Arquivo da categoria: Textos

Geraldo Pereira

Escrito em 2002 para a série de sites “Os Inventores da Música Brasileira”, do portal UOL

O criador do samba sincopado

Geraldo Pereira ocupa um lugar de destaque entre os compositores de música brasileira dos anos quarenta e da primeira metade dos anos cinquenta, como o criador maior de uma forma de samba chamado de sincopado. Seus sambas, muito inventivos, apresentavam divisões rítmicas inéditas em seu tempo, sendo considerados predecessores da bossa nova.

Neles, o ritmo é acentuado pelo uso – ou melhor, pelo abuso – das síncopes. As notas são abreviadas ou alongadas, retendo-se ou estendendo-se a respiração; dessa forma, a melodia adianta ou atrasa, facilitando a subdivisão tônica da frase musical. Para o pesquisador Jairo Severiano, o sambista tem um papel relevante “no processo de evolução do samba através da valorização das síncopes e do emprego de determinadas resoluções harmônicas inusitadas nas composições da época”.

Há quem encontre as origens da revolucionária divisão rítmica de João Gilberto nas síncopes de Geraldo Pereira. “O samba dele era leve e cheio de divisões rítmicas: isto sempre me chamou atenção. Ele não tinha consciência disso, mas foi um inovador na música popular brasileira na década de quarenta”, disse, certa vez, o próprio João. O papa da bossa nova, em pleno florescer e vigência do movimento, chegou a gravar “Bolinha de Papel”, de Geraldo.

Realmente, era preciso um compositor muito bom para inventar algo de fato novo e original, frente ao que já haviam feito Noel Rosa, Ismael Silva, Ary Barroso e outros criadores do primeiro time do samba carioca, nos anos trinta. Foi quando entrou em cena Geraldo Pereira, com seu samba sincopado, uma espécie de derivação do samba telecoteco (este, situado ritmicamente entre o choro o samba do Estácio, e também um samba de morro).

De acordo com o pensamento de Cyro de Souza (emitido para os autores de “Um Certo Geraldo Pereira”, biografia do compositor), Geraldo partiu do samba telecoteco, que encheu de nuances, para fazer uma bossa nova…

Sambista intuitivo, sambas elaborados

Geraldo Pereira foi um dos três grandes compositores que Minas Gerais deu à música popular brasileira pré-bossa nova. Como ele, nascido em Juiz de Fora, também eram mineiros Ari Barroso, natural de Ubá, e Ataulfo Alves, de Miraí. Como esses, ou até mais, ele também se carioquizou. Sua formação musical, cultural e existencial se deu na privilegiada região do morro de Mangueira, no Rio de Janeiro.

Apesar da marca de artista intuitivo e espontâneo, seus sambas eram muito elaborados. As síncopes constituem a sua principal singularidade, mas não a única. Conjugando letras e músicas de maneira peculiaríssima, neles palavras e sons parecem gingar e rodopiar, equilibrando-se elegantemente com um pé no chão e outro no ar, como num lance de capoeira.

A esmagadora maioria de suas músicas fala de amor, ou seja, de mulheres – também o tema principal de sua vida particular. Ele teve muitas; a principal foi Isabel, inspiradora de alguns grandes – e inspirados – sambas.

Alto, forte e brigador, suas histórias de valentia fizeram fama. O sambista se tornou personagem lendária. Dizem – a frase é do cantor Jorge de Castro – que ele “caminhava gingando, andar de malandro”. Malandro, sim, mas não vagabundo. Pelo contrário, era um grande batalhador, ciente de que essa era a única saída para a sua difícil condição de preto pobre – mais exatamente, mulato puxado para negro.

Fazia sucesso, mas não ganhava dinheiro – samba não dava grana naqueles tempos. Morreu pobre. E novo: com apenas 37 anos, em consequência de um soco que levou numa briga com outro valente do Rio da sua época, o também malandro Madame Satã – um negro homossexual, mas muito forte e brigão. O machão Geraldo Pereira acabou sendo morto por um homem afeminado.

Clássicos, intérpretes e parceiros

Geraldo Pereira desenvolveu toda a sua obra compositória em não mais que dezessete anos (morreu com apenas 37 anos, em 1955). Nesse espaço de tempo, deixou editadas 77 músicas, sambas na sua quase totalidade, e praticamente todos gravados.

Ciro Monteiro – o maior cantor de samba de todos os tempos, na opinião respeitabilíssima de Paulinho da Viola – foi o seu principal intérprete. O próprio estilo de cantar de Ciro se situa nas origens da invenção do samba sincopado. Alguns dizem mesmo que Geraldo se inspirava em sua interpretação para compor. Ciro foi quem lançou seus dois sambas de maior sucesso (coincidentemente, o primeiro e o último hit de sua carreira): “Falsa Baiana”, seu maior clássico, e “Escurinho”. Além de “Acabou a Sopa”, “Até Hoje Não Voltou”, “Pisei num Despacho” e “Você Está Sumindo”.

Quem mais gravou músicas de Geraldo não foi, no entanto, Ciro, mas o próprio compositor – que também investiu na carreira de cantor: quinze vezes (para doze de Ciro). Geraldo não possuía muita voz, mas esbanjava ginga vocal, como atestam as auto-gravações de clássicos como “Escurinha”, “Cabritada Mal-sucedida”, “Pedro do Pedregulho” e “Ministério da Economia”.

Em número de registros, os outros principais intérpretes do sambista foram Roberto Paiva (que o lançou, com “Se Você Sair Chorando”), Déo e Moreira da Silva. Blecaute (que gravou “Chegou a Bonitona” e “Que Samba Bom”) e Roberto Silva também estão entre os mais importantes.

A grande maioria das músicas de Geraldo Pereira leva também a assinatura de algum parceiro. Arnaldo Passos foi o mais frequente. Elpídio Viana, Ary Monteiro, José Batista e Augusto Garcez também são creditados. Consta que nessas parcerias Geraldo costumava fazer as primeiras partes, ou a maior parte dos sambas, deixando para o parceiro completá-los.

Novos intérpretes

Aqui, a cronologia do resgate de uma obra, cuja importância somente passou a ser melhor avaliada após a morte de seu autor, ocorrida em 1955.

1961 – O inventor da bossa nova, João Gilberto, grava “Bolinha de Papel”, no auge do movimento.
1969 – “Que Samba Bom” é relançado por Elza Soares, uma das mais talentosas sambistas brasileiras de todos os tempos.
1971 – O modernizador do samba de tradição Paulinho da Viola, num de seus resgates de pérolas da velha guarda, registra “Você Está Sumindo”.
1972 – Gal Costa grava “Falsa Baiana” num dos álbuns mais importantes de sua carreira, “Gal a Todo Vapor”.
1974 – Chico Buarque revive “Sem Compromisso” em seu disco “Sinal Fechado”.
1980 – Jackson do Pandeiro, o rei das divisões rítmicas inventivas na música nordestina, recria “Pisei no Despacho”.
João Nogueira inclui “Escurinha” e “Você está Sumindo” em seu álbum “Wilson, Geraldo e Noel”.
1981 – O selo Eldorado lança o disco “Evocação V”, uma espécie de songbook de Geraldo Pereira com as participações de: João Nogueira, Jackson do Pandeiro, Christina, Roberto Silva, Jards Macalé, Elton Medeiros, Monarco, Nelson Sargento, Vânia Carvalho, Grupo Tarsis, Marçal e Batista de Souza.
1982 – O compositor é homenageado no Carnaval do Rio de Janeiro, no enredo “Geraldo Pereira, Eterna Glória do Samba”, da Escola de Samba Unidos do Jacarezinho.
1984 – Lançamento do livro “Um Certo Geraldo Pereira” (Funarte), biografia do compositor escrita por Alice Duarte Silva de Campos, Dulcinéa Nunes Gomes, Francisco Duarte Silva e Nelson Sargento.
Lançamento do disco “Geraldo Pereira” (Funarte), de Bebel Gilberto e Pedrinho Rodrigues, com interpretações dos maiores sucessos do sambista.
1994 – Luiz Melodia faz um show inteiramente dedicado à obra de Geraldo Pereira, no auditório do MIS (Museu da Imagem e do Som) de São Paulo, dentro da série “Sempre-Novas”.
1997 – Gal Costa regrava “Falsa Baiana” em seu bem-sucedido comercialmente CD “Acústico MTV”.
2000 – O cantor e compositor Nelson Sargento, da Velha Guarda da Mangueira, acompanhado do grupo vocal Arranco de Varsóvia, faz shows no Rio e em São Paulo cantando somente músicas de Geraldo Pereira.

Nelson Cavaquinho

Escrito com Paquito e publicado em 2001 na série de sites “Os Inventores da Música Brasileira”, do portal UOL

Único, inconfundível, original

A voz negra, rouca e suja. O toque rústico do violão. As cordas graves – a baixaria – conduzindo a harmonia. As melodias tristes de contornos incomuns. Os temas da morte e do sofrimento repetidos obssesivamente. As imagens e resoluções poéticas insólitas. Estas características se combinam na obra de Nelson Cavaquinho, formando um todo único, indissociável, e conferindo ao sambista um lugar especial entre os artistas mais originais da música popular brasileira de todos os tempos.

Nelson Cavaquinho foi contemporâneo dos principais nomes da chamada era de ouro da música popular brasileira, que durou dos anos trinta até o início da década de quarenta. Ao contrário daqueles, porém, ele permaneceu na condição de marginalizado durante a maior parte de sua carreira. O cantor e compositor não se preocupava com a comercialização de suas músicas, preferindo tocar e cantar, como um trovador urbano, nos bares, pelas madrugadas.

Por isso, muitos de seus sambas ficaram longo tempo no ineditismo, até serem gravados – casos de clássicos como “Luz Negra”, “Rugas” e “Palhaço”. Suas músicas foram apenas eventualmente registradas em disco até os anos sessenta. Foi quando ele começou a obter o devido reconhecimento, com a redescoberta dos sambistas de morro pelos bossa-novistas da segunda geração. Naquela década e na seguinte, Nelson viveu finalmente o ponto alto de sua carreira.

No início dos anos setenta, no auge desse processo, ele já era sexagenário.

Guilherme de Brito, o parceiro ideal

Na obra de Nelson Cavaquinho ressaltam, em quantidade e em qualidade, as músicas que ele fez com um de seus vários parceiros, o mais importante deles: Guilherme de Brito. Ao iniciarem seu trabalho, nos anos cinquenta, os dois fizeram um pacto de só comporem juntos, formando uma dupla que bem poderia ser chamada “o Lennon e McCartney do samba”.

Enquanto Nelson era um boêmio de passar dias e noites seguidas nos bares, Guilherme, opostamente, trabalhou na Casa Edson (antiga fábrica de discos) durante trinta anos. Mas a afinidade estética superou as diferenças de comportamento, e eles produziram uma série de sambas antológicos – um deles, o famoso “A Flor e o Espinho”, que possui um dos inícios mais fortes e surpreendentes dentre as canções já escritas em língua portuguesa: “Tire o seu sorriso do caminho/ Que eu quero passar com a minha dor”.

Da dupla nasceram ainda, entre outros: “Folhas Secas”, “Pranto de Poeta”, “O Bem e o Mal” e “Quando Eu Me Chamar Saudade”. No trabalho da dupla, não havia rigidez na divisão de papéis. Ambos faziam letra e música e, segundo depoimento de Guilherme de Brito, “no final ele passou a fazer a melodia, e eu a letra”. Em “A Flor e o Espinho”, por exemplo, a primeira parte é de Guilherme, e a segunda, de Nelson.

