_em_versoes_brasileiras_1024

“Nego” (Biscoito Fino, 2009) – CD com produção artística de Carlos Rennó e versões para o português, de sua autoria, de standards norte-americanos dos anos 20 a 40 do século passado. Produção musical e arranjos de Jaques Morelenbaum e participação de grandes artistas da música brasileira (Gal Costa, Erasmo Carlos, João Bosco, Elba Ramalho, Dominguinhos, João Donato, Maria Rita, Seu Jorge, Moreno Veloso, Carlinhos Brown, Gabriel o Pensador, Zélia Duncan, Paula Morelenbaum, Ná Ozzetti, Simoninha, Emilio Santiago e Olivia Hime).

“Nego”

projeto, produção artística e versões de Carlos Rennó
produção musical de Jaques Morelenbaum
selo Biscoito Fino
2009

1 – Meu Romance – My Romance (Richard Rodgers e Lorenz Hart) Gal Costa
2 – Encantada – Bewitched , Bothered and Bewildered (Richard Rodgers e Lorenz Hart) Maria Rita
3 – Tão Fundo É o Mar (How Deep Is The Ocean) (Irving Berlin) Moreno Veloso
4 – Verão – Summertime (George & Ira Gershwin) Erasmo Carlos
5 – Estava Escrito nas Estrelas – It Was Written in The Stars (Harold Arlen e Leo Robin) Emílio Santiago
6 – Nego – Lover (Richard Rodgers e Lorenz Hart) Paula Morelenbaum
7 – Sábio Rio – Ol´ Man River (Jerome Kern e Oscar Hammerstein) João Bosco *
8 – Fruta Estranha – Strange Fruit (Lewis Allan) Seu Jorge
9 – Tenho um Xodó por Ti – I´ve Got a Crush on You (George & Ira Gershwin) Elba Ramalho, Dominguinhos e João Donato
10 – Queria Estar Amando Alguém – I Wish I Were in Love Again (Richard Rodgers e Lorenz Hart) Ná Ozzetti e Wilson Simoninha
11 – O Homem que Partiu – The Man That Got Away (Harold Arlen e Ira Gerswhin) Luciana Souza
12 – Mais Além do Arco-Íris – Over The Rainbow (Harold Arlen e E.Y. Harburg) Zélia Duncan
13 – Natal Lindo – White Christmas (Irving Berlin) Olivia Hime
14 – Meu Romance (faixa-bônus) – My Romance ((Richard Rodgers e Lorenz Hart) Gal Costa e Carlinhos Brown

Versões de Carlos Rennó, com exceção de: * Carlos Rennó e Nelson Ascher

*

Tá?

de “Peixes Pássaros Pessoas”, de Mariana Aydar
2009_Mariana_Aydar_Peixes_Passaros_Pessoas_1024

 

Pra bom entendedor meia palavra bas-
Eu vou denunciar a sua ação nefas-
Você amarga o mar, desflora a flores-
Por onde você passa, o ar você empes-
Não tem medida a sua sanha imediatis-
Não tem limite o seu sonho consumis-
Você deixou na mata uma ferida expos-
Você descora as cores dos corais na cos-
Você aquece a terra e enriquece à cus-
Do roubo do futuro e da beleza augus-
Mas de que vale tal riqueza, grande bos-
Parece que de neto seu você não gos-
Você decreta morte à vida ainda em vis-
Você declara guerra à paz por mais benquis-
Não há em toda a fauna um animal tão bes-
Mas já tem gente vendo que você não pres-
Não vou dizer seu nome porque me desgas-
Pra bom entendedor meia palavra bas-

Tá?

Bob Dylan Thomas

Publicado na “Folha de S.Paulo” (“Ilustrada”), em 5/3/2008, sob o título “Músico devorou poemas de fôlego”

Nos anos 60 Augusto de Campos viu em Caetano Veloso e Gilberto Gil dois sucessores, nos tempos modernos, dos trovadores provençais da Idade Média. Nos 70 Allen Ginsberg aludiu aos “bardos e menestréis” medievais a propósito de Bob Dylan (em “Songs of Redemption”, texto sobre as canções do álbum “Desire”).

