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Geraldo Pereira

Escrito em 2002 para a série de sites “Os Inventores da Música Brasileira”, do portal UOL

O criador do samba sincopado

Geraldo Pereira ocupa um lugar de destaque entre os compositores de música brasileira dos anos quarenta e da primeira metade dos anos cinquenta, como o criador maior de uma forma de samba chamado de sincopado. Seus sambas, muito inventivos, apresentavam divisões rítmicas inéditas em seu tempo, sendo considerados predecessores da bossa nova.

Neles, o ritmo é acentuado pelo uso – ou melhor, pelo abuso – das síncopes. As notas são abreviadas ou alongadas, retendo-se ou estendendo-se a respiração; dessa forma, a melodia adianta ou atrasa, facilitando a subdivisão tônica da frase musical. Para o pesquisador Jairo Severiano, o sambista tem um papel relevante “no processo de evolução do samba através da valorização das síncopes e do emprego de determinadas resoluções harmônicas inusitadas nas composições da época”.

Há quem encontre as origens da revolucionária divisão rítmica de João Gilberto nas síncopes de Geraldo Pereira. “O samba dele era leve e cheio de divisões rítmicas: isto sempre me chamou atenção. Ele não tinha consciência disso, mas foi um inovador na música popular brasileira na década de quarenta”, disse, certa vez, o próprio João. O papa da bossa nova, em pleno florescer e vigência do movimento, chegou a gravar “Bolinha de Papel”, de Geraldo.

Realmente, era preciso um compositor muito bom para inventar algo de fato novo e original, frente ao que já haviam feito Noel Rosa, Ismael Silva, Ary Barroso e outros criadores do primeiro time do samba carioca, nos anos trinta. Foi quando entrou em cena Geraldo Pereira, com seu samba sincopado, uma espécie de derivação do samba telecoteco (este, situado ritmicamente entre o choro o samba do Estácio, e também um samba de morro).

De acordo com o pensamento de Cyro de Souza (emitido para os autores de “Um Certo Geraldo Pereira”, biografia do compositor), Geraldo partiu do samba telecoteco, que encheu de nuances, para fazer uma bossa nova…

Sambista intuitivo, sambas elaborados

Geraldo Pereira foi um dos três grandes compositores que Minas Gerais deu à música popular brasileira pré-bossa nova. Como ele, nascido em Juiz de Fora, também eram mineiros Ari Barroso, natural de Ubá, e Ataulfo Alves, de Miraí. Como esses, ou até mais, ele também se carioquizou. Sua formação musical, cultural e existencial se deu na privilegiada região do morro de Mangueira, no Rio de Janeiro.

Apesar da marca de artista intuitivo e espontâneo, seus sambas eram muito elaborados. As síncopes constituem a sua principal singularidade, mas não a única. Conjugando letras e músicas de maneira peculiaríssima, neles palavras e sons parecem gingar e rodopiar, equilibrando-se elegantemente com um pé no chão e outro no ar, como num lance de capoeira.

A esmagadora maioria de suas músicas fala de amor, ou seja, de mulheres – também o tema principal de sua vida particular. Ele teve muitas; a principal foi Isabel, inspiradora de alguns grandes – e inspirados – sambas.

Alto, forte e brigador, suas histórias de valentia fizeram fama. O sambista se tornou personagem lendária. Dizem – a frase é do cantor Jorge de Castro – que ele “caminhava gingando, andar de malandro”. Malandro, sim, mas não vagabundo. Pelo contrário, era um grande batalhador, ciente de que essa era a única saída para a sua difícil condição de preto pobre – mais exatamente, mulato puxado para negro.

Fazia sucesso, mas não ganhava dinheiro – samba não dava grana naqueles tempos. Morreu pobre. E novo: com apenas 37 anos, em consequência de um soco que levou numa briga com outro valente do Rio da sua época, o também malandro Madame Satã – um negro homossexual, mas muito forte e brigão. O machão Geraldo Pereira acabou sendo morto por um homem afeminado.

Clássicos, intérpretes e parceiros

Geraldo Pereira desenvolveu toda a sua obra compositória em não mais que dezessete anos (morreu com apenas 37 anos, em 1955). Nesse espaço de tempo, deixou editadas 77 músicas, sambas na sua quase totalidade, e praticamente todos gravados.