Os outros parceiros de Nelson, anteriores a Guilherme, foram ocasionais, e muitos entraram na parceria em troca de favores, como era costume na época. Algumas exceções foram Jair do Cavaquinho, da escola de samba Portela, com quem ele compôs “Eu e as Flores”, e Cartola, companheiro de boemia e de Mangueira, co-autor de “Devia Ser Condenada”.
A parceria com Zé Kéti é curiosa: como pertenciam a sociedades arrecadadoras diferentes, não podiam assinar conjuntamente uma composição, segundo uma regra vigente na época. Por isso, a Nelson (e a dois outros, José Alcides e José Ribeiro de Souza) foi creditado o samba “Nome Sagrado”, também de Zé; e a este, sozinho, “Meu Pecado” (gravado por Paulinho da Viola), composto pelos dois.

O tema da morte

A morte é obsessão na obra de Nelson Cavaquinho. Eis um dos maiores fatores de originalidade em sua arte: não se encontra, entre os compositores brasileiros, um outro que tenha feito desse – um assunto difícil por excelência – o tema principal de suas obras, sendo isso raro também na música popular de qualquer país.

Em Nelson, a angústia da morte e a efemeridade da vida incidem, às vezes inesperadamente, em canções falando de amor ou da escola de samba do compositor (“Folhas Secas”, por exemplo). Mesmo um símbolo poético como a flor – comumente associado à feminilidade, à mulher, à delicadeza – pode se apresentar na sua conotação funérea. Como em “Eu e as Flores”: “Quando eu passo perto das flores/ Quase elas dizem assim:/ ‘Vai, que amanhã enfeitaremos o seu fim’”.

A que poeta ocorreria a inspiração – levada à ousadia – de fazer um samba revelando ter dado enfim o beijo há tanto tempo esperado em sua amada, agora que ela está morta, no caixão? Pois foi o que Nelson Cavaquinho – e Guilherme de Brito – fizeram, em “Depois da Vida” (gravada por Paulinho da Viola, em 1971).

O conflito básico presente nas letras dos seus sambas pode ser sintetizado no paradoxo final de “Rugas”: “Feliz daquele que sabe sofrer”. A consciência de que ser feliz consiste apenas em administrar o sofrimento e a tristeza leva à crença num cristianismo popular e pessimista, no qual a caridade é uma virtude. A todos só restaria levar a vida tendo compaixão uns dos outros; afinal existir é sofrer, e viver bem é sofrer sem demonstrar. A única saída, portanto, se torna o descanso final, a morte, paradoxalmente também fonte de sofrimento, pois implica perda.

Abordando a morte ou não, Nelson transforma o lugar-comum em incomum. O imprevisto caracteriza também várias outras imagens lançadas nas letras curtas e fortes, ao mesmo tempo simples e surpreendentes, de seus sambas: “A luz negra de um destino cruel/ Ilumina o teatro sem cor/ Onde estou desempenhando o papel/ De palhaço do amor”, canta ele, em “Luz Negra”. Letras despojadas na construção, mas ricas nas novas realidades que cria.

O significado de Mangueira

Nelson Cavaquinho começou sua história musical como um chorão – provavelmente vem do choro a imprevisibilidade de suas melodias. Nessa fase, seu instrumento era o cavaquinho: daí o apelido com que ficou conhecido.

Foi num segundo momento que ele conheceu o morro de Mangueira, devido a seu emprego como soldado da cavalaria da Polícia Militar do Rio de Janeiro. O contato com Cartola, Carlos Cachaça e outros bambas mangueirenses o transformou definitivamente num sambista.

Só então seu instrumento passou a ser o violão. Nelson o tocava de uma maneira muito especial: beliscando as cordas com o indicador e o polegar, tirando assim um som único – uma das principais peculiaridades de seu personalíssimo trabalho.

Mesmo tendo residido em Mangueira por apenas um ano e meio, a ela o compositor dedicou vários sambas, entre eles “Sempre Mangueira”, “Pranto de Poeta”, “Folhas Secas” e “A Mangueira Me Chama”. A Mangueira está para Nelson Cavaquinho assim como a Vila Isabel está para Noel Rosa, e a velha cidade de Salvador para Dorival Caymmi: trata-se de pátria utópica, motivo de canção e morada ideal do poeta.

Os principais intérpretes

Ciro Monteiro foi o primeiro grande intérprete da obra de Nelson Cavaquinho, responsável pelo seu primeiro sucesso como compositor, com a gravação de “Rugas”, em 1946. Dentre os cantores da mesma geração, Dalva de Oliveira (“Palhaço”) e Roberto Silva (“Notícia”) também lançaram importantes composições do sambista.

Nos anos sessenta, Nara Leão (“Luz Negra” e “Pranto de Poeta”) e, em seguida, Elizeth Cardoso (“A Flor e o Espinho” e “Luz Negra”) deram início a uma onda de descoberta e gravação de seus sambas. Esse processo veio a se realizar de fato na década seguinte.

Um número crescente de cantores da MPB passou então a incorporá-lo a seus repertórios. Entre eles, tornaram-se grandes divulgadores de sua obra os sambistas Paulinho da Viola (“Depois da Vida”, “Duas Horas da Manhã”), Clara Nunes (“Minha Festa”, “O Bem e o Mal”) e Beth Carvalho (“Folhas Secas”, “Miragem”). Elis Regina fez de “Folhas Secas” um grande sucesso, e Chico Buarque lançou “Cuidado com a Outra”.

Nos anos noventa, a jazzista Leny Andrade lhe dedicou um songbook, “Luz Negra – Nelson Cavaquinho por Leny Andrade”. Em 2000, a musa das novas gerações Marisa Monte registrou em CD um de seus sambas com Guilherme de Brito: “Gotas de Luar”.

O próprio Nelson só passou a gravar discos individuais nos anos setenta. E, no entanto, é ele, acompanhado apenas do seu violão, “sempre colado ao peito tão amargurado”, o melhor intérprete de si mesmo.

É impressionante a organicidade que se estabelece entre canto, acompanhamento, música e letra, quando ele interpreta seus sambas. O tema da morte e o tom de amargura que caracterizam os textos têm a sua correspondência no timbre da voz desafinada e na crueza do som do violão. Tudo – palavras e sons – parece falar a mesma coisa. Não é comum se observar isso com tanta densidade e intensidade.

Aqui, merecem lembrança os nomes de Dorival Caymmi, na música brasileira, e Robert Johnson, o grande criador do blues rural, na música norte-americana (ao qual, aliás, o poeta Augusto de Campos associou Nelson Cavaquinho). São dois outros exemplos dessa classe rara de compositores-cantores que interpretam suas criações com uma inteireza, uma integridade e uma expressividade tais, que ninguém mais – por melhor que seja o cantor – pode fazê-lo.

Orlando Silva

Publicado em 2001 na série de sites “Os Inventores da Música Brasileira”, do portal UOL

“O maior de todos os tempos”

Orlando Silva, o grande modernizador do canto brasileiro, foi para muitos o maior cantor que a música popular do Brasil produziu nos anos 30 e 40 – e para alguns, simplesmente o maior de todos os tempos já surgido no país.

Suas interpretações se tornaram famosas pelo fraseado flexível, pela emissão macia e pela dicção cristalina. Combinando perfeitamente beleza e potência vocal, seu canto, de uma suavidade natural, era sóbrio e viril, por um lado, ao mesmo tempo que ornado, delicado e sutil, por outro.

Orlando Silva possuía uma notável capacidade de controle e de modulação da voz. Numa mesma canção, podia variá-la de agudos com falsestes a tons bastante graves. Mas não tinha apenas afinação: exibia também muita bossa. Seu sentido rítmico era admirável, e ele não repetia a mesma divisão ao retornar à primeira parte, introduzindo-lhe sempre alterações.

O cantor emprestava sentimento e emoção à interpretação de cada música, sem contudo deixar que seu canto se transformasse em algo derramado. A par disso, deu uma nova dimensão ao microfone, demonstrando uma noção exata no seu uso – um fator importante numa época sem sofisticação tecnológica aplicada ao som.

Para tudo isso, Orlando Silva mostrou ter uma sensibilidade naturalmente moderna. Por tudo isso, transformou a arte de cantar entre nós, lançando um estilo único e original que se firmou como uma escola, servindo de modelo e referência para as gerações subsequentes de cantores brasileiros. A de João Gilberto, por exemplo.

“O Cantor das Multidões”

Orlando Silva foi o primeiro grande ídolo de massas que apareceu no Brasil. Nos anos do auge de sua trajetória, nenhum outro artista obteve tanta popularidade quanto ele no país. Suas apresentações ao ar livre atraíam então imensas concentrações de pessoas, daí ele ter recebido o epíteto de “O Cantor das Multidões”.

Seu sucesso nessa fase – segunda metade da década de 30, primeira da seguinte – já foi comparado ao que Frank Sinatra teve, mas somente alguns anos depois, nos Estados Unidos. Moças e mulheres gritavam e desmaiavam à sua aparição, correndo atrás dele para agarrá-lo ou rasgar-lhe a roupa. Nesse sentido, no contexto nacional, ele precedeu também, em quase trinta anos, a Roberto Carlos.

Mesmo com tanto êxito, Orlando Silva nunca abriu mão da qualidade do trabalho, a começar do repertório que gravou e cantou.

O ponto alto da sua carreira e da sua voz coincidiu com o tempo de contratado pela RCA Victor (hoje BMG), de 1935 a 1942. Mais ou menos a partir de 1945, porém, a voz começou a dar mostras de um problema que afetou a sua sonoridade cristalina, seu timbre perfeito e os seus agudos suavíssimos.

Orlando Silva se tornou o primeiro nome consagrado da música brasileira que sucumbiu ao uso de drogas pesadas. A sua ascensão meteórica teve um relativo ostracismo subsequente; da glória, consolidada pela paixão das massas, ele quase conheceu a obscuridade. Foi portanto uma trajetória tormentosa – e uma existência atribulada – a sua.

Apesar do problema vocal, sua interpretação se manteve a mesma até o fim de sua carreira, nos anos 70: excelente. Embora alguns (jornalistas sobretudo) considerem vertiginoso o declínio de sua voz, para outros (artistas principalmente), nenhum outro cantor do passado se comparou a ele mesmo em sua fase decadente. Entre estes se contam os cantores e compositores Caetano Veloso e Paulinho da Viola.

Modelo para a bossa nova e o Tropicalismo

Orlando Silva serviu de modelo e referência para dois dos mais importantes e prestigiados movimentos de modernização da música, da arte e da cultura brasileira no século 20: a bossa nova e o Tropicalismo.

Dentre os elementos da tradição brasileira, o cantor e violonista João Gilberto o escolheu como uma das bases a partir das quais construiu o edifício da bossa nova. Na origem da invenção joãogilbertiana, Orlando adquiriu uma importância capital, ao lado do compositor Dorival Caymmi e do cantor Ciro Monteiro, entre outros.

O estilo de João vem de Orlando, para ele “o maior cantor do mundo”. A contenção e a economia sem perda do colorido melódico do velhaguardista levaram o bossanovista a se influenciar por ele e a elegê-lo mestre. Não à toa, João desde sempre visitou clássicos de Orlando, como “A Primeira Vez”, “Preconceito”, “Curare” e “Aos Pés da Cruz”. Este samba chegou a ser gravado por Miles Davis, por causa de João – e, indiretamente, por causa de Orlando.

A maciez na emissão macia e a flexibilidade no fraseado foram o que o carioca legou ao baiano, segundo Caetano Veloso, co-autor de outra revolução estética e musical que também viu no “Cantor das Multidões” uma espécie de farol. Para o líder tropicalista, Orlando representou particular e especial interesse por ter sido ao mesmo tempo “um fenômeno de massa e um artista do maior refinamento”.

Mais do que isso, Caetano, assim como um companheiro de geração, Paulinho da Viola, se deixou influenciar pelas interpretações de Orlando e tomou seus principais valores como cantor como critério de avaliação de canto. Em referência a ele, acabou gravando outro de seus clássicos, “Lábios que Beijei”.