Canções: assim eram chamados os poemas trovadorescos (um dos momentos em que a poesia e a música estiveram mais próximas), todos eles cantados. Não seria um despropósito anunciar o show que Dylan faz nesta semana em São Paulo e no Rio como um concerto de “canções” na acepção poético-literária do termo. Não é outra coisa senão uma sucessão delas cada apresentação sua.

Não se sabe exatamente o que ele canta: toda noite o repertório muda. Uns dois terços das músicas são antigas, entre elas exemplares daquelas coisas inefáveis, velhas conhecidas sempre vivas na memória e duráveis no tempo: “Like a Rolling Stone”, “It´s Allright, Ma”, “Blowing in the Wind”… De certo, isto: umas seis composições, que variam a cada show, são do novo disco.

“Modern Times” é uma obra da maturidade, uma reunião de “songs of experience” com certo pendor para tons graves, fazendo corresponder a voz do letrista e a do cantor hoje; para atmosferas misteriosas, noturnas, monólogos interiores e versos reflexivos, inclusive sobre o sentido da vida e o destino de cada um. Canções-pensamento. Nessa linha, baladas como “When The Deal Goes Down” e “Workingman´s Blues” constituem momentos tocantes.

Mas há também lugar para rock´n´roll (“Thunder on The Mountain”) e rhythm´n´blues (“Someday Baby”, “The Leeve´s Gonna Break”). Para canções de amor sobre mulheres difíceis; canções de trabalho rural; cenas da natureza. Para o comentário crítico-social e imagens como esta: “Algumas pessoas na estrada carregando tudo que têm;/ Algumas pessoas com pele bastante apenas para cobrir seus ossos”.

A força das imagens ainda é uma das marcas da poesia de Dylan, assim como a onipresença das rimas, as aliterações faiscantes e a eloquência, a abundância dos versos.

Ninguém escreveu letras tão longas antes dele (nem depois). Cole Porter, Ira Gershwin e Lorenz Hart as praticaram, mas elas não são regra em suas obras. Nem na de Woody Guthrie, menos ainda na de Robert Johnson, para citar duas grandes influências sofridas por Dylan.

De onde então ele as “tirou”? Da poesia dos livros. Na sua formação, o jovem que adotou seu nome artístico por causa de Dylan Thomas e incluiu Rimbaud em seu paideuma, ou altar, particular, se acostumou a devorar e a decorar poemas de longo fôlego, como contam as suas “Chronicles”, livro de reminiscências.

Em “No Direction Home”, o belo documentário de Martin Scorcese que, entre outros benefícios, está levando a nova geração a descobrir Dylan, Ginsberg faz uma revelação. Diz que, ao ouvi-lo pela primeira vez (cantando “A Hard Rain´s A-Gonna Fall”), chorou, “porque pareceu que a tocha havia sido passada para uma outra geração”.

Dylan já afirmou que não é poeta. Que poeta é (era) Ginsberg. Chico Buarque também já fez questão de dizer que não é poeta – que poeta são Drummond, Bandeira… Mas não adianta. Nós não acreditamos. Continuamos a vê-los também como poetas. Poetas populares da canção. Mestres da palavra cantada.

Preguiça qualitativamente produtiva

Publicado na “Folha de S.Paulo” (“Ilustrada Especial”), em 17/8/2008, sob o título “´Preguiça criadora´ gerou o mais original compositor brasileiro”

O que chama a atenção na obra de Dorival Caymmi, se comparada às de outros compositores brasileiros, é a sua relativamente pequena produção e o seu grande percentual de “standards”, isto é: de canções-modelo. Nesse aspecto, nem nosso maior compositor, Tom Jobim, o superou. À luz da informação estética, seria o mais original, pois o menos redundante.

Qualidade muita, quantidade pouca. Foram pouco mais de cem canções em cerca de 60 anos de atividade como compositor. Pudera. Uma (“João Valentão”) levou nove para ser acabada, outra (“Saudade da Bahia”) passou 12 na gaveta. Perfeccionista sem obsessão e sem esforço, Caymmi compunha “devagarinho” e “aos pedacinhos”, como chegou a dizer.

A esse método correspondeu uma atitude de descompromisso com o mercado e comprometimento só com o público. Caymmi raramente compôs por encomenda e sempre cantou menos pelas circunstanciais avaliações comerciais de sua arte do que pela sua disposição. Quis e ganhou o bastante para poder curtir o “dolce far niente” de uma “vida de artista” (ou o ócio do ofício…).