Ciro Monteiro – o maior cantor de samba de todos os tempos, na opinião respeitabilíssima de Paulinho da Viola – foi o seu principal intérprete. O próprio estilo de cantar de Ciro se situa nas origens da invenção do samba sincopado. Alguns dizem mesmo que Geraldo se inspirava em sua interpretação para compor. Ciro foi quem lançou seus dois sambas de maior sucesso (coincidentemente, o primeiro e o último hit de sua carreira): “Falsa Baiana”, seu maior clássico, e “Escurinho”. Além de “Acabou a Sopa”, “Até Hoje Não Voltou”, “Pisei num Despacho” e “Você Está Sumindo”.

Quem mais gravou músicas de Geraldo não foi, no entanto, Ciro, mas o próprio compositor – que também investiu na carreira de cantor: quinze vezes (para doze de Ciro). Geraldo não possuía muita voz, mas esbanjava ginga vocal, como atestam as auto-gravações de clássicos como “Escurinha”, “Cabritada Mal-sucedida”, “Pedro do Pedregulho” e “Ministério da Economia”.

Em número de registros, os outros principais intérpretes do sambista foram Roberto Paiva (que o lançou, com “Se Você Sair Chorando”), Déo e Moreira da Silva. Blecaute (que gravou “Chegou a Bonitona” e “Que Samba Bom”) e Roberto Silva também estão entre os mais importantes.

A grande maioria das músicas de Geraldo Pereira leva também a assinatura de algum parceiro. Arnaldo Passos foi o mais frequente. Elpídio Viana, Ary Monteiro, José Batista e Augusto Garcez também são creditados. Consta que nessas parcerias Geraldo costumava fazer as primeiras partes, ou a maior parte dos sambas, deixando para o parceiro completá-los.

Novos intérpretes

Aqui, a cronologia do resgate de uma obra, cuja importância somente passou a ser melhor avaliada após a morte de seu autor, ocorrida em 1955.

1961 – O inventor da bossa nova, João Gilberto, grava “Bolinha de Papel”, no auge do movimento.
1969 – “Que Samba Bom” é relançado por Elza Soares, uma das mais talentosas sambistas brasileiras de todos os tempos.
1971 – O modernizador do samba de tradição Paulinho da Viola, num de seus resgates de pérolas da velha guarda, registra “Você Está Sumindo”.
1972 – Gal Costa grava “Falsa Baiana” num dos álbuns mais importantes de sua carreira, “Gal a Todo Vapor”.
1974 – Chico Buarque revive “Sem Compromisso” em seu disco “Sinal Fechado”.
1980 – Jackson do Pandeiro, o rei das divisões rítmicas inventivas na música nordestina, recria “Pisei no Despacho”.
João Nogueira inclui “Escurinha” e “Você está Sumindo” em seu álbum “Wilson, Geraldo e Noel”.
1981 – O selo Eldorado lança o disco “Evocação V”, uma espécie de songbook de Geraldo Pereira com as participações de: João Nogueira, Jackson do Pandeiro, Christina, Roberto Silva, Jards Macalé, Elton Medeiros, Monarco, Nelson Sargento, Vânia Carvalho, Grupo Tarsis, Marçal e Batista de Souza.
1982 – O compositor é homenageado no Carnaval do Rio de Janeiro, no enredo “Geraldo Pereira, Eterna Glória do Samba”, da Escola de Samba Unidos do Jacarezinho.
1984 – Lançamento do livro “Um Certo Geraldo Pereira” (Funarte), biografia do compositor escrita por Alice Duarte Silva de Campos, Dulcinéa Nunes Gomes, Francisco Duarte Silva e Nelson Sargento.
Lançamento do disco “Geraldo Pereira” (Funarte), de Bebel Gilberto e Pedrinho Rodrigues, com interpretações dos maiores sucessos do sambista.
1994 – Luiz Melodia faz um show inteiramente dedicado à obra de Geraldo Pereira, no auditório do MIS (Museu da Imagem e do Som) de São Paulo, dentro da série “Sempre-Novas”.
1997 – Gal Costa regrava “Falsa Baiana” em seu bem-sucedido comercialmente CD “Acústico MTV”.
2000 – O cantor e compositor Nelson Sargento, da Velha Guarda da Mangueira, acompanhado do grupo vocal Arranco de Varsóvia, faz shows no Rio e em São Paulo cantando somente músicas de Geraldo Pereira.