Ainda Caetano, sobre Orlando (em seu livro de reminiscências tropicalistas, “Verdade Tropical”): “Tinha uma voz bela e poderosa, mas não impunha exibicionisticamente sua potência vocal, antes amaciando a emissão nos agudos, o que, combinado com seu senso do fraseado, suas divisões rítmicas inventivas e a clareza da dicção, fazia dele um músico da canção”.

Esta última característica é de certa forma sublinhada também em outro livro, “Orlando Silva – O Cantor das Multidões”. Nele, o biógrafo Jonas Vieira advoga uma tese para a origem do estilo orlandiano, associando-a ao choro carioca, em cujo berço o artista nasceu, “constituindo-se no único cantor fruto desse gênero de música”. Um gênero de música popular elaborada, melodicamente sofisticada, cultuada pelos melhores músicos. Segundo o autor, Orlando “transportou toda a magia instrumental do choro para o canto, emprestando-lhe voz e poesia”.

O jornalista Ruy Castro também vincula as interpretações de Orlando ao choro, apontando ainda, especialmente nos foxes e nas valsas que ele gravou, uma influência do cantor Bing Crosby, o grande inovador, nos anos 20 e 30, do canto norte-americano. “É Crosby à brasileira, com fabulações de choro e uma exclusiva bossa sestrosa e carioca”,escreveu.

Belo repertório, belos arranjos

Um dos segredos para o nível da arte de Orlando Silva está na fina sensibilidade demonstrada pelo intérprete na seleção e promoção de um repertório de alta qualidade. Assinado por muitos dos melhores compositores da época, nele se alinham algumas dezenas de clássicos da música brasileira (ver Uma seleção de clássicos do intérprete).

Excelente como cantor de sambas, Orlando se mostrou, no entanto, insuperável nas canções lentas – sambas-canções e valsas, além de foxes. Esta parte do seu repertório constituía na mais adequada para o tipo de cantor, romântico, que era.

De sensibilidade ele também deu mostras na escolha dos criadores dos arranjos e do acompanhamento das suas gravações. O cantor estabeleceu uma relação perfeita, entrosada, com o maestro Radamés Gnatalli, que “arranjou” vários de seus sucessos e que se revelou um grande modernizador das orquestrações. Outro importante arranjador com que Orlando contou foi Pixinguinha.

Uma seleção de clássicos do intérprete

  • De Pixinguinha: “Carinhoso” (com João de Barro), “Rosa” (com Otávio de Souza) e “Página de Dor” (com Cândido das Neves).
  • De J. Cascata e Leonel Azevedo: “Lábios que Beijei”, “Juramento Falso” e “Meu Romance” (este, só de J. Cascata).
  • De Custódio Mesquita e Mário Lago: “Nada Além” e “Enquanto Houver Saudade”.
  • De Pedro Caetano e Claudionor Cruz: “Caprichos do Destino”.
  • De Assis Valente: “Alegria” (com Durval Maia).
  • De Noel Rosa: “Dama do Cabaré”.
  • De Benedito Lacerda e Humberto Porto: “A Jardineira”.
  • De Bororó: “Curare”.
  • De Wilson Batista e Marino Pinto: “Preconceito”.
  • De Zé da Zilda e Marino Pinto: “Aos Pés da Cruz”.
  • De Joubert de Carvalho: “Por Quanto Tempo Ainda”.
  • De Octavio Mendes, José Marcílio e Déo: “Súplica”.
  • De Ary Barroso: “Faixa de Cetim”.
  • De Ataulfo Alves e Mário Lago: “Atire a Primeira Pedra”.
  • De Lupicínio Rodrigues: “Brasa”.

O ato de cantar, segundo o cantor

“Um momento de extrema tensão vivida tanto pelo cantor como pelo ouvinte. E que precisa ser tratado com o máximo de suavidade e o máximo de impacto, num estado de concentração absoluta.
“O som transmitido pelo intérprete não pode ser muito forte nem muito fraco, mas modulado de forma que não gere desconforto. Não deve haver excesso de ruído nem escassez de som, isto é, não se deve gritar nem baixar a voz a ponto de o ouvinte perturbar-se ou sentir-se incomodado pela palavra mal emitida pelo intérprete.
“Trata-se de um ato difícil de realizar. Porque no momento em que se está cantando, as tensões são fortíssimas. A mínima falha pode ser fatal, derrubando o encanto geral do espetáculo.
“Deve-se também ser esperto e dosar a voz a fim de aproveitá-la com o máximo de precisão, tirando partido dos momentos em que a música pede elevação ou diminuição da voz, ou seja, nos agudos com falsetes e nos tons graves muito baixos – nas modulações.
“E explorar ao máximo as vantagens do potencial de voz, como a elevação de um tom para outro numa única emissão.”

Poucos nomes do canto brasileiro demonstraram tal clareza de consciência técnica da linguagem que dominava.

Na descrição da criação de seu estilo, Orlando Silva o comparou ao dos dois mais importantes nomes do canto brasileiro na época em que surgiu. Segundo afirmou, ele quis reunir o que Francisco Alves possuía em termos de voz e o que Sílvio Caldas possuía em termos de intepretação. Tinha-se, em um, o cantor, e em outro, o intérprete. Orlando buscou – e logrou – ser a síntese de ambos, cantor e intérprete.

O cantor também disse certa vez ter uma dívida com “O Rei da Voz”, pelos toques que recebeu deste no início de carreira. “A noção de aproximação e distanciamento do microfone, ou então o seu uso mais ou menos de lado para provocar um efeito de voz, constituía-se num jogo discreto mas importantíssimo entre o cantor e o seu público. Muito cedo aprendi isso – que com o rádio moderno se tornou mais fácil –, orientado pelo Chico Alves.”

João de Barro

Publicado em 2001 na série de sites “Os Inventores da Música Brasileira”, do portal UOL

Um compositor realmente popular

“Yes! Nós Temos Bananas”, “Touradas em Madri”, “Pastorinhas”, “Carinhoso”, “Pirata da Perna de Pau”, “Chiquita Bacana”, “Balancê”, “Cantores do Rádio”. Peças estabelecidas na nossa memória coletiva, essas músicas se mantêm populares até hoje, mesmo tendo sido compostas, na maior parte, há mais de 60 anos. De comum entre elas, uma única coisa: o nome do compositor carioca João de Barro.

Também chamado de Braguinha, ele é uma das figuras de vida e arte mais longas da história da música popular brasileira. Com mais de 400 criações (aí incluídas suas versões para canções estrangeiras), JB assina uma das maiores obras já produzidas por um compositor nacional. No início do século 21, é o remanescente mais longínquo e importante de uma época realmente de ouro de nossa canção: os anos 30, era fundante de – e fundamental para – tudo o que veio depois dela, da bossa-nova e do tropicalismo à MPB contemporânea.

O rei das marchas de carnaval

João de Barro, Braguinha, se especializou em marchas carnavalescas que fizeram enorme sucesso até perto do final dos anos 50. Alguns de seus clássicos nesse gênero chegaram a obter projeção internacional, como “Touradas em Madri” e “Chiquita Bacana” (além do samba-canção “Copacabana”).

Diferentemente do samba carnavalesco, uma criação tipicamente negra saída das classes humildes da população do Rio de Janeiro, a marchinha foi inventada e desenvolvida por compositores da classe média carioca. É o que conta Jairo Severiano em sua biografia de João de Barro, “Yes, Nós Temos Braguinha”. O pesquisador aponta também as principais características do gênero: “O ritmo alegre, saltitante; a melodia simples, fácil de cantar; a letra leve, satírica e bem-humorada”.

Dois compositores serviram para consolidar o prestígio da marcha carnavalesca: Lamartine Babo e João de Barro. Um fino senso de humor e um raro poder de observação foram decisivos para o sucesso de ambos.

Em Braguinha, Severiano destaca, como objetos fundamentais explorados por suas marchas, “a exaltação da mulher e a crônica do cotidiano. Esses temas, ele os desenvolveu num estilo que combina simplicidade, bom gosto e senso crítico, com doses certas de lirismo, humor e malícia”.

Parceiros e intérpretes

João de Barro se tornou o sucessor de outro grão-mestre do carnaval brasileiro, Lamartine Babo. Braguinha começou a compor tentando copiar Lalá, no início da década de 30. Da imitação passou à paródia, com “Linda Lourinha” (em resposta a “Linda Morena”, de Babo, do carnaval de 1933), chegando por fim à co-autoria, em “Uma Andorinha Não Faz Verão” e “Cantores do Rádio” (esta, uma “triceria” de JB, Lamartine e Alberto Ribeiro).

Alberto Ribeiro – autor, sozinho, de um clássico da música junina: “Sonho de Papel” – foi o parceiro mais constante de JB. A primeira autoria da dupla, “Deixa a Lua Sossegada”, satirizou o culto da imagem romântica da lua: “É madrugada;/ De longe eu vim./ Deixa a Lua sossegada/ E olha pra mim…” Das aqui citadas até agora, só não são dos dois “Pastorinhas” (com Noel Rosa) e “Carinhoso” (com Pixinguinha), além de “Pirata da Perna de Pau” e “Linda Lourinha”, só de Braguinha.

JB compunha assobiando, pois não “sabia” música. Com Ribeiro, dividia sons e palavras. E geralmente fazia só as letras das músicas compostas com os demais parceiros, entre os quais figuraram nomes como os de Alcir Pires Vermelho (co-autor de “Laura”) e Antonio Almeida (de “Vai com Jeito”).

Desses modos tiveram origem composições que se popularizaram nas vozes de Carmen Miranda, Mário Reis, Silvio Caldas, Orlando Silva, Francisco Alves, Carlos Galhardo, Carmen Barbosa, Emilinha Borba, Jorge Goulart e outros grandes intérpretes que se distinguiram nos anos 30, 40 e 50. Nos 60, ele seria regravado por Caetano Veloso; nos 70, por Chico Buarque, Maria Bethânia e Nara Leão e, especialmente, por Gal Costa, que estourou com “Balancê”; e nos 90, por Djavan.

Pré-bossanovista e pré-tropicalista

Marchas, sobretudo – mas não apenas. João de Barro também excursionou pelos terrenos da valsa, da toada, do samba, do samba-canção. Compostas neste gênero, aliás, se alinham duas músicas já tidas como precursoras da bossa-nova: “Laura” (parceria com A.P. Vermelho) e “Copacabana” (com A. Ribeiro), lançada por Dick Farney, em 1946.

Em matéria de antecipação, no entanto, o caso mais notável é o de “Yes! Nós Temos Bananas”, tropicalista – trinta anos antes! – na essência, na medula e na gênese: a marcha emprega um recurso artístico caro ao Tropicalismo, a paródia, tendo nascida como réplica a um fox americano em moda na época, “Yes! We Have No Bananas”. Não foi à toa, portanto, que Caetano Veloso a regravou em plena vigência do movimento, em 1967, movido talvez pela sua inclusão na revolucionária encenação de “O Rei da Vela”, do diretor Zé Celso Martinez Correa, naquele ano.

A precursora tropicalidade de Braguinha, porém, é evidenciada também por outra criação sua, a versão que fez para “Las Tres Carabelas” (“As Três Caravelas”). E que de novo o próprio Caetano, em dueto com Gilberto Gil, gravaram no álbum coletivo “Tropicália ou Panis etc Circensis”, em 1968.

Algo mais sobre “Yes! Nós Temos Bananas”. A par de suas conotações socio-econômicas, definindo um retrato a um tempo cômico e crítico das condições de nosso país, a música revela um outro componente distintivo do estilo de Braguinha e expressivo da brasilidade: o sexual. De fato, a malícia se faz presente em várias de suas canções, relacionada com o espírito do carnaval e do próprio brasileiro.

Clássicos da música infantil

Se por um lado muitas das canções de João de Barro são maliciosas, por outro, várias são por sua vez perpassadas por uma singeleza que caracteriza de modo especial uma parte significativa da sua vasta produção: a dirigida ao público infantil. Nenhum, dentre os grandes autores da história da MPB, se dedicou tanto a este filão como o criador (com Alberto Ribeiro) de “Capelinha de Melão”.

