Geraldo Pereira

Escrito em 2002 para a série de sites “Os Inventores da Música Brasileira”, do portal UOL

O criador do samba sincopado

Geraldo Pereira ocupa um lugar de destaque entre os compositores de música brasileira dos anos quarenta e da primeira metade dos anos cinquenta, como o criador maior de uma forma de samba chamado de sincopado. Seus sambas, muito inventivos, apresentavam divisões rítmicas inéditas em seu tempo, sendo considerados predecessores da bossa nova.

Neles, o ritmo é acentuado pelo uso – ou melhor, pelo abuso – das síncopes. As notas são abreviadas ou alongadas, retendo-se ou estendendo-se a respiração; dessa forma, a melodia adianta ou atrasa, facilitando a subdivisão tônica da frase musical. Para o pesquisador Jairo Severiano, o sambista tem um papel relevante “no processo de evolução do samba através da valorização das síncopes e do emprego de determinadas resoluções harmônicas inusitadas nas composições da época”.

Há quem encontre as origens da revolucionária divisão rítmica de João Gilberto nas síncopes de Geraldo Pereira. “O samba dele era leve e cheio de divisões rítmicas: isto sempre me chamou atenção. Ele não tinha consciência disso, mas foi um inovador na música popular brasileira na década de quarenta”, disse, certa vez, o próprio João. O papa da bossa nova, em pleno florescer e vigência do movimento, chegou a gravar “Bolinha de Papel”, de Geraldo.

Realmente, era preciso um compositor muito bom para inventar algo de fato novo e original, frente ao que já haviam feito Noel Rosa, Ismael Silva, Ary Barroso e outros criadores do primeiro time do samba carioca, nos anos trinta. Foi quando entrou em cena Geraldo Pereira, com seu samba sincopado, uma espécie de derivação do samba telecoteco (este, situado ritmicamente entre o choro o samba do Estácio, e também um samba de morro).

De acordo com o pensamento de Cyro de Souza (emitido para os autores de “Um Certo Geraldo Pereira”, biografia do compositor), Geraldo partiu do samba telecoteco, que encheu de nuances, para fazer uma bossa nova…

Sambista intuitivo, sambas elaborados

Geraldo Pereira foi um dos três grandes compositores que Minas Gerais deu à música popular brasileira pré-bossa nova. Como ele, nascido em Juiz de Fora, também eram mineiros Ari Barroso, natural de Ubá, e Ataulfo Alves, de Miraí. Como esses, ou até mais, ele também se carioquizou. Sua formação musical, cultural e existencial se deu na privilegiada região do morro de Mangueira, no Rio de Janeiro.

Apesar da marca de artista intuitivo e espontâneo, seus sambas eram muito elaborados. As síncopes constituem a sua principal singularidade, mas não a única. Conjugando letras e músicas de maneira peculiaríssima, neles palavras e sons parecem gingar e rodopiar, equilibrando-se elegantemente com um pé no chão e outro no ar, como num lance de capoeira.

A esmagadora maioria de suas músicas fala de amor, ou seja, de mulheres – também o tema principal de sua vida particular. Ele teve muitas; a principal foi Isabel, inspiradora de alguns grandes – e inspirados – sambas.

Alto, forte e brigador, suas histórias de valentia fizeram fama. O sambista se tornou personagem lendária. Dizem – a frase é do cantor Jorge de Castro – que ele “caminhava gingando, andar de malandro”. Malandro, sim, mas não vagabundo. Pelo contrário, era um grande batalhador, ciente de que essa era a única saída para a sua difícil condição de preto pobre – mais exatamente, mulato puxado para negro.

Fazia sucesso, mas não ganhava dinheiro – samba não dava grana naqueles tempos. Morreu pobre. E novo: com apenas 37 anos, em consequência de um soco que levou numa briga com outro valente do Rio da sua época, o também malandro Madame Satã – um negro homossexual, mas muito forte e brigão. O machão Geraldo Pereira acabou sendo morto por um homem afeminado.

Clássicos, intérpretes e parceiros

Geraldo Pereira desenvolveu toda a sua obra compositória em não mais que dezessete anos (morreu com apenas 37 anos, em 1955). Nesse espaço de tempo, deixou editadas 77 músicas, sambas na sua quase totalidade, e praticamente todos gravados.