Nelson Cavaquinho

Escrito com Paquito e publicado em 2001 na série de sites “Os Inventores da Música Brasileira”, do portal UOL

Único, inconfundível, original

A voz negra, rouca e suja. O toque rústico do violão. As cordas graves – a baixaria – conduzindo a harmonia. As melodias tristes de contornos incomuns. Os temas da morte e do sofrimento repetidos obssesivamente. As imagens e resoluções poéticas insólitas. Estas características se combinam na obra de Nelson Cavaquinho, formando um todo único, indissociável, e conferindo ao sambista um lugar especial entre os artistas mais originais da música popular brasileira de todos os tempos.

Nelson Cavaquinho foi contemporâneo dos principais nomes da chamada era de ouro da música popular brasileira, que durou dos anos trinta até o início da década de quarenta. Ao contrário daqueles, porém, ele permaneceu na condição de marginalizado durante a maior parte de sua carreira. O cantor e compositor não se preocupava com a comercialização de suas músicas, preferindo tocar e cantar, como um trovador urbano, nos bares, pelas madrugadas.

Por isso, muitos de seus sambas ficaram longo tempo no ineditismo, até serem gravados – casos de clássicos como “Luz Negra”, “Rugas” e “Palhaço”. Suas músicas foram apenas eventualmente registradas em disco até os anos sessenta. Foi quando ele começou a obter o devido reconhecimento, com a redescoberta dos sambistas de morro pelos bossa-novistas da segunda geração. Naquela década e na seguinte, Nelson viveu finalmente o ponto alto de sua carreira.

No início dos anos setenta, no auge desse processo, ele já era sexagenário.

Guilherme de Brito, o parceiro ideal

Na obra de Nelson Cavaquinho ressaltam, em quantidade e em qualidade, as músicas que ele fez com um de seus vários parceiros, o mais importante deles: Guilherme de Brito. Ao iniciarem seu trabalho, nos anos cinquenta, os dois fizeram um pacto de só comporem juntos, formando uma dupla que bem poderia ser chamada “o Lennon e McCartney do samba”.

Enquanto Nelson era um boêmio de passar dias e noites seguidas nos bares, Guilherme, opostamente, trabalhou na Casa Edson (antiga fábrica de discos) durante trinta anos. Mas a afinidade estética superou as diferenças de comportamento, e eles produziram uma série de sambas antológicos – um deles, o famoso “A Flor e o Espinho”, que possui um dos inícios mais fortes e surpreendentes dentre as canções já escritas em língua portuguesa: “Tire o seu sorriso do caminho/ Que eu quero passar com a minha dor”.

Da dupla nasceram ainda, entre outros: “Folhas Secas”, “Pranto de Poeta”, “O Bem e o Mal” e “Quando Eu Me Chamar Saudade”. No trabalho da dupla, não havia rigidez na divisão de papéis. Ambos faziam letra e música e, segundo depoimento de Guilherme de Brito, “no final ele passou a fazer a melodia, e eu a letra”. Em “A Flor e o Espinho”, por exemplo, a primeira parte é de Guilherme, e a segunda, de Nelson.

Os outros parceiros de Nelson, anteriores a Guilherme, foram ocasionais, e muitos entraram na parceria em troca de favores, como era costume na época. Algumas exceções foram Jair do Cavaquinho, da escola de samba Portela, com quem ele compôs “Eu e as Flores”, e Cartola, companheiro de boemia e de Mangueira, co-autor de “Devia Ser Condenada”.
A parceria com Zé Kéti é curiosa: como pertenciam a sociedades arrecadadoras diferentes, não podiam assinar conjuntamente uma composição, segundo uma regra vigente na época. Por isso, a Nelson (e a dois outros, José Alcides e José Ribeiro de Souza) foi creditado o samba “Nome Sagrado”, também de Zé; e a este, sozinho, “Meu Pecado” (gravado por Paulinho da Viola), composto pelos dois.