A popularidade de sua incursão no gênero – que incluiu dezenas de versões de canções americanas – é comparável à dos hinos que Lamartine Babo compôs para os clubes de futebol do Rio, tantas e tão conhecidas são as peças das adaptações de histórias infantis que fez. Alguns exemplos: “Chapeuzinho Vermelho”, “História da Baratinha”, “Pinóquio” e “Branca de Neve e os Sete Anões”.

Seus primeiros trabalhos do tipo coincidiram com o início das suas dublagens e traduções para filmes de Walt Disney no Brasil, em 1940. Desde 1935, JB já vinha trabalhando em cinema, tendo colaborado nos argumentos, roteiros, direção e trilhas dos históricos musicais “Alô, Alô, Brasil”, “Estudantes”, “Alô, Alô, Carnaval” e “Banana da Terra”.

Braguinha foi um polivalente em sua carreira, tendo também exercido a função de diretor artístico em gravadoras como a Columbia e a Continental. Nesta, se distinguiu ainda como produtor de uma coleção de discos infantis muito bem-sucedida comercialmente.

Lamartine Babo

Publicado em 2001 na série de sites “Os Inventores da Música Brasileira”, do portal UOL

O lugar de Lalá

Lamartine Babo foi um dos maiores compositores da época de ouro da história da música popular brasileira, a década de 30. Ao lado de nomes como Noel Rosa, Ary Barroso e Assis Valente, entre outros, ele se alinha no time dos criadores mais inventivos e originais, responsáveis pela formação do que veio a se chamar mais tarde de MPB.

Como Noel, Ary e Assis, da mesma geração, e como Dorival Caymmi, da posterior, LB (1904-1963) fixou rápida e definitivamente um estilo próprio no cenário musical nacional de seu tempo. Autor de marchas e sambas inconfundíveis, ele se distingue perfeitamente de qualquer outro grande marchista ou sambista brasileiro. O compositor, carnavalesco por excelência, se constitui “em um caso à parte, pela apurada sensibilidade e pelo fino humor de suas produções” – como escreveu seu biógrafo, Suetônio Soares Valença, em “Tra-la-lá” (edição Funarte, 1981).

Os clássicos de Lalá

O nome do carioca Lamartine Babo, ou simplesmente Lalá, como era carinhosamente chamado, é sinônimo de carnaval. É que a fase áurea de desenvolvimento de sua obra – de 1931 a 1937 – se pautou principalmente pela produção voltada para esse tipo de música. Naquele período, todo início de ano ele deu o tom do que ia ser cantado no Rio de Janeiro e em outros pontos do Brasil. Suas composições acabaram se consagrando como as mais expressivas no gênero em todos os tempos. Algumas se tornaram autênticos hinos da festa máxima do povo brasileiro.

“O Teu Cabelo Não Nega”, por exemplo, é uma das mais populares, senão a mais popular das marchas de carnaval já compostas. Mas ele compôs outras, num leque de grande variedade estilística. As românticas, como “Linda Morena”; as brejeiras, na linha de “Moleque Indigesto”; as maliciosas, do tipo de “Aí, Hem”. E entre seus clássicos carnavalescos figuram ainda “A Tua Vida É Um Segredo” e “Marchinha do Grande Galo”, além do samba “Rasguei a Minha Fantasia”.

Lalá não se limitou a esse repertório, porém. Investiu também com sucesso na expressão de outros aspectos da alma brasileira. Assim, perpetrou algumas canções sentimentais antológicas do nosso cancioneiro, como a sertaneja “No Rancho Fundo”, feita em parceria com Ary Barroso, e “Serra da Boa Esperança”. Além de valsas de um singelo romantismo, como “Eu Sonhei Que Tu Estavas Tão Linda” e “Mais Uma Valsa, Mais uma Saudade”.

Por outro lado, suas incursões no filão das músicas feitas para festas juninas resultaram em pelo menos duas das melhores composições no estilo: “Chegou a Hora da Fogueira” e “Isto É Lá com Santo Antônio”.

Por fim, dedicou-se à produção dos hinos dos grandes clubes de futebol do Rio, dos mais bonitos e conhecidos, dentre todos os já criados para times brasileiros: do Flamengo, do Fluminense, do Botafogo, do Vasco da Gama, do América – do qual era torcedor – e até do Bangu. Marchas de imensa popularidade entre nós, praticamente não passa uma semana no país sem que sejam executadas e entusiasticamente cantadas.

Canções de invenção

“Lamartine Babo, o verdadeiro artista da graça, do improviso, maravilhava a todos com versos humorísticos e frases cheias de espírito”. A sentença, colhida em um jornal do Rio nos anos 30, falava sobre uma de suas apresentações. Mas se aplica perfeitamente às suas canções, que o colocam entre os compositores-letristas brasileiros de maior inventividade do passado, do presente e do futuro.

Veja-se o caso de “Canção para Inglês Ver”. Obra-prima do nonsense popular brasileiro, é ao mesmo tempo uma sátira à influência americana e à moda da língua inglesa, no momento em que começam a se introduzir entre nós através do cinema falado (nesse sentido, guarda relações com “Não Tem Tradução”, de Noel Rosa, e “Good-bye”, de Assis Valente). Seus versos misturam palavras do português e do inglês deliciosamente rimadas, usando ainda termos franceses.

Outra tirada de bom humor de extração tipicamente lamartiniana é a rancheira “Babo…zeira”. Aqui, seu gosto por trocadilhos – e também sua auto-ironia – já se percebem no título. Numa passagem, chega a dizer: “Rancheira, o nome está dizendo,/ É rã que cheira…”.

Disparates como esse, de um dadaísmo ingênuo, fazem a graça também da sintomaticamente intitulada “Canção do A.B.surdo”, uma de suas parcerias com Noel Rosa. E com Noel ele compôs ainda “A.E.I.O.U.” (sobre a personagem Juju, que “foi pra Ásia e teve azia…”), classificada bem-humoradamente pela dupla como “marcha colegial”.

História do Brasil

Quem foi que inventou o Brasil?
Foi seu Cabral
No dia 21 de abril
Dois meses depois do Carnaval

Depois Ceci amou Peri
Peri beijou Ceci
Ao som do “Guarani”
Do “Guarani” ao guaraná
Surgiu a feijoada
E mais tarde o parati

Pelo espírito e pelo estilo, pelo tema e pela forma, essa composição carnavalesca de LB poderia tranquilamente ter sido criada pelo grande poeta modernista Oswald de Andrade, o autor de “Poesia Pau-Brasil” – não por acaso, um apologista do Carnaval brasileiro, em seu “Manifesto Antropófago”.

Certas bossas criadas por Lalá foram antecipadoras na sua modernidade. Que dizer da enumeração de “Senhorita Carnaval”: “Carioquíssima!/ Animadíssima!/ Renovadíssima!/ Nacionalíssima!/ Amabilíssima!/ Valiosíssima!/ Assanhadíssima!/ Luxuosíssima!”?

Ou então do jogo sonoro-linguístico de “Hino do Carnaval Brasileiro”, em que, pela exploração de um artifício simples mas de ótimo efeito, uma frase emenda na outra, o som da última sílaba de um verso dando início ao seguinte: “Cor do café, a nossa grande produção/ – São, são, são, são quinhentas mil morenas!”.

Mais de trinta anos depois, não seria outro o procedimento que Caetano Veloso empregaria em “Cara a Cara”, justamente na sua fase de maior dedicação à produção de músicas para carnaval, no começo dos 70. Desde o primeiro verso a letra faz a mesma brincadeira de som e sentido, culminando com: “De alegria/ ria, ria, ria, ria,/ Que a luz se irradia/ – Dia, dia, dia, dia,/ Dia de sol na Bahia”.

A musicalidade de Lalá

O talento do compositor LB não se reduziu ao seu desempenho como letrista. Ele foi também, reconhecidamente, de um senso musical admirável na criação de muitas de suas melodias e até na definição de vários arranjos que as vestiram.

“Um dos poucos compositores que sabiam exatamente o que queriam com suas músicas”: eis como o definiu certa vez Radamés Gnatalli, o grande maestro que – assim como Pixinguinha – se responsabilizou pelos mais bonitos acompanhamentos que se fizeram para as músicas de LB. “Ele descrevia todo o arranjo, cantando a introdução, meio e fim, solfejava acordes e sugeria partes instrumentais. A gente só fazia escrever”.

Lalá se notabilizou pela concepção das introduções instrumentais que colaboraram decisivamente para a fixação de canções suas como “Linda Morena”, “Chegou a Hora da Fogueira”, “Menina Oxigenê”, “2 a 2” e, acima de todas, a internacionalmente conhecida introdução de “O Teu Cabelo Não Nega”.

Os intérprete e a permanência da obra

LB foi cantado, gravado e lançado pelos mais significativos cantores do seu círculo no seu tempo. Mas sobretudo por Mário Reis, cuja voz, pequena, e tipo de interpretação, contida, despojada, moderna, combinava à perfeição com o espírito das suas canções. Sozinho ou em dupla com Francisco Alves ou mesmo com Lalá, Mário Reis constituiu-se no principal intérprete de LB, de quem aliás era grande amigo.

O próprio autor também se constitui num ótimo intérprete dele mesmo, principalmente das peças mais engraçadas de seu repertório, que teve ainda em Carmen Miranda outro intérprete importante e funcionalmente adequado. Francisco Alves e Carlos Galhardo completam o grupo de principais cantores da sua obra.

Uma prova da sua durabilidade já foi dada pelas regravações – e suas repercussões públicas – recebidas de artistas de gerações muito posteriores à de LB. Foram particularmente os casos de Erasmo Carlos (com “Eu Sonhei Que Tu Estavas Tão Linda”) nos anos 60, de Chico Buarque, Maria Bethânia e Nara Leão (“Cantores do Rádio”) nos anos 70, e de João Gilberto e Rita Lee (“Joujoux e Balangandãs”), As Frenéticas (“Linda Morena”) e Xitãozinho e Chororó (“No Rancho Fundo”) nos 80. Lalá vive para sempre.

Mais uma armação de Tom Zé

Publicado na “Folha de S.Paulo” (“Mais!”), em 18/3/2001, sob o título “As múltiplas faces do som”

No shopping center de variedades que é o vasto mundo do disco e do showbiz – o comércio de encantos da música popular contemporânea –, o que ele fez é um feito: depois de um grande disco, realizou outro grande disco. Pois é. Nem bem estávamos refeitos dos impactantes efeitos de “Com Defeito de Fabricação” (seu CD anterior) e mais uma vez Tom Zé nos pegou no contrapé: o lançamento de “Jogos de Armar – Faça Você Mesmo” (ambos pela gravadora Trama) constitui uma proeza, mais marcante ainda por ser inédita: trata-se da primeira obra discográfica realmente, literalmente, aberta já realizada por alguém no terreno da música popular produzida até estes dias, no Brasil e no mundo, pode-se dizer. Alguém tem notícia de um caso dessa natureza? É improvável.

Senão, vejamos. O artista prova que verdadeiramente preza a sua platéia: incita-a a participar da sua criação, a somar, a produzir também. Uma velha utopia artística dos anos 60 (o consumidor se tornar produtor) se concretiza no fim/começo de século. A tecnologia possibilita a materialização do sonho por meio de um “CD auxiliar”, “Cartilha de Parceiros”, algo antes imaginável, sim, mas quem o fizera?