Aliás, foi para tirá-lo da vadiagem que seu pai, o funcionário público Durval, neto de italiano, lhe arranjou seu primeiro emprego no jornal “O Imparcial”, de Salvador, como auxiliar de escritório, aos 16. Mas a convivência com a música começava já em casa – onde o pai tocava piano, violão e bandolim, e a mãe cantava – e prosseguia na rua, nos festejos do povo baiano. Desse modo, da primeira composição, uma toada sentimental intitulada “No Sertão”, de 1930, às primeiras apresentações em rádio, em 1935, foi um passo. O salto ele daria em 1939, já no Rio e com uma coleção de canções sobre a Bahia na bagagem.

Com a sua “O que É que a Baiana Tem?” na voz de Carmen Miranda, Caymmi entrou em cena para não mais sair. A associação, se foi determinante para a projeção nacional dele, também o foi para a construção da imagem internacional dela – Caymmi lhe ensinou os trejeitos que se tornaram inseparáveis da sua interpretação. Em 40, saía o seu primeiro disco, com “O que É que a Baiana Tem?” e “A Preta do Acarajé”, em duo com Carmen.

Data do mesmo ano, e com outra cantora, Stella Maris, o início de uma parceria que duraria de fato até que a morte os separasse, e da qual resultaria a outra parte da sua herança musical: os filhos Nana, Dori e Danilo Caymmi.

Costuma-se dividir a obra de Caymmi em duas fases/faces principais. Na primeira, tendo como referente uma Bahia pré-industrial e idealizada, sobressaem as canções praieiras – obras-primas como “O Mar” e “O Vento”. A segunda, “carioca” e urbana, põe em relevo os sambas-canções em cujas harmonias se viu um prenúncio da bossa nova – jóias tipo “Marina”, “Só Louco”, “Nem Eu” etc.

Há quem acrescente uma terceira, definida pelo predomínio de canções com forte acento afro-religioso. É quando ele intensifica sua relação com o candomblé, assumindo obrigações sócio-administrativas como Obá de Xangô do terreiro Axé Ôpô Afonjá, em Salvador, em 1969. Ele e seus grandes amigos Jorge Amado e Carybé.

Na verdade, todas constituem expressões distintas de uma mesma e sempre presente baianidade. Até a chamada fase carioca. Nesta, os casos – e descasos – amorosos são tratados com uma doçura que quase não se nota num compositor do Rio. Quanto às dissonâncias harmônicas, elas já estavam lá, no violão do período marinho-soteropolitano; à época, diziam que ele tocava errado: “Mas eu sempre achei que havia beleza fora do acorde perfeito”.

Caymmi viveu em Salvador só até os 24 anos, mas, como disse Vinicius de Moraes, “é difícil encontrar alguém mais baianamente dengoso que ele”. De fato, o Rio, aonde chegou em 1938, foi a sua principal sede. No Rio, Caymmi fez as mais diversas amizades nos meios artístico e jornalístico. Da esquerda à direita; dos padrinhos de casamento Jorge Amado, que o chamava de irmão caçula, e Samuel Wainer, que o chamou para uma coluna sobre rádio no “Última Hora”, nos anos 50, a Carlos Lacerda. De Rubem Braga a Carlinhos Guinle, com quem, segundo outro amigo, Fernando Lobo, a parceria funcionava nessa base: Dorival entrava com a música, e Carlinhos, com o uísque…

Caymmi foi gravado pelos maiores intérpretes da MPB, de Elis Regina e Gal, que lhe dedicou um álbum em 1976; de João Gilberto, que recriou três músicas suas em plena bossa nova, a Gil e Caetano. Nenhuma dessas gravações, contudo, se compara ao próprio Caymmi se interpretando. Ele próprio era convencido disso. Não porque fosse vaidoso – coisa que ele, naturalmente, era. Mas porque tinha plena consciência de si.

Sua famosa e, segundo Amado, “criadora” preguiça inspirou a divulgação de histórias folclóricas e a criação de anedotas gozadas. Durante um tempo, se contou muito esta: existiriam três ritmos na Bahia: o devagar, o muito devagar e o Caymmi. Eu mesmo tive uma prova de sua lentidão.