O tema da morte

A morte é obsessão na obra de Nelson Cavaquinho. Eis um dos maiores fatores de originalidade em sua arte: não se encontra, entre os compositores brasileiros, um outro que tenha feito desse – um assunto difícil por excelência – o tema principal de suas obras, sendo isso raro também na música popular de qualquer país.

Em Nelson, a angústia da morte e a efemeridade da vida incidem, às vezes inesperadamente, em canções falando de amor ou da escola de samba do compositor (“Folhas Secas”, por exemplo). Mesmo um símbolo poético como a flor – comumente associado à feminilidade, à mulher, à delicadeza – pode se apresentar na sua conotação funérea. Como em “Eu e as Flores”: “Quando eu passo perto das flores/ Quase elas dizem assim:/ ‘Vai, que amanhã enfeitaremos o seu fim’”.

A que poeta ocorreria a inspiração – levada à ousadia – de fazer um samba revelando ter dado enfim o beijo há tanto tempo esperado em sua amada, agora que ela está morta, no caixão? Pois foi o que Nelson Cavaquinho – e Guilherme de Brito – fizeram, em “Depois da Vida” (gravada por Paulinho da Viola, em 1971).

O conflito básico presente nas letras dos seus sambas pode ser sintetizado no paradoxo final de “Rugas”: “Feliz daquele que sabe sofrer”. A consciência de que ser feliz consiste apenas em administrar o sofrimento e a tristeza leva à crença num cristianismo popular e pessimista, no qual a caridade é uma virtude. A todos só restaria levar a vida tendo compaixão uns dos outros; afinal existir é sofrer, e viver bem é sofrer sem demonstrar. A única saída, portanto, se torna o descanso final, a morte, paradoxalmente também fonte de sofrimento, pois implica perda.

Abordando a morte ou não, Nelson transforma o lugar-comum em incomum. O imprevisto caracteriza também várias outras imagens lançadas nas letras curtas e fortes, ao mesmo tempo simples e surpreendentes, de seus sambas: “A luz negra de um destino cruel/ Ilumina o teatro sem cor/ Onde estou desempenhando o papel/ De palhaço do amor”, canta ele, em “Luz Negra”. Letras despojadas na construção, mas ricas nas novas realidades que cria.

O significado de Mangueira

Nelson Cavaquinho começou sua história musical como um chorão – provavelmente vem do choro a imprevisibilidade de suas melodias. Nessa fase, seu instrumento era o cavaquinho: daí o apelido com que ficou conhecido.

Foi num segundo momento que ele conheceu o morro de Mangueira, devido a seu emprego como soldado da cavalaria da Polícia Militar do Rio de Janeiro. O contato com Cartola, Carlos Cachaça e outros bambas mangueirenses o transformou definitivamente num sambista.

Só então seu instrumento passou a ser o violão. Nelson o tocava de uma maneira muito especial: beliscando as cordas com o indicador e o polegar, tirando assim um som único – uma das principais peculiaridades de seu personalíssimo trabalho.

Mesmo tendo residido em Mangueira por apenas um ano e meio, a ela o compositor dedicou vários sambas, entre eles “Sempre Mangueira”, “Pranto de Poeta”, “Folhas Secas” e “A Mangueira Me Chama”. A Mangueira está para Nelson Cavaquinho assim como a Vila Isabel está para Noel Rosa, e a velha cidade de Salvador para Dorival Caymmi: trata-se de pátria utópica, motivo de canção e morada ideal do poeta.

Os principais intérpretes

Ciro Monteiro foi o primeiro grande intérprete da obra de Nelson Cavaquinho, responsável pelo seu primeiro sucesso como compositor, com a gravação de “Rugas”, em 1946. Dentre os cantores da mesma geração, Dalva de Oliveira (“Palhaço”) e Roberto Silva (“Notícia”) também lançaram importantes composições do sambista.

Nos anos sessenta, Nara Leão (“Luz Negra” e “Pranto de Poeta”) e, em seguida, Elizeth Cardoso (“A Flor e o Espinho” e “Luz Negra”) deram início a uma onda de descoberta e gravação de seus sambas. Esse processo veio a se realizar de fato na década seguinte.