Ciro Monteiro – o maior cantor de samba de todos os tempos, na opinião respeitabilíssima de Paulinho da Viola – foi o seu principal intérprete. O próprio estilo de cantar de Ciro se situa nas origens da invenção do samba sincopado. Alguns dizem mesmo que Geraldo se inspirava em sua interpretação para compor. Ciro foi quem lançou seus dois sambas de maior sucesso (coincidentemente, o primeiro e o último hit de sua carreira): “Falsa Baiana”, seu maior clássico, e “Escurinho”. Além de “Acabou a Sopa”, “Até Hoje Não Voltou”, “Pisei num Despacho” e “Você Está Sumindo”.

Quem mais gravou músicas de Geraldo não foi, no entanto, Ciro, mas o próprio compositor – que também investiu na carreira de cantor: quinze vezes (para doze de Ciro). Geraldo não possuía muita voz, mas esbanjava ginga vocal, como atestam as auto-gravações de clássicos como “Escurinha”, “Cabritada Mal-sucedida”, “Pedro do Pedregulho” e “Ministério da Economia”.

Em número de registros, os outros principais intérpretes do sambista foram Roberto Paiva (que o lançou, com “Se Você Sair Chorando”), Déo e Moreira da Silva. Blecaute (que gravou “Chegou a Bonitona” e “Que Samba Bom”) e Roberto Silva também estão entre os mais importantes.

A grande maioria das músicas de Geraldo Pereira leva também a assinatura de algum parceiro. Arnaldo Passos foi o mais frequente. Elpídio Viana, Ary Monteiro, José Batista e Augusto Garcez também são creditados. Consta que nessas parcerias Geraldo costumava fazer as primeiras partes, ou a maior parte dos sambas, deixando para o parceiro completá-los.

Novos intérpretes

Aqui, a cronologia do resgate de uma obra, cuja importância somente passou a ser melhor avaliada após a morte de seu autor, ocorrida em 1955.

1961 – O inventor da bossa nova, João Gilberto, grava “Bolinha de Papel”, no auge do movimento.
1969 – “Que Samba Bom” é relançado por Elza Soares, uma das mais talentosas sambistas brasileiras de todos os tempos.
1971 – O modernizador do samba de tradição Paulinho da Viola, num de seus resgates de pérolas da velha guarda, registra “Você Está Sumindo”.
1972 – Gal Costa grava “Falsa Baiana” num dos álbuns mais importantes de sua carreira, “Gal a Todo Vapor”.
1974 – Chico Buarque revive “Sem Compromisso” em seu disco “Sinal Fechado”.
1980 – Jackson do Pandeiro, o rei das divisões rítmicas inventivas na música nordestina, recria “Pisei no Despacho”.
João Nogueira inclui “Escurinha” e “Você está Sumindo” em seu álbum “Wilson, Geraldo e Noel”.
1981 – O selo Eldorado lança o disco “Evocação V”, uma espécie de songbook de Geraldo Pereira com as participações de: João Nogueira, Jackson do Pandeiro, Christina, Roberto Silva, Jards Macalé, Elton Medeiros, Monarco, Nelson Sargento, Vânia Carvalho, Grupo Tarsis, Marçal e Batista de Souza.
1982 – O compositor é homenageado no Carnaval do Rio de Janeiro, no enredo “Geraldo Pereira, Eterna Glória do Samba”, da Escola de Samba Unidos do Jacarezinho.
1984 – Lançamento do livro “Um Certo Geraldo Pereira” (Funarte), biografia do compositor escrita por Alice Duarte Silva de Campos, Dulcinéa Nunes Gomes, Francisco Duarte Silva e Nelson Sargento.
Lançamento do disco “Geraldo Pereira” (Funarte), de Bebel Gilberto e Pedrinho Rodrigues, com interpretações dos maiores sucessos do sambista.
1994 – Luiz Melodia faz um show inteiramente dedicado à obra de Geraldo Pereira, no auditório do MIS (Museu da Imagem e do Som) de São Paulo, dentro da série “Sempre-Novas”.
1997 – Gal Costa regrava “Falsa Baiana” em seu bem-sucedido comercialmente CD “Acústico MTV”.
2000 – O cantor e compositor Nelson Sargento, da Velha Guarda da Mangueira, acompanhado do grupo vocal Arranco de Varsóvia, faz shows no Rio e em São Paulo cantando somente músicas de Geraldo Pereira.