Em 1994, eu coordenava a área de música do Museu da Imagem e do Som de SP e quis trazê-lo para um depoimento. Conversávamos muito, toda semana, por telefone, mas na hora de decidir vir, ele sempre dava uma desculpa. Numa dessas, chegou a me propor que eu ligasse para ele num dia para marcarmos então o dia em que eu ligaria de novo para marcarmos enfim o dia em que viria…

Não Dá Pé


de “Vida Nova”, de Edu Leal.

2011_Edu_Leal_Vida_Nova_1024

Aqui, sem jacarandá,
Sem cambuci e sem jerivá,
Não dá, não dá;
Sem pau-marfim,
Sem resedá
E sem ipê,
Em SP,
Não dá, não dá,
Não dá pé!
Não dá pé!

Com tipuana e com pitangueira,
Aí dá pé, aí dá pé;
Sibipiruna, jabuticabeira,
Aí dá pé;
Com alfeneiro e com quaresmeira,
Aí dá pé, aí dá pé;
Pau-ferro, ipê-roxo, ipê-amarelo,
Aí dá pé.

Excesso
De cinza e escassez
De verde.
Extensas plantações
De prédios
E quarteirões
Inteiros
Sem uma árvore,
Ali em Santa Cecília e
Lá no Brás, lá na Sé.
Nenhum pé!
E só no mês de abril
Três mil
Já foram para o chão.
Ergueram mais torres altas.
Tal verticalização
Não dá pé!

Porém, com jacarandá,
Com cambuci e com jerivá,
Dá, sim, dá, sim;
Com pau-marfim,
Com resedá
E com ipê,
Em SP,
Dá, sim, dá, sim,
Sim, dá pé!
Assim, dá pé!

Aqui, sem jacarandá,
Sem cambuci e sem jerivá,
Não dá, não dá;
Sem pau-marfim,
Sem resedá
E sem ipê,
Em SP,
Não dá, não dá,
Não dá pé!

Show de Estrelas


de “Feito pra Acabar”, de Marcelo Jeneci

2010_Marcelo_Jeneci_Feito_pra_acabar_1024

Para Tomio Kikuchi

Era uma chuva, era um show de estrelas;
Chovia estrelas a granéu. (*)
Eram milhares de estrelas, uma chuva delas,
Caindo lá no chão do céu.

E
Diante da visão do firmamento,
Um pensamento vem ao coração:
De
Que cada um de nós não é senão uma estrela,
A brilhar no céu do chão.

Todos nós,
A brilhar, a brilhar,
Somos como luas e sóis
A girar, a girar…

E a chuva não cessava a sucessão
De pingos lá no chão do céu.
Era uma chuva de granizo de estrela em grão;
Chovia estrelas a granel.

E
Diante da visão do firmamento,
Na mente um sentimento se produz:
De
Que cada um de nós não é senão uma estrela,
Cada um, um ser de luz.

Todos nós,
A brilhar, a brilhar,
Somos sete bilhões de faróis,
A girar, a girar,
Tal como luas e sóis
A brilhar, a brilhar,
Como sete bilhões de faróis,
Todos nós, todos nós.

________________________

Variante:

(*) Chovia estrela pra dedéu.

O Pássaro Pênsil


de “O Pássaro Pênsil”, de Flávio Henrique

2008_Flavio_Henrique_Passaro_Pensil_1024

Parar
Pra não pensar,
Pra compensar,
Pra valer.
Parar
Pra não pirar,
Pra respirar,
Pra viver.
Parar
Pra não se atar,
Pra não se ater
Só ao ter.
Parar
Para se ater
Só ao ser.

Parar
Sem o fazer,
Sem afazer,
Sem dever.
Sem ver
Mais que horas são,
Mas que oração
Se dizer.
Orar
De cor, ação
De coração
E saber
Entrar-
Se, concentrar-
Se no ser.

Pense o espaço e o pássaro lá,
Pênsil, parado no ar;
Pense-o pairando, parando pra continuar…

Parar
Pra se calar,
Pra se falar,
Sem dizer.
Parar
Para zerar,
Para rezar,
Bendizer.
Parar
Pra desplugar-
Se desligar-
Se do ter.
Parar
Pra religar-
Se no ser.