Um número crescente de cantores da MPB passou então a incorporá-lo a seus repertórios. Entre eles, tornaram-se grandes divulgadores de sua obra os sambistas Paulinho da Viola (“Depois da Vida”, “Duas Horas da Manhã”), Clara Nunes (“Minha Festa”, “O Bem e o Mal”) e Beth Carvalho (“Folhas Secas”, “Miragem”). Elis Regina fez de “Folhas Secas” um grande sucesso, e Chico Buarque lançou “Cuidado com a Outra”.

Nos anos noventa, a jazzista Leny Andrade lhe dedicou um songbook, “Luz Negra – Nelson Cavaquinho por Leny Andrade”. Em 2000, a musa das novas gerações Marisa Monte registrou em CD um de seus sambas com Guilherme de Brito: “Gotas de Luar”.

O próprio Nelson só passou a gravar discos individuais nos anos setenta. E, no entanto, é ele, acompanhado apenas do seu violão, “sempre colado ao peito tão amargurado”, o melhor intérprete de si mesmo.

É impressionante a organicidade que se estabelece entre canto, acompanhamento, música e letra, quando ele interpreta seus sambas. O tema da morte e o tom de amargura que caracterizam os textos têm a sua correspondência no timbre da voz desafinada e na crueza do som do violão. Tudo – palavras e sons – parece falar a mesma coisa. Não é comum se observar isso com tanta densidade e intensidade.

Aqui, merecem lembrança os nomes de Dorival Caymmi, na música brasileira, e Robert Johnson, o grande criador do blues rural, na música norte-americana (ao qual, aliás, o poeta Augusto de Campos associou Nelson Cavaquinho). São dois outros exemplos dessa classe rara de compositores-cantores que interpretam suas criações com uma inteireza, uma integridade e uma expressividade tais, que ninguém mais – por melhor que seja o cantor – pode fazê-lo.

Orlando Silva

Publicado em 2001 na série de sites “Os Inventores da Música Brasileira”, do portal UOL

“O maior de todos os tempos”

Orlando Silva, o grande modernizador do canto brasileiro, foi para muitos o maior cantor que a música popular do Brasil produziu nos anos 30 e 40 – e para alguns, simplesmente o maior de todos os tempos já surgido no país.

Suas interpretações se tornaram famosas pelo fraseado flexível, pela emissão macia e pela dicção cristalina. Combinando perfeitamente beleza e potência vocal, seu canto, de uma suavidade natural, era sóbrio e viril, por um lado, ao mesmo tempo que ornado, delicado e sutil, por outro.

Orlando Silva possuía uma notável capacidade de controle e de modulação da voz. Numa mesma canção, podia variá-la de agudos com falsestes a tons bastante graves. Mas não tinha apenas afinação: exibia também muita bossa. Seu sentido rítmico era admirável, e ele não repetia a mesma divisão ao retornar à primeira parte, introduzindo-lhe sempre alterações.

O cantor emprestava sentimento e emoção à interpretação de cada música, sem contudo deixar que seu canto se transformasse em algo derramado. A par disso, deu uma nova dimensão ao microfone, demonstrando uma noção exata no seu uso – um fator importante numa época sem sofisticação tecnológica aplicada ao som.

Para tudo isso, Orlando Silva mostrou ter uma sensibilidade naturalmente moderna. Por tudo isso, transformou a arte de cantar entre nós, lançando um estilo único e original que se firmou como uma escola, servindo de modelo e referência para as gerações subsequentes de cantores brasileiros. A de João Gilberto, por exemplo.

“O Cantor das Multidões”

Orlando Silva foi o primeiro grande ídolo de massas que apareceu no Brasil. Nos anos do auge de sua trajetória, nenhum outro artista obteve tanta popularidade quanto ele no país. Suas apresentações ao ar livre atraíam então imensas concentrações de pessoas, daí ele ter recebido o epíteto de “O Cantor das Multidões”.