Convém, no entanto, reconhecer a primazia não só dessa idéia em particular, mas também a inventividade, a originalidade, a simplicidade e a riqueza das idéias em geral. Como a dos instrumentos experimentais (armazenados há anos), os “instromzémentos”, cinco, finalmente fazendo a sua estréia em disco. De aspecto algo futurista, são todos bonitos e esquisitos (aos olhos e aos ouvidos), a começar (1) pela orquestra de herz, ou “hertzé”, um tipo diferente de sampler, de 78, “made in Brazil”: um sampler pré-sampler (o “hertzé”, como seu inventor ele mesmo diz, “é um som e uma sintaxe: funciona sintaxialmente”); (2) o buzinório; (3) o enceroscópio (eletrodomésticos como enceradeiras, aspiradores de pó, liquidificadores; microfones de contato captam não o ruído do motor, mas a vibração do metal); as canetas Lazzari (4); além (5) da serroteria (canos de PVC, madeira e outros materiais; um serrote faz o papel de arco de violino).

Mas afinal o que é tudo isso? Apenas a arte incorporando elementos trazidos pela vida (a mais benéfica das influências). No plano da composição, Tom Zé complexifica, aplicando o método da justaposição ao conceito comum de canção. Por vezes, as peças parecem se mostrar em múltiplas faces, cubista. Em matéria de formatos e gêneros musicais, dessa vez o eclético e inventivo compositor introduz em nosso léxico um novo ritmo-dança, o chamegá (como Luiz Gonzaga, o xaxado, em outra época; e entre outras formas de cruzamento (baião-acalanto, baião-lenda, samba-rap, chameguinho-choro), idiossincráticas e sincréticas, apresenta-nos a “maracapoeira” (maracatu no baixo mais capoeira no cavaquinho).

Ao mesmo tempo não deixa de traduzir uma tradição viva, a que ele se volta e que atualiza. Agora, intervém no Nordeste clássico, revisitando-o com uma versão esfuziante e energética de “Pisa na Fulô”, em que o forró se torna uma farra só e com a, possivelmente, mais diferente de todas (e são muitas) as releituras já forjadas de “Asa Branca”, em que baixo, guitarra e sanfona degeneram o baião, enquanto a zabumba o sustém.

Os arranjos retomam, como é habitual, sonoridades inabituais, instrumentações inusuais, vocalizações inusitadas, isto é: um bonitíssimo vocalise feminino simplesmente extasiante – “um orgasmo lógico-cartesiano-sonoro”, diz o seu fértil criador (em “Passagem do Som”); um deslumbrante som de assobios (em “Peixe Viva”), outra beleza fina nascida do cérebro do músico; cantos (em “Sonho da Criança-Futuro-Bandido da Favela, na Noite de Natal”) e outros acontecimentos sonoros paralelos de matizes e técnicas diversas.

As interpretações, inteligentes, estabelecem isomorfismos entre “motz et son”. Além disso, destacam as teatrais-criativas, funcionais, cômico-dramáticas vozes feitas pelo intérprete. “Last but not least”, há os ruidosos-musicais, bizarros sons dos “instromzémentos”.

A propósito, compósitos tomzeanos (compondo todo um refrão -o de “Desafio”, por exemplo) como “instromzémentos” colaboram para a valorização poética dos textos, instrumentalizados com recursos de várias espécies: aliterações e paronomásias (como os chamados “quebra-línguas” nordestinos, numa aprazível melopéia em “Conto de Fraldas”); “non sense” e trocadilhos (uma dúzia deles na série de “Jimi Renda-Se”); fragmentações vocabulares (“Chamegá”); e uma dezena de novas, cantáveis onomatopeias.

No plano temático, o tratamento mordaz, antipatético, sarcástico, de mazelas e tragédias nacionais, prostituição infantil, FMI, “globarbarização”, miséria… “Se eu pudesse atrasaria/ Esse relógio dois mil/ Pra rezar na primeira missa/ Pelo futuro do Brasil” (“Perisséia”, com Capinan). Aguda contundência. Inquietação. Humor crítico. Estranhezas. Sentido ético (e, contudo, auto-ironicamente, ele batiza tudo de “música do século passado”).

“Ele representa um novo pensamento cujas características talvez ainda não conheçamos; é alguma coisa que está prestes a chegar. Ele desenvolve um estilo muito próprio, algo que funde, pode-se dizer, praticamente todas as características que surgiram ultimamente na música, como a superação de certos dualismos, como consonância e dissonância, belo e feio. É um artista que não tem medo, que vai adiante, que apresenta uma arte capaz de transformar as pessoas que a consomem. Para mim, essa é a função principal do artista”, disse um Hans-Joachim Koellreuter emocionado (profetizou, é mais exato dizer).

Não admira, portanto, a admiração da rapaziada que o descobriu na década passada. Aos 64 anos, poucos permanecem tão novos (dirá talvez Augusto de Campos) como ele se mantém. Ou tão singulares (como provavelmente preferirá, por sua vez, Miguel Wisnik, o outro Zé da cena paulistana de Arrigo e Arnaldo a Tom Zé e Zé Miguel: de A a Z na paulicéia desvairada). De fato, quase ninguém se parece tanto apenas consigo mesmo.

Entre tantos gênios que produzem sob a inspiração que cai do céu, partindo sempre do zero, compondo célula por célula, na escuridão completa, totalmente sozinho, ele é um antigênio total. Mas genial. Com suas imperfeições (felizmente). Com suas contribuições e até com seus “arrastões” (como ele, com desconcertante franqueza, chama os seus empréstimos e apropriações). Com seus requintes e suas singelezas.

Tiremos nosso chapéu e aceitemos o convite que ele gentilmente nos faz com este recém-lançado CD. Arte e vida sorriem juntas, outra vez. O que o disco contém alenta, emociona, informa, sensibiliza, entretém. Esses “Jogos” causam prazer estético. Este, o maior, pode-se dizer, de seus méritos.

P.S.: Se não se trata de “bad boy”, “bom rapaz” também está longe de ser. Apocalíptico, sim, com certeza, é. Tom Zé: um eterno rebelde tropicalista, com Schoenberg, contraponto clássico e serialismo de um lado, Zeca Cachangá, Xanduzinha e “cê-cê de marré-deci” de outro.

Radicais MCs

Publicado na revista “Época” em 10/8/1998, sob o título“Radicais MCs – contundentes na forma e na temática”

A radicalização da violência social no Brasil não poderia deixar de ter sua expressão igualmente violenta e radical na música brasileira: os Ra¬cionais MC’s. Já vão longe os tempos em que Chico Buarque, nos anos 60, começou a obra que lhe renderia o epíteto de “poeta social” da MPB. Nos anos 90, os mais novos poetas so-ciais de nossa música atendem pelos nomes de Mano Brown e Edy Rock.

Comum a um e outros, há a ideolo¬gia, de esquerda. Em Chico, porém, existe um componente utópico que seria pouco provável num jovem de hoje – menos ainda em um da perife¬ria paulistana. De origem abastada, ele interpreta magistralmente uma tragédia a que assiste com envolvi¬mento e humanidade. Já os Racionais não apenas narram, mas são perso¬nagens reais desse filme de horro¬res que é o processo de miserabilização num país com um índice de desi¬gualdade quase sem igual no mun¬do. Mais importante: a par das signi¬ficações políticas e intenções de cons-cientização, suas letras são de alta qualidade artística.

Versos simples mas elaborados; ima¬gens claras e fortes; histórias bem desenvolvidas, personagens bem carac¬terizados. Uma poesia-vida usando a linguagem agressiva dos jovens ne¬gros de regiões pobres de São Paulo, entrecortada de gírias e palavrões, em raps de duração incomum. Sem concessões. Em processo de absorção, mas sem perder a contundência de seu dis¬curso político, poético. Éticos, os Ra¬cionais indicam a existência de digni¬dade em meio à vergonha nacional; ao descalabro. Não fosse tanta treva e tan¬ta sem-razão, talvez não houvesse Racionais. Se há Racionais, há luz.

Vocalização de Antunes coisifica sua poesia

Publicado na “Folha de S.Paulo” (“Ilustrada”), em 26/9/1997, sob o título “Antunes une forma e som”

O CD “Dois ou + Corpos no Mesmo Espaço”, acoplado ao livro homônimo, é mais uma pequena amostra do complexo conjunto de visões e vivências poéticas muito particulares em que consiste o instigante trabalho de Arnaldo Antunes, agora numa bem-sucedida transposição sonora.

Nele reencontramos, apropriadamente (isto é: estruturalmente) materializados no plano vocal, os mesmos elementos presentes na poesia de marcada caracterização visual de Antunes, como seus sugestivos jogos linguísticos e suas sintaxes rebeldes, de leituras simultâneas.

Assim, por exemplo, na peça-título, à medida que cada fonema é recortado, a pronúncia promove paradoxalmente a multiplicação de corpos-sílabas no espaço do som a que parece aludir a máxima do poema (“Dois ou mais corpos no mesmo espaço se multiplicam…”).

Do mesmo modo, na voz de Arnaldo soa, ou pressente-se, o ritmo irregular das ondas em “O Mar”. E o agá gagueja, quase silencia ou quase ecoa em “Agá”. Isomorfismo em poesia falada, correspondência íntima entre forma, sentido e som. No CD, os treze poemas viram palavras-coisas, como Sartre sugeriu que a poesia é.

Sob tais aspectos, o disco constitui mais uma experiência importante, depois do divisor de águas “Poesia é Risco”, de Augusto de Campos e Cid Campos. Só que, diferentemente deste, “Dois…” não emprega outro instrumento que não a voz.

Nesse sentido, eis, enfim, entre nós, um poeta com voz – clara, bela, firme, forte (melhor dizendo, um poeta com vozes, pois são várias as que usa). Quero dizer: um experto na oralização da palavra poética em suas dimensões cantada, falada, gravada, sampleada e editada.

O Brasil não possui uma tradição de leitura de poesia. Ezra Pound ou Dylan Thomas recitando seus poemas é algo maravilhoso, envolvente, impactante, não dando para dizer o mesmo de imensos poetas nossos como Drummond ou Cabral em suas próprias vozes. E se eles são “interpretados” por atores, aí podemos muitas vezes esperar pelo pior, estes pecando pelo excesso, aqueles, pela escassez.

Tal panorama começa a mudar. Quando o processo se consumar, a atuação de Arnaldo Antunes – com seu ótimo timbre, seu domínio do ritmo, seu ataque irresistível – terá sido decisiva ou, no mínimo, colaborado muito.

Por ora, não deixa de ser significativo que um dos mais promissores sinais dessa mudança parta de um poeta-vocalista, que se move na área da música popular. É também compreensível. O próprio “Poesia é Risco” é obra do mais músico dos poetas brasileiros das gerações anteriores.

Arte e Ciência

na arte a técnica na ciência a mágica
o conceito o mistério
o controle o enigma
o rigor o sonho
a lógica a visão
a matemática a poesia
a análise a síntese
a estatística a metáfora
a medida o paradoxo
a fórmula o acaso
a regra o caos
o sistema o vazio
a solução a incerteza
o método o delírio
o processo a graça
o objeto o sujeito
o experimento o repente
a pesquisa o instinto
a busca o impulso
a descoberta a criação
   
na arte a arte na ciência a ciência

Um senhor letrista

Publicado na “Folha de S.Paulo”(“Mais!”), em 1/12/1996, sob o título “A letra culta (e elegante) de Mr. Words”

Perto do centésimo aniversário de seu nascimento, no próximo dia 6, torna-se oportuno lançar aqui um olhar mais detido, ainda que rápido e algo digressivo, ao trabalho de Ira Gershwin (1896-1983), o letrista e parceiro de George Gershwin (1898-1937), no momento em que já se inicia nos Estados Unidos a série de comemorações que por dois anos celebrarão, até a data do centenário do nascimento de George, a imensa e valiosa herança prematuramente deixada por ele.

Se Cole Porter é sinônimo de sofisticação por tudo que, juntas, sua obra e sua figura, arte e vida, significaram, no plano mais estrito dos versos não seria fácil apontar quem supera quem em engenhosidade: se o autor de “You’re the Top” ou o co-autor de “The Man I Love”, “S’Wonderful”, “A Foggy Day”, “Fascinatin’ Rhythm” e tantos outros clássicos da música americana dos anos 20 aos 40. Ambos estão entre ”i migliori fabbri” da moderna palavra cantada.