Pense o espaço e o pássaro lá,
Pênsil, parado no ar;
Pense-o pairando, parando pra continuar…

PAIS E FILHOS

show_SESC_2006_Luiz_Melodia_e_Mahal_1024

show_SESC_20070213_Beto_Gabriel_e_Ian_Guedes_1024

show_SESC_20070601_Wandi_Doratiotto_e_Danilo_Moraes_Mario_Manga_e_Mariana_Aydar_1024

show_SESC_20060914_Caetano_Veloso_e_Moreno_Veloso_1024

show_SESC_20070331_Baby_do_Brasil_Nana_Shara_e_Zabele_1024

show_SESC_20070502_Ivan_e_Claudio_Lins_1024

show_SESC_20070710_Pais_e_filhos_1024

show_SESC_2006_Moraes_Moreira_e_Davi_Moraes_1024

Série de espetáculos com concepção e direção artística de Carlos Rennó, realizada em diferentes unidades do Sesc de São Paulo em 2006-7, reunindo em cada edição integrantes cantores e/ou compositores de duas gerações de uma mesma família musical. A série teve as seguintes apresentações:

Caetano e Moreno Veloso;
Moraes Moreira e Davi Moraes;
Edu e Bena Lobo;
Ivan e Claudio Lins;
Beto, Gabriel e Ian Guedes;
Baby do Brasil, Nãna Shara e Zabelê;
Luiz Melodia e Mahal;
Mário Manga e Mariana Aydar, Wandi Doratiotto e Danilo Moraes;
Joyce, Tutty Moreno, Nelson Ângelo, Clara Moreno e Ana Martins.

Coragem, Coração


de “Inclassificáveis”, de Ney Matogrosso

2008_Ney_Matogrosso_Inclassificaveis_1024

Ó meu querido amigo,
Conte comigo
E com a minha força.
Pra que cê finalize
A sua crise,
Como eu não há quem torça.

No meio dessa bruma,
É cada uma
Que a gente às vezes engole…
Mesmo com essa porra,
Cara, não corra;
Eu sei que não tá mole.

Tá duro, mas enfrente,
E siga em frente,
Que do seu lado eu sigo.
E antes que um vento assopre-o,
Diga a si próprio,
Meu amigo:

“Coragem, coração, se joga!”
Como corações se jogam.
Então, se liga só no slogan:
Coragem, coração, se joga!,
Que eu te dou a minha mão.
Enquanto alguém no chão se droga,
Coragem, meu irmão, se joga!

Respire fundo como um yogue;
Saia pro mundo, caia do blog;
Na batida da vida se jogue.

Na falta de esperança,
Auto-confiança
E de auto-controle,
Vou ser o solidário
Ser que o ampare, o ser
Que vai comparecer.

E antes que um vento assopre-o,
Diga a si próprio,
Meu amigo:

“Coragem, coração, se joga!”
Como corações se jogam.
Então, se liga só no slogan:
Coragem, coração, se joga!,
Que eu te dou a minha mão.
Enquanto alguém no chão se droga,
Coragem, meu irmão, se joga!

Enquanto alguém no chão se droga
Coragem, coração!

Lema


de “Inclassificáveis”, de Ney Matogrosso

2008_Ney_Matogrosso_Inclassificaveis_1024

Não vou lamentar
A mudança que o tempo traz, não,
O que já ficou para trás
E o tempo a passar sem parar jamais.

Já fui novo, sim; de novo, não…
Ser novo pra mim é algo velho.
Quero crescer,
Quero viver o que é novo: sim,
O que eu quero, assim,
É ser velho.

Envelhecer,
Certamente com a mente sã,
Me renovando,
Dia a dia, a cada manhã,
Tendo prazer,
Me mantendo com o corpo são –
Eis o meu lema,
Meu emblema, eis o meu refrão.

Mas não vou dar fim
Jamais ao menino em mim,
Nem dar de não mais me maravilhar
Diante do mar e do céu da vida.

E ser todo ser, e reviver,
A cada clamor de amor e sexo,
Perto de ser
Um deus e certo de ser mortal,
De ser animal
E ser homem,

E envelhecer,
Certamente com a mente sã,
Me renovando,
Dia a dia, a cada manhã,
Tendo prazer,
Me mantendo com o corpo são:
Eis o meu lema,
Meu emblema, eis o meu refrão.

Eis o meu lema,
Meu emblema, eis minha oração.