Seu sucesso nessa fase – segunda metade da década de 30, primeira da seguinte – já foi comparado ao que Frank Sinatra teve, mas somente alguns anos depois, nos Estados Unidos. Moças e mulheres gritavam e desmaiavam à sua aparição, correndo atrás dele para agarrá-lo ou rasgar-lhe a roupa. Nesse sentido, no contexto nacional, ele precedeu também, em quase trinta anos, a Roberto Carlos.

Mesmo com tanto êxito, Orlando Silva nunca abriu mão da qualidade do trabalho, a começar do repertório que gravou e cantou.

O ponto alto da sua carreira e da sua voz coincidiu com o tempo de contratado pela RCA Victor (hoje BMG), de 1935 a 1942. Mais ou menos a partir de 1945, porém, a voz começou a dar mostras de um problema que afetou a sua sonoridade cristalina, seu timbre perfeito e os seus agudos suavíssimos.

Orlando Silva se tornou o primeiro nome consagrado da música brasileira que sucumbiu ao uso de drogas pesadas. A sua ascensão meteórica teve um relativo ostracismo subsequente; da glória, consolidada pela paixão das massas, ele quase conheceu a obscuridade. Foi portanto uma trajetória tormentosa – e uma existência atribulada – a sua.

Apesar do problema vocal, sua interpretação se manteve a mesma até o fim de sua carreira, nos anos 70: excelente. Embora alguns (jornalistas sobretudo) considerem vertiginoso o declínio de sua voz, para outros (artistas principalmente), nenhum outro cantor do passado se comparou a ele mesmo em sua fase decadente. Entre estes se contam os cantores e compositores Caetano Veloso e Paulinho da Viola.

Modelo para a bossa nova e o Tropicalismo

Orlando Silva serviu de modelo e referência para dois dos mais importantes e prestigiados movimentos de modernização da música, da arte e da cultura brasileira no século 20: a bossa nova e o Tropicalismo.

Dentre os elementos da tradição brasileira, o cantor e violonista João Gilberto o escolheu como uma das bases a partir das quais construiu o edifício da bossa nova. Na origem da invenção joãogilbertiana, Orlando adquiriu uma importância capital, ao lado do compositor Dorival Caymmi e do cantor Ciro Monteiro, entre outros.

O estilo de João vem de Orlando, para ele “o maior cantor do mundo”. A contenção e a economia sem perda do colorido melódico do velhaguardista levaram o bossanovista a se influenciar por ele e a elegê-lo mestre. Não à toa, João desde sempre visitou clássicos de Orlando, como “A Primeira Vez”, “Preconceito”, “Curare” e “Aos Pés da Cruz”. Este samba chegou a ser gravado por Miles Davis, por causa de João – e, indiretamente, por causa de Orlando.

A maciez na emissão macia e a flexibilidade no fraseado foram o que o carioca legou ao baiano, segundo Caetano Veloso, co-autor de outra revolução estética e musical que também viu no “Cantor das Multidões” uma espécie de farol. Para o líder tropicalista, Orlando representou particular e especial interesse por ter sido ao mesmo tempo “um fenômeno de massa e um artista do maior refinamento”.

Mais do que isso, Caetano, assim como um companheiro de geração, Paulinho da Viola, se deixou influenciar pelas interpretações de Orlando e tomou seus principais valores como cantor como critério de avaliação de canto. Em referência a ele, acabou gravando outro de seus clássicos, “Lábios que Beijei”.

Ainda Caetano, sobre Orlando (em seu livro de reminiscências tropicalistas, “Verdade Tropical”): “Tinha uma voz bela e poderosa, mas não impunha exibicionisticamente sua potência vocal, antes amaciando a emissão nos agudos, o que, combinado com seu senso do fraseado, suas divisões rítmicas inventivas e a clareza da dicção, fazia dele um músico da canção”.

Esta última característica é de certa forma sublinhada também em outro livro, “Orlando Silva – O Cantor das Multidões”. Nele, o biógrafo Jonas Vieira advoga uma tese para a origem do estilo orlandiano, associando-a ao choro carioca, em cujo berço o artista nasceu, “constituindo-se no único cantor fruto desse gênero de música”. Um gênero de música popular elaborada, melodicamente sofisticada, cultuada pelos melhores músicos. Segundo o autor, Orlando “transportou toda a magia instrumental do choro para o canto, emprestando-lhe voz e poesia”.