Não à toa, Ira era chamado de “Mister Words” (Senhor Palavras), em complementação ao “Mister Music” (Senhor Música), George: é muito raro se encontrar um letrista tão elegante, culto, cônscio e praticante de um sem-número de requintes linguísticos.

Com Porter, Ira partilhou da visão do criar como algo difícil, a requerer esforço e trabalho. Em suas mãos, melodias sofreram um processo palimpséstico, em que várias letras foram escritas até chegar à forma definitiva. Tanto rigor valeu. Em termos de melopeia, a modalidade musical de poesia tão considerada por Ezra Pound, Ira simplesmente cintilou.

Favorecido pela plasticidade do inglês, criou versos de beleza encantatória, para os quais convocou os melhores efeitos aliterativos e paronomásticos. Como: “Music is the magic makes a gloomy day sunshiny”, na abertura de “I Can’t Be Bothered Now”. Ou este, anagramaticamente enriquecido: “I must win some winsome miss”, de “Oh, Lady, Be Good” – aliás, citada por Pound em seus “Cantos Pisanos”.

Munido de um conhecimento largo e um domínio pleno dos artifícios poéticos aplicáveis à música, Ira os empregava sempre para um maior refinamento de suas letras. Criando compostos e trocadilhos, verbalizando substantivos (“Ding dang it!”), empregando metásteses (“nosy cook/cosy nook”), ele as injetava de inventividade.

Por outro lado, em seu expressivo rimário impera e exubera, aqui e ali, a imprevisibilidade (“passion’ll/national”, “Napoli/happily”, “when you/menu”), sobretudo no uso de rimas leoninas, polissilábicas (“free’n’easy/Viennesey”). Neste campo, é raro, em se tratando de uma balada sentimental de grande popularidade, o caso de “Embraceable You”, quase inteiramente composta de rimas de quatro sílabas (entre elas a modelar “glorify love / ‘Encore’ if I love”).

Por tais características, o virtuosístico estilo ira-gershwiniano guarda parentesco com trabalhos de autores que na época exerceram, em sua vertente mais leve, a chamada ”light poetry”, entre os quais destacou-se por exemplo o nome de Ogden Nash. Uma diferenciação essencial, contudo, se impõe: os jogos verbais de Ira foram criados sobre melodias preexistentes, sendo assim a sua uma arte muito mais complexa, qual seja a de sobrepor, conjugando-os, palavras a sons.

Canção é o nome que se dá a essa arte, em que Ira é um mestre, alinhando-se, numa visão aberta, remotamente aos trovadores medievais, em particular os provençais, e aos cancionistas ingleses da era elisabetana; contemporaneamente a Porter e a Lorenz Hart (parceiro de Richard Rodgers); e posteriormente aos Dylans, Caetanos e Princes da música pop/popular de nosso tempo.

Quanto aos últimos e penúltimos: acaso seus trabalhos não seriam “sérios” só porque de entretenimento? Arnold Schoenberg, num texto sobre Gershwin, diz que, “sério ou não, ele é um compositor”. Para o inventor do dodecafonismo, o que caracterizava a seriedade de alguns compositores ditos “sérios” era apenas “uma perfeita falta de humor e de alma”. Gershwin, para ele, foi “um inovador”.

George foi vitimado por um tumor cerebral aos 38 anos, numa das mortes mais trágicas da história da música moderna. O que ele e Ira tinham até então criado, no entanto, bastou para configurar uma das grandes obras do século (obliquamente evocada na letra de “Love Is Here to Stay”, feita pouco depois que George morreu, e na qual Ira, a pretexto de fazer uma canção de amor permanente, parece aludir, homenageando o irmão, ao que os dois haviam construído juntos). O tímido e retraído Ira, que sempre cuidara dos negócios do irmão galante, extrovertido e namorador para que este levasse plenamente sua “vida de artista”, tornou-se então o guardião da sua obra. Ao mesmo tempo, seguiu compondo, com parceiros da estirpe de Kurt Weill, Jerome Kern e Aaron Copland.

A letra aqui apresentada não prima pelo artesanato elaborado predominante em Ira. De todo modo, constitui uma de suas vertentes mais inventivas, uma de suas “canções-invenções” mesmo, como o poeta Augusto de Campos a denominou em “Cole Porter – Canções, Versões” (de Carlos Rennó, Paulicéia, 1991), assinalando que ela poderia ter sido escrita por Oswald de Andrade – e quem sabe cantada por João Gilberto, o bissexto compositor de “Bim-Bom” e ”Hô-ba-la-lá”, eu acrescentaria.

Datada de 1931, “Blah, Blah, Blah” faz (com humor) uma crítica ao tema das canções-temas (de amor) dos filmes de Hollywood. Canção-piada, portanto; em cima dos clichês das ”love songs”. Aqui, na língua e na linguagem do poeta de “amor/humor”, num tributo ao espirituoso letrista americano. Afinal, ele também usou de humor – sutil, inteligente, irresistível – para falar de amor, tendo dito, em “Love Is Sweeping The Country”: “All the sexes/ From Maine to Texas/ Have never known such love before”… (Todos os sexos/ De Maine ao Texas/ Nunca conheceram um amor assim antes).

Blah, Blah, Blah
(George e Ira Gershwin)

I´ve written you a song,
A beautiful routine;
(I hope you like it.)
My technique can´t be wrong:
I learned it from the screen.
(I hope you like it.)
I studied all the rhymes that all the lovers sing;
Then just for you I wrote this little thing.

Blah, blah, blah, blah, moon,
Blah, blah, blah, above;
Blah, blah, blah, blah, croon,
Blah, blah, blah, blah, love.

Tra la la la, merry month of May;
Tra la la la, ‘neath the clouds of gray.

Blah, blah, blah, your hair,
Blah, blah, blah, your eyes;
Blah, blah, blah, blah, care,
Blah, blah, blah, blah, skies.

Tra la la la, tra la la la, cottage for two –
Blah, blah, blah, blah, blah, darling with you!

Blablablá
(versão de Carlos Rennó)

Eu fiz só pra você
Uma canção que é
Tão bonitinha;
A técnica aprendi
Nas músicas que ouvi
Lá na telinha.
As rimas todas das canções eu estudei;
E eis a coisinha linda que eu criei:

Blablablá, canção;
Blablablá, luar;
Blablablá, paixão;
Blablablá, no ar.

Tralalalá, tralalalalá, seu olhar em mim;
Tralalalá, tralalalalá, tudo, tudo enfim.

Blablablá, o céu;
Blablablá, a flor;
Blablablá, o mel;
Blablablá, o amor.

Tralalalá, tralalalalá, casa de sapê;
Blablablablablá, eu e você.

O poeta da canção Orestes Barbosa

Publicado na “Folha de S.Paulo” (“Mais!”), em 9/5/1993, sob o título “Orestes leva para canção os sinais do moderno”

Orestes Barbosa figura no primeiro time do elenco de compositores que atuaram naqueles anos douradíssimos da MPB, os anos 30 (do século vinte). É certo que suas composições não são tão populares quanto as de contemporâneos seus como Noel Rosa, Ary Barroso, Lamartine Babo. Embora de inspiração popular, seus versos têm um quê de aristocráticos no balanceamento entre um coloquia¬lismo menos comum e o uso de termos mais poéticos. Mesmo assim, bastaria citar uma criação sua para lhe atestar a importância como letrista e lhe assegurar um lugar no Olimpo dos compositores clássicos do Brasil: “Chão de Estrelas”. A canção, uma de suas parcerias com Sílvio Caldas, é das mais populares de todos os tempos entre nós, e das mais belas em imagens ricas de significado.

Na terceira de suas quatro estrofes, o flagrante fotográfico da favela constitui expressão-síntese de um espírito de época e de um momento histórico. Quantas ideias não podem suscitar aqueles versos que comparam os trapos estendi¬dos no varal a bandeiras agitadas, a um festival no morro onde todo dia e (era) feriado nacional?

Orestes Barbosa é um caso especial de letrista que legou uma obra conhecida por seu nome, independentemente de seus parceiros. Nesse sentido, antecedeu Vinícius de Moraes. Como Vinícius, conferiu prestígio à área da música com a literariedade de suas letras, elogiadas por intelectuais e poetas como Manuel Bandeira e Guilherme de Almeida.

Letrista consciente do fazer poético, poetizou a canção de seu tempo com versos da classe da letra-arte. Duas foram suas marcas registradas como elaborador e manipulador dessa linguagem: a inovação vocabular e a invenção imagética. No rebuscamento frásico, ele se alinha a predecessores como Candido das Neves e Catulo da Paixão – letristas lunares, tristes e enamorados como ele. Mas os suplanta de longe na incorporação de signos novos, com os quais urbanizou e modernizou o lirismo da época.

Motor; abajur, tapete, telefone; veneziana; biombo, apartamento, elevador, arranha-céu; reclames, anúncios luminosos; clichê, manchete; manteau, peignoir. Termos e temas tais foram introduzidos por ele, às vezes em remates deslumbrantes, como no caso dos “delírios nervosos/ Dos anúncios luminosos/ Que são a vida a mentir” , de “Arranha-Céu” .

Último romântico de sua época, em sua obra ele de fato reuniu a Zona Norte à Zona Sul do Rio, cantando casos em subúrbios e em bares, cassinos e cabarés da moda; idílios em barracos de morro e romances em elegantes apartamentos da cidade. Em geral suas letras expõem o sentimento, definido em sua “Torturante Ironia”, de quem “ama e não pode amar”. Paixões secretas, casos acabados, desejos insatisfeitos – o que nos confidenciam suas canções-queixas. Porém, mais que um enredo, o que elas destacam são versos sensorialistas, de forte apelo visual, sobres-saindo em alto-relevo:

“E triste escuto o seu riso/ E sem querer fiscalizo/ Tua vida no apogeu/ Ouço o chuveiro em cascata/ A água em fios de prata / É mais feliz do que eu” – canta ele, em “Bailarina”.

Poeta-pintor, “cenógrafo do samba”, na expressão de Mario Lago, Orestes Barbosa foi um incansável caçador de imagens imprevistas e desconcertantes. Visionário de ilusões fugidias, via a amada em situações insólitas, alucinadas: “E quando bebendo, espio/ Uma taça que esvazio/ Vejo uma visão qualquer/ Não distingo bem o vulto / Mas deve ser do meu culto / O vulto dessa mulher” (“A Mulher Que Ficou na Taça”); “Hoje ver o relógio me tortura / Os ponteiros são braços de mulher” (“Nestas Noites de Amor”). Ou, exagerado, jogado aos seus pés, em cenas de amor servil: “Mas eu sufocarei o meu soluço/ Se consen¬tires, boa como és, / Que o meu desejo, como um galgo russo,/ Possa humilde dormir junto a teus pés” (“Galgo Russo”).

Em canções mais felizes, a mulher era mirada e admirada em linhas delicadas: “Oh minha avenca nervosa/ De unhas pintadas de rosa/ E olheiras de tanto amar/ Olheiras de violetas/ Tarjando essas borboletas/ Noturnas do teu olhar”; seus lábios (“de doçuras”), comparados a “tâmaras maduras”, a boca, a “morango do meu jantar”.

Às vezes suas equiparaçõs tomavam feições simbolistas. À Lua, termo recorrente em suas letras, ele aplicou as mais diversas corporificações e simbolizaçõs. De “clichê dourado impresso em papel azul” a “gema do ovo no copo azul do céu”; de “lâmpada acesa da tristeza” a “mentira branca dos espaços”. Além destas – “hóstia de mágoa” e “freira do céu” – que poderiam até figurar em “Litanias dos Quatro Crescentes da Lua”, do genial Jules Laforgue.