Esse Rio


de “Vicente”, de Vicente Barreto

2008_Vicente_Barreto_Vicente_1024

Veja só esse rio,
Que lentamente flui,
E o fio
Que se dilui
Nesse rio
E o polui.

Eu já tomei banho aqui,
Antes o meu pai tomou;
Água que daqui bebi,
Ih, sujou…
Era linda e límpida;
Hoje nela se espalhou
Uma espuma química;
Oh que horror…

Um saco plástico
Flutua à sua flor,
E ao redor
Turva o ar
Um fedor
De amargar.

E eu já tomei banho aqui,
Antes o meu pai tomou;
Um lugar sagrado se
Degradou.
Ói só o que o homem fez!
Era necessário? Não.
Ói só que insensatez!
Sem-razão!

Carcaça de automóvel, peça de museu:
É pau, calhau, metal, papel;
É tanto objeto;
É tão abjeto:
É dejeto,
É pneu,
É garrafa pet…
Água igual tapete
Mal reflete
O alto céu.

E eu já tomei banho aqui.
Antes o meu pai tomou.
Um lugar sagrado se
Degradou…
Hoje é um depósito
De lixo aquele rio;
É um despropósito,
-ta que pariu!

É Fogo


de “Labiata”, de Lenine

2008_Lenine_Labiata_1024

Éramos uma pá de “apocalípticos”,
De meros “hippies”, com um “falso” alarme…
Economistas, médicos, políticos
Apenas nos tratavam com escárnio.

Nossas visões se revelaram válidas,
E eles se calaram – mas é tarde.
As noites ’tão ficando meio cálidas…
E um mato grosso em chamas longe arde:

O verde em cinzas se converte logo, logo…

É fogo! É fogo!

Éramos “uns poetas loucos, místicos”…
Éramos tudo o que não era são;
Agora são – com dados estatísticos –
Os cientistas que nos dão razão.

De que valeu, em suma, a suma lógica
Do máximo consumo de hoje em dia,
Duma bárbara marcha tecnológica
E da fé cega na tecnologia?

Há só um sentimento que é de dó e de malogro…

É fogo… é fogo…

Doce morada bela, rica e única,
Dilapidada – só – como se fôsseis
A mina da fortuna econômica,
A fonte eterna de energias fósseis,

O que será, com mais alguns graus Celsius,
De um rio, uma baía ou um recife,
Ou um ilhéu ao léu clamando aos céus, se os
Mares subirem muito, em Tenerife?

E dos sem-água o que será de cada súplica, de cada rogo?

É fogo… é fogo…

Enquanto a emissão de gás carbônico
Sobe na América do Norte e na China,
No coração da selva amazônica
Desmatam uma Holanda: uma chacina!

Ó assassinos bárbaros frenéticos!
Ó gente má, ignara, vil, ignóbil!
Ó cínicos com máscara de céticos!
Ó antiéticos da ExxonMobil!

O estrago vai ser pago pela gente pobre toda;

É foda! É foda…

Em tanta parte, do Ártico à Antártida,
Deixamos nossa marca no planeta:
Aliviemos já a pior parte da
Tragédia anunciada com trombeta.

Mais que bilhões de vidas, é a vida em jogo.

É fogo.

O Pássaro Pênsil


de “Da Maior Importância”, de Elisa Paraíso
2010_Elisa_Paraiso_Da_Maior_Importancia_1024

Parar
Pra não pensar,
Pra compensar,
Pra valer.
Parar
Pra não pirar,
Pra respirar,
Pra viver.
Parar
Pra não se atar,
Pra não se ater
Só ao ter.
Parar
Para se ater
Só ao ser.

Parar
Sem o fazer,
Sem afazer,
Sem dever.
Sem ver
Mais que horas são,
Mas que oração
Se dizer.
Orar
De cor, ação
De coração
E saber
Entrar-
Se, concentrar-
Se no ser.

Pense o espaço e o pássaro lá,
Pênsil, parado no ar;
Pense-o pairando, parando pra continuar…

Parar
Pra se calar,
Pra se falar,
Sem dizer.
Parar
Para zerar,
Para rezar,
Bendizer.
Parar
Pra desplugar-
Se desligar-
Se do ter.
Parar
Pra religar-
Se no ser.

Pense o espaço e o pássaro lá,
Pênsil, parado no ar;
Pense-o pairando, parando pra continuar…