O jornalista Ruy Castro também vincula as interpretações de Orlando ao choro, apontando ainda, especialmente nos foxes e nas valsas que ele gravou, uma influência do cantor Bing Crosby, o grande inovador, nos anos 20 e 30, do canto norte-americano. “É Crosby à brasileira, com fabulações de choro e uma exclusiva bossa sestrosa e carioca”,escreveu.

Belo repertório, belos arranjos

Um dos segredos para o nível da arte de Orlando Silva está na fina sensibilidade demonstrada pelo intérprete na seleção e promoção de um repertório de alta qualidade. Assinado por muitos dos melhores compositores da época, nele se alinham algumas dezenas de clássicos da música brasileira (ver Uma seleção de clássicos do intérprete).

Excelente como cantor de sambas, Orlando se mostrou, no entanto, insuperável nas canções lentas – sambas-canções e valsas, além de foxes. Esta parte do seu repertório constituía na mais adequada para o tipo de cantor, romântico, que era.

De sensibilidade ele também deu mostras na escolha dos criadores dos arranjos e do acompanhamento das suas gravações. O cantor estabeleceu uma relação perfeita, entrosada, com o maestro Radamés Gnatalli, que “arranjou” vários de seus sucessos e que se revelou um grande modernizador das orquestrações. Outro importante arranjador com que Orlando contou foi Pixinguinha.

Uma seleção de clássicos do intérprete

  • De Pixinguinha: “Carinhoso” (com João de Barro), “Rosa” (com Otávio de Souza) e “Página de Dor” (com Cândido das Neves).
  • De J. Cascata e Leonel Azevedo: “Lábios que Beijei”, “Juramento Falso” e “Meu Romance” (este, só de J. Cascata).
  • De Custódio Mesquita e Mário Lago: “Nada Além” e “Enquanto Houver Saudade”.
  • De Pedro Caetano e Claudionor Cruz: “Caprichos do Destino”.
  • De Assis Valente: “Alegria” (com Durval Maia).
  • De Noel Rosa: “Dama do Cabaré”.
  • De Benedito Lacerda e Humberto Porto: “A Jardineira”.
  • De Bororó: “Curare”.
  • De Wilson Batista e Marino Pinto: “Preconceito”.
  • De Zé da Zilda e Marino Pinto: “Aos Pés da Cruz”.
  • De Joubert de Carvalho: “Por Quanto Tempo Ainda”.
  • De Octavio Mendes, José Marcílio e Déo: “Súplica”.
  • De Ary Barroso: “Faixa de Cetim”.
  • De Ataulfo Alves e Mário Lago: “Atire a Primeira Pedra”.
  • De Lupicínio Rodrigues: “Brasa”.

O ato de cantar, segundo o cantor

“Um momento de extrema tensão vivida tanto pelo cantor como pelo ouvinte. E que precisa ser tratado com o máximo de suavidade e o máximo de impacto, num estado de concentração absoluta.
“O som transmitido pelo intérprete não pode ser muito forte nem muito fraco, mas modulado de forma que não gere desconforto. Não deve haver excesso de ruído nem escassez de som, isto é, não se deve gritar nem baixar a voz a ponto de o ouvinte perturbar-se ou sentir-se incomodado pela palavra mal emitida pelo intérprete.
“Trata-se de um ato difícil de realizar. Porque no momento em que se está cantando, as tensões são fortíssimas. A mínima falha pode ser fatal, derrubando o encanto geral do espetáculo.
“Deve-se também ser esperto e dosar a voz a fim de aproveitá-la com o máximo de precisão, tirando partido dos momentos em que a música pede elevação ou diminuição da voz, ou seja, nos agudos com falsetes e nos tons graves muito baixos – nas modulações.
“E explorar ao máximo as vantagens do potencial de voz, como a elevação de um tom para outro numa única emissão.”

Poucos nomes do canto brasileiro demonstraram tal clareza de consciência técnica da linguagem que dominava.