Raramente no âmbito da palavra cantada o sentido plástico impregnou tanto o conjunto de uma obra.

Nos anos 60, estiveram na moda as canções psicodélicas, das quais “Voodooo Chile”, de Jimi Hendrix, constitui um caso exemplar de fanopeia pop. Influenciado pelo cinematografismo bíblico, Bob Dylan se tornou mestre nessa modalidade poética. Há pouco tempo, Prince, o mais fecundo e interessante letrista surgido de 80 para cá, nos brindou com essa deliciosa sequência de movimentos contrastantes: “When 2 are in love/ Falling leaves will appear to them like slow motion rain/ When 2 are in love/ The speed of their hips can be faster than a runaway train” .

Na estrofe final de “Chão de Estrelas”, a construção das imagens, passando pelo “salpicar estrelas” e culminando na frase “tu pisavas os astros distraída”, é precisa, perfeita: um dos pontos mais altos e luminosos já atingidos na poesia de canção. Em meu “Cole Porter – Canções, Versões”, depois de lembrar os usos renascentista e barroco de “pisar estrelas”, Augusto de Campos dá vantagem ao verso do “grande Orestes” ao cotejá-lo com outros, similares, escritos por Camões e Gongora. Alguns podem achar exdrúxula a comparação, já que Orestes não foi um poeta “propriamente dito”. Será?

“Muitos músicos não consideram George Gershwin um compositor sério. Mas eles deveriam entender que, sério ou não, ele é um compositor. Há um número de compositores, sérios (como eles acreditam) ou não (como eu sei), que aprenderam a juntar notas. Mas eles são sérios apenas em função de uma perfeita falta de humor e alma” – escreveu Arnold Schoenberg, para quem Gershwin foi um inovador.

Com alma e ténica, Orestes Barbosa foi um poeta da canção, porque mostrou que esta era sua linguagem natural, e porque nela expressou ideias originais, com simplicidade e singeleza. Mas sem levar em conta essas qualidades, não é possível reconhecer o seu valor, nem compreender a natu¬reza da arte da canção popular.

O letrista de música e o poeta de livro

“O poeta Orestes que eu mais aprecio não é o dos versos proclamados admiráveis por Hermes Fontes, Medeiros e Albuquerque e Agripino Grieco, mas o letrista de sambas e canções”, escreveu, com razão, Manuel Bandeira.

Aplaudidos no ambiente intelectualmente provinciano do Rio dos anos 10 e 20, pouco representaram para a literatura os livros de poemas de Orestes Barbosa, que trocou o mundo das Letras pelo das letras – de música – e aíse tornou realmente maiúsculo.

Seus versos são tão melodiosos e cantantes que às vezes tendem a nem ser cantados. Num dos programas da série que comemorou seus 50 anos, ano passado, Caetano Veloso cantava trechos de música de compositores antigos, cujos nomes lhe eram indicados na hora pelo jornalista Matinas Suzuki. Quando este disse “Orestes Barbosa”, Caetano não cantou, mas declamou a estrofe inicial de “Arranha-Céu”.

O fato, também, é que seus versos chegam a superar as melodias. Sem o concurso delas, eles perderiam muito de sua função e de seu poder de fixação, mas com certeza foram as letras, não as músicas, que conduziram o processo de composição das canções. Às vezes, as melodias parecem servir de moldura para os quadros que os versos pintam. Dois fatores concorrem para isso.

Um: as letras de Orestes são dispostas em formas fixas, definidas por quadras ou sextilhas (seguindo sempre um esquema de rimas AABCCB) divididas em decassílabos ou redondilhas maiores.

Dois: seus principais parceiros – e intérpretes – eram mais cantores que compositores: Sílvio Caldas e Francisco Alves.

Com o “Caboclinho Querido” (um dos inspiradores do verso “Eu vi muitos cabelos brancos na fronte do artista”, de “Força Estranha”, de Caetano), Orestes consolidou o gênero da seresta.

Mas ele trabalhou também com vários outros parceiros, alguns deles compositores de primeira linha. Como Ataulfo Alves e Wilson Batista, em sambas tematizando a negritude – “O Negro e o Café” e “Abolição”, respectivamente. E Custódio Mesquita, “darling” dos músicos, com quem fez “Flauta, Cavaquinho e Violão” (samba-choro que foi sucesso com Aracy de Almeida), “Gato Escondido” (marcha, com as Irmãs Pagãs) e “Nestas Horas de Amor” (valsa).

Com Noel Rosa, criou “Positivismo”, onde prevalece a veia irônica do poeta de Vila Isabel, que gravou o samba e, ao que tudo indica, influenciou também a feitura de “Caixa Econômica”, o mais noelino e bem-humorado dos sambas de Orestes, composto com Nássara e gravado por Luiz Barbosa.

Outros parceiros: Benedito La¬cerda (“Manchete de Estrelas”), Vicente Celestino (“Altar de La¬ma”), J.Tomas (“Verde e Amarelo”), Oswaldo Santiago (“Bangalô”), Newton Teixeira (“Tens Razão”), Valzinho (“Óculos Escuros” e “Imagens”).

Na década de 70, estas duas últimas músicas foram magnificamente recriadas, a primeira por Paulinho da Viola, a segunda por Jards Macalé – numa notável in-terpretação registrada no LP “Aprender a Nadar” (1974), momento excepcional de sua carreira, quando lançou com Waly Salomão a onda da “morbeza romântica”, que alguma coisa deveu a Orestes.

Os Mutantes já tinham realizado uma versão irreverente de “Chão de Estrelas”, em 1970. E Caetano a havia reverenciado, citando-a em “Como Dois e Dois” (“A mesma porta sem trinco/ O mesmo teto/ E a mesma lua a furar nosso zinco”). Anos mais tarde, Augus¬to de Campos reutilizaria os termos “barraco”, “trinco” e “zinco” tirados da canção, ao verter um poema do livro “Hugh Selwyn Mauberley”, de Ezra Pound. A tradução acabou sendo musicalizada com muita sensibilidade por Passoca, em 1984 – três anos depois de Arrigo Barnabé ter entoado o trecho inicial de “Arranha-Céu”, em “Diversões Eletrônicas” (do histórico disco “Clara Crocodilo”).

Joyce em John Lennon

Publicado na “Folha de S.Paulo” (“Ilustrada”), em 5/10/1992, sob o título “Bob Dylan levou Lennon à letra-arte”

A presença ostensiva da expres¬são “I love you” nos refrões de “Love Me Do” e “P.S. I Love You”, de Paul McCartney, é somente um dos indicadores do lugar-comum poético dessas canções. Em suas letras, contudo, colocam-se vários outros que também John Lennon escreveria apenas “profissionalmente”, sem ambições artísticas, no período inicial dos Beatles. Um fato, po¬rém, mudaria radicalmente a vi-são de Lennon sobre a importân¬cia do texto na música: o reconhe¬cimento da qualidade poética das canções de Bob Dylan.

Dylan: desde Cole Porter e Ira Gershwin a poesia popular canta¬da de língua inglesa não alçava voos tão altos, de imaginação e inventividade. À época, Lennon, popstar intelectualizado, já tinha escrito dois livros, num deles incursionando ludicamente pela linguagem chamada de invenção – “Um Atrapalho no Trabalho” (na tra¬dução de Paulo Leminsky). Para ele, porém, a palavra só podia adquirir expressão estética em li¬teratura, não em música pop. Com Dylan, encarnação supermoderna do bardo, gênio indiscu¬tível, Lennon descobriu a letra-ar¬te. E percebeu que uma canção, além de voar, poderia transmitir belezas e verdades (especialmente as próprias) através de sua letra.

Mas, ao contrário do metafóri¬co, profuso e às vezes obscuro Dylan, Lennon definiu-se pelo de¬sign mais nítido, a expressão cla¬ra, direta e objetiva. Fez mais sucesso por isso, mas nem por isso foi mais simples. Sua “enga¬nosa simplicidade” (Glauco Mattoso) pode ser atestada por um exame cuidadoso de, por exem¬plo, “Julia” (atentar para suas sutilezas estruturais e suas ambi¬guidades), em homenagem a sua mãe, mas também em referência a sua mulher, Yoko (“ocean¬child”). Escrevendo na primeira pessoa, Lennon sempre falou dele mesmo em suas letras, de suas experiências. Do drama existen¬cial de “Help” às memórias de “In My Life” e “Strawberry Fields Forever”. Do psicodelismo pioneiro de “Tomorrow Never Knows” até os hinos contracultu¬rais “All You Need Is Love” (antibélico) e “Revolution”.

“A Day In the Life” pode ser considerada, se se pensar em “Ulisses”, a mais joyceana de suas letras. Mas onde ele mais explicita suas referências literá¬rias, radicalizando no experimen¬talismo (pelo surrealismo e pelo uso das palavras-va¬lise inventadas por Lewis Car¬roll – e radicalizadas em Joyce), é em “I Am the Walrus”. Não parou por aí. Em “Across the Universe” traçou uma bela sequência de “lances de imagens sobre o intelecto” (fanopeia), de inspiração cósmico-religiosa, ao mesmo tempo em que refletiu sobre o ato poético-criativo. E em “Come Together”, uma livre-as¬sociação imagética que beira a incomunicabilidade, e onde o sen¬tido importa menos que o som, salvo no refrão, uma ce1ebração ao orgasmo simultâneo.

Paul não foi tão longe, é óbvio – seu negócio era mais música mesmo –, mas deu sua contribuição, especialmente como contador de histórias, na terceira pessoa. Basta dizer que foram dele a ideia e o desenvolvimento da maior parte de “Eleanor Rigby” e “She’s Leaving Home”, para¬digmática da adolescente que foge de casa. E que ele fez sozinho “The Fool On the Hill”, a lindís¬sima “For No One”, “Hey Ju¬de” e “A Little Help From My Friends”(que melodias!).

As palavras das canções de Lennon e McCartney representa¬ram o contraponto verbal à revo¬lução que os Beatles detonaram nos planos musical, comportamental e mental de sua geração. É certo que mesmo as melhores letras do grupo não exibiram a engenhosa sofisticação das que Cole e Ira fizeram nos anos 30: seria uma repetição. Mas enrique¬ceram demais o repertório geral com temas, formas e imagens até então inéditos. E serviram para colocar Lennon, ao lado de Dylan e também de Jim Morrison, entre os maiores músicos-poetas dos 60 e de todos os tempos.

Engenho e arte nas letras de um gênio

Publicado na“Folha de S.Paulo” em 12/4/1989, sob o título “Letras reúnem o clássico e o pop”

Na história da música popular desempenha um papel fundamental a produção dos principais compositores de canções norte-americanos dos anos 30 e 40, como George e Ira Gershwin, Rodgers e Hart, Irving Berlin, Cole Porter, Johnny Mercer. São eles os Bachs, os Beethovens, os Mozarts, os clássicos autores dos grandes clássicos do gênero. Nesta constelação, um lugar especial cabe a Cole Porter.

Graças ao seu estilo e à sua técnica de ajustar letras elaboradas a melodias relativamente (embora nem sempre) simples, Porter elevou o nível do texto da canção popular a uma alta potência poética, alcançando ele próprio como letrista um grau de sofisticada criatividade em momentos comparável mesmo ao de poetas da área erudita.

Quem quiser provar isso na prática, pode tentar verter algumas canções suas que impõem desafios que só poemas eruditos impõem. Nelas, sem prejuízo da naturalidade, Porter usa recursos que as tornam ainda mais agradáveis à medida que reouvidas: rimas imprevistas, internas, polifônicas; construções ele¬gantes, trocadilhos, enumerações, ambiguidades, paronomásias requintadas e imagens ricas, em temas amorosos tratados com charme e inteligência.

Da supermoderna obra-prima pop “You’re the Top” (uma das maiores – 135 versos mais a introdução e uma estrofe paródica – e melhores letras já escritas) a uma certa “It Was Written In The Stars”, suas mais de 800 canções configuram uma produção marcada mais pela personalidade que pela pessoalidade (tudo foi feito para trilhas da Broadway e Hollywood) e uma obra que excede em quantidade e qualidade. Cole Porter não tem fim.

A proezia de Haroldo de Campos

Publicado na “Folha de S.Paulo” (“Ilustrada”), em 23/10/1984, sob o título “A proesia de Haroldo de Campos”

Em 1963 o poeta Haroldo de Campos imaginou um texto no limite entre a prosa e a poesia, uma escrita que realizasse aquilo que propunha em teoria: a ruptura entre gêneros. Hoje, com uma bela edição da Editora Ex Libris, realizada pelo artista plástico Frederico Nasser, a obra vem a público finalmente encerrada num volume próprio. Chama-se “Galáxias”, e o lançamento está marcado para as 20 horas, na livraria Brasiliense (rua Oscar Freire, 561, em São Paulo).

A ideia da viagem como livro e do livro como viagem norteia a obra no seu todo e abrange outras constantes de “Galáxias”. Muitas são suas personagens e alusões, mas todas elas se entrelaçam por meio daquela que é, na verdade, a sua principal personagem: a própria linguagem. É através desta que o livro propõe e faz sua própria viagem. Entre a prosa e a poesia. Via proesia. Nesta entrevista o autor aborda alguns aspectos da sua obra.

*

— Folha – O que o levou, há mais de vinte anos, a esboçar um livro no qual enveredasse por um tipo de prosa, “feita de limalha de prosa” e no limite com a poesia, retomando um lado barroco pertencente ao início do seu percurso textual?

Haroldo de Campos — Desde longa data eu vinha me preocupando com o problema da ruptura dos gêneros na literatura contemporânea, da rarefação dos limites entre poesia e prosa, e também entre ficção e ensaio crítico, entre o exercício ficcional e o exercício metalingüístico da escritura. Em 1962, escrevendo sobre Guimarães Rosa (“A Linguagem do Iauaretê”), como em 1964, ao publicar o meu estudo introdutório à reedição das “Memórias Sentimentais de João Miramar”, de Oswald de Andrade, eu tive a oportunidade de deter-me sobre o assunto. Em 1970, dei formato mais completo a essa reflexão, dedicando-lhe todo um ensaio, primeiro publicado numa obra coletiva auspiciada pela Unesco e depois editado em livro autônomo, “Ruptura dos Gêneros na Literatura Latino-Americana” (Perspectiva, 1976). Neste meu trabalho, referia-me ao Barroco, pelo fusionismo que lhe é próprio, pelo hibridismo de línguas e culturas que o caracteriza, como o momento embrionário, em nossa América, dessa rebelião contra a normatividade clássica dos gêneros. De um Barroco moderno, das possibilidades criativas de um neo-barroco, oposto à obra de arte clássica “perfeita”, do “tipo diamante”, eu já vinha falando desde 1955, em meu artigo-manifesto “A Obra de Arte Aberta” (que antecipou de alguns anos o livro quase homônimo de Umberto Eco…). No meu caso, o fascínio das questões teóricas está sempre ligado à minha prática de escritor, ao meu fazer poético. Em 1952, eu havia escrito “Ciropédia ou a Educação do Prínci¬pe”, um poema em segmentos ou blocos de prosa rítmica, onde o texto é a todo momento “hibridiza¬do” por intervenções neológicas, por fraturas e remontagens verbais. Daí à “prosa feita de limalha de prosa” o percurso foi-se impondo necessariamente, quase que por uma exigência interna do meu trabalho. Aliás, no curso de elaboração das “Galáxias”, aproveitei para fazer uma defesa e ilustração do hibridismo textual num fragmento paródico, em que um travesti é perseguido desabaladamente pela rádio-patrulha romana, defensora censória da normatividade dos gêneros…

— No começo dos anos 60, enquanto seus poemas davam prosseguimento ao experimento concreto, você já parecia inaugurar um caminho mais pessoal, não antagônico mas diferen¬te do programado pelo grupo (liderado por você, Augusto de Campos e Décio Pignatari) enquanto movimento. Nos rascunhos e nas feituras das primeiras páginas de “Galáxias” já não estava a gênese de uma fase posterior, pós-concreta?

HC — A poesia concreta responde a uma das vertentes da minha personalidade, as “Galáxias” respondem a outra. Que elas tenham podido coexistir, é algo que me demonstrou a inexistência de uma oposição antagônica entre barroquismo e construtivismo. Como o demonstram, no nível plástico, Ouro Preto e a arquite¬tura de Brasília. Não se teria sido possível, por outro lado, sem a experiência de rigor e controle do acaso da poesia concreta, disciplinar o turbilhão barroquizante que a escritura galática desencadeia. Pulsão e contenção são os dois polos dialéticos que regem o “Livro das Galáxias”, que eu gostaria de definir, meio-sorrindo, como um manual de cosmonáutica textual…

— O projeto original de uma prosa especial acabou se resolvendo num texto cuja concentração lhe deu mais um caráter de poesia do que propriamente de prosa. Como se processou essa transformação que resultou num texto com aparência de prosa mas que, no fundo, está mais para um poema longo?

HC — A escritura galática foi para mim um gesto épico que se resolveu numa epifânica. Na epifania, a visão prevalece sobre a ação. Quero dizer que o narrar – o gesto narrativo próprio da prosa – deixou-se levar de roldão pela proliferação de imagens, pela voragem fônica, pelas fosforescências de uma semântica móvel que o contagia dos significantes é capaz de suscitar e sustar, com a vertiginosi¬dade de um videoclipe. Afirma Walter Benjamin que, para os românticos alemães, a ideia (entenda-se, o método) da poesia foi a prosa. Para eles, pode-se dizer, o romance foi a alternativa “poética” da epopeia clássica. Para mim, a epifânica, aparentemente conduzida em prosa, foi o modo de lidar com o problema do poema longo, com a possibilidade (ainda que fragmentária) de uma épica moderna. Um gesto estratégico também, face ao rigor projetual da poesia concreta), que definia a poesia propriamente dita em outros termos, coerentemente marcados, à época, por uma estética “minimalista” radical, à Webern e à Mondrian.

— “Galáxias” propõe uma leitura não contínua nem metódica, mas livre, aleatória, ao sabor de uma fruição suscitada pelo desejo, como um texto para ser curtido com e por prazer. O que você tem a dizer sobre isto e sobre uma possível relação entre o seu e aquele a que Roland Barthes se refere como um “texto de prazer”?

HC — Entre os críticos franceses ligados ao momento estruturalista, Roland Barthes foi certamente aquele que melhor compreendeu e abordou os textos de ruptura, marcados pela inovação no plano da linguagem. De fato, a experiência das “Galáxias” aspira a ser, no sentido barthesiano, um “texto de prazer”. Lembro-me que em “S/Z”, livro publicado em 1970, Barthes usa da expressão “galáxia de significantes” para definir o que ele chama “texto-plural” (por oposição ao texto “clássico”, “legível”). E acrescenta: esse texto “não tem começo; é reversível; nele se ingressa por múltiplas entradas, nenhuma das quais pode ser, com segurança, considerada principal; os códigos que ele mobiliza se perfilam a perder de vista, são indecidíveis (…); desse texto absolutamente plu¬ral, os sistemas de sentido podem apossar-se, mas seu número jamais será fechado, tendo por medida o infinito da linguagem”. Por um programa semelhante – por uma análoga miragem? – se norteavam as “Galáxias”, quando comecei a escrevê-las, em 1963…

— Em “Galáxias” a fugacidade e a velocidade das imagens e lembranças, em sequências cinematográficas, sugerem uma correlação com um fluxo livre de pensamento e mesmo de inconsciente. Ao mesmo tempo percebe-se que tudo foi submetido a um controle rigoroso e minucioso da linguagem. Pelas indicações ao final do livro, nota-se que alguns fragmentos-páginas foram escritos em um só dia, outros em um mês ou mais. Com que pique você produziu “Galáxias”? Em que medida espontaneidade e elaboração ¬– possivelmente uma incitando a outra – incidiram no ritmo do seu fazer?

HC — De fato, o ritmo de composição do texto variou, da pulsão instantânea à elaboração mais lenta, espraiada por um arco de tempo mais longo. Alguns fragmentos surgiram de jato; outros foram-se montando aos poucos. Deixei alguns de lado, depois de prontos, quando não me satisfaziam de todo, para repensá-los depois, no conjunto, no organograma geral. Tratava-se de controlar o acaso, de “organizar o delírio”, para usar uma expressão do compositor francês Pierre Boulez. Para tanto, interiorizei no meu processo escritural de¬terminados dispositivos seletivos, em nível sintático e em nível fono-semântico, que me permitiram um trabalho minucioso sobre a lingua¬gem, ainda nos fragmentos aparen¬temente mais “espontâneos”, naque¬les mais vertiginosamente visionári¬os… Por outro lado, não devemos nos esquecer que Lacan, radicalizando Freud, insiste em que a estrutura do inconsciente é a estrutura da lingua¬gem e que a “lei do paralelismo do significante”, lei “cujo concerto rege a primitiva gesta eslava e a mais refinada poesia chinesa”, é funda¬mental para a compreensão dessa estrutura… Também o inconsciente, enquanto efeito de linguagem, obede¬ce a uma poética implícita…

— Traçando um paralelo com a música, sua obra pode ser vista como uma sofisticada e complexa peça erudita de vanguarda. Simulta¬neamente, há momentos de uma linguagem simples e direta que remete à da poesia mais popular, a cantada. O que você tem a dizer sobre isto?

HC — As “Galáxias” têm muito a ver com a música, seja a erudita, de vanguarda, seja a popular. Já mencionei Pierre Boulez, de quem tirei a ideia dos formantes (as páginas inicial e final, impressas em itálico) que balizam o texto como polos rotativos, cambiantes, que falam reversivelmente de fim e de começo, engendrando o jogo da viagem. Isto do ponto de vista da estrutura, da integração e controle dos elementos aleatórios, por exemplo. Mas envolvem também um canto, um cantar, no qual não deixam de reverberar as invenções espontâneas de nossos can¬tadores populares (cuja “virtuosida¬de por vezes deslumbrante”, combinando improvisação com “modelos exatamente codificados”, é ressaltada por um estudioso do porte de Paul Zumthor no seu recente livro dedica¬do às formas da poesia oral em várias culturas e povos). Claro, nem é preciso falar das afinidades com a nossa música popular urbana, de Caetano, Gil, Walter Franco, Arrigo…

— Com os romances de invenção oswaldianos “Memórias Sentimentais de João Miramar” e “Serafim Ponte Grande”, “Galáxias” guar¬dam uma relação tanto ao nível formal como ao temático, residindo nas referências às viagens o princi¬pal ponto de comparação quanto ao segundo aspecto. Eu apontaria uma outra constante temática nestas obras: o erótico. Como na linguagem daqueles livros de Oswald, a de “Galáxias” exubera em alusões sexuais e sensuais, e promove também uma leitura erótica do mundo e da vida. Você concorda?

HC — É certo. Mas a temática da viagem, do périplo, da mobilidade perene se dá, nas “Galáxias”, no nível dos significantes, permanentemente imantados de significado, de semântica – mas de uma semântica evasiva, fugidia, como uma “aura” ou uma fata morgana. Os “microenredos” proliferam: se anunciam e desaparecem, como miragens. A ficção é objeto de ilusão e elusão (o que cria um certo “suspense” detetivesco, segundo me observou uma vez Anatol Rosenfeld). O trabalho no nível do significante (da materiali¬dade da linguagem) tem alguma coisa de corpóreo. O verbal é um corpo, quase táctil. Daí essa erótica do texto, que você observa. Pois, como está expresso num dos fragmentos galáticos, “a linguagem é lavagem é resíduo de drenagem é ressaca e é cloaca e nessa noite inócua é que está sua mensagem…”