Na descrição da criação de seu estilo, Orlando Silva o comparou ao dos dois mais importantes nomes do canto brasileiro na época em que surgiu. Segundo afirmou, ele quis reunir o que Francisco Alves possuía em termos de voz e o que Sílvio Caldas possuía em termos de intepretação. Tinha-se, em um, o cantor, e em outro, o intérprete. Orlando buscou – e logrou – ser a síntese de ambos, cantor e intérprete.

O cantor também disse certa vez ter uma dívida com “O Rei da Voz”, pelos toques que recebeu deste no início de carreira. “A noção de aproximação e distanciamento do microfone, ou então o seu uso mais ou menos de lado para provocar um efeito de voz, constituía-se num jogo discreto mas importantíssimo entre o cantor e o seu público. Muito cedo aprendi isso – que com o rádio moderno se tornou mais fácil –, orientado pelo Chico Alves.”

João de Barro

Publicado em 2001 na série de sites “Os Inventores da Música Brasileira”, do portal UOL

Um compositor realmente popular

“Yes! Nós Temos Bananas”, “Touradas em Madri”, “Pastorinhas”, “Carinhoso”, “Pirata da Perna de Pau”, “Chiquita Bacana”, “Balancê”, “Cantores do Rádio”. Peças estabelecidas na nossa memória coletiva, essas músicas se mantêm populares até hoje, mesmo tendo sido compostas, na maior parte, há mais de 60 anos. De comum entre elas, uma única coisa: o nome do compositor carioca João de Barro.

Também chamado de Braguinha, ele é uma das figuras de vida e arte mais longas da história da música popular brasileira. Com mais de 400 criações (aí incluídas suas versões para canções estrangeiras), JB assina uma das maiores obras já produzidas por um compositor nacional. No início do século 21, é o remanescente mais longínquo e importante de uma época realmente de ouro de nossa canção: os anos 30, era fundante de – e fundamental para – tudo o que veio depois dela, da bossa-nova e do tropicalismo à MPB contemporânea.

O rei das marchas de carnaval

João de Barro, Braguinha, se especializou em marchas carnavalescas que fizeram enorme sucesso até perto do final dos anos 50. Alguns de seus clássicos nesse gênero chegaram a obter projeção internacional, como “Touradas em Madri” e “Chiquita Bacana” (além do samba-canção “Copacabana”).

Diferentemente do samba carnavalesco, uma criação tipicamente negra saída das classes humildes da população do Rio de Janeiro, a marchinha foi inventada e desenvolvida por compositores da classe média carioca. É o que conta Jairo Severiano em sua biografia de João de Barro, “Yes, Nós Temos Braguinha”. O pesquisador aponta também as principais características do gênero: “O ritmo alegre, saltitante; a melodia simples, fácil de cantar; a letra leve, satírica e bem-humorada”.

Dois compositores serviram para consolidar o prestígio da marcha carnavalesca: Lamartine Babo e João de Barro. Um fino senso de humor e um raro poder de observação foram decisivos para o sucesso de ambos.

Em Braguinha, Severiano destaca, como objetos fundamentais explorados por suas marchas, “a exaltação da mulher e a crônica do cotidiano. Esses temas, ele os desenvolveu num estilo que combina simplicidade, bom gosto e senso crítico, com doses certas de lirismo, humor e malícia”.

Parceiros e intérpretes

João de Barro se tornou o sucessor de outro grão-mestre do carnaval brasileiro, Lamartine Babo. Braguinha começou a compor tentando copiar Lalá, no início da década de 30. Da imitação passou à paródia, com “Linda Lourinha” (em resposta a “Linda Morena”, de Babo, do carnaval de 1933), chegando por fim à co-autoria, em “Uma Andorinha Não Faz Verão” e “Cantores do Rádio” (esta, uma “triceria” de JB, Lamartine e Alberto Ribeiro).

Alberto Ribeiro – autor, sozinho, de um clássico da música junina: “Sonho de Papel” – foi o parceiro mais constante de JB. A primeira autoria da dupla, “Deixa a Lua Sossegada”, satirizou o culto da imagem romântica da lua: “É madrugada;/ De longe eu vim./ Deixa a Lua sossegada/ E olha pra mim…” Das aqui citadas até agora, só não são dos dois “Pastorinhas” (com Noel Rosa) e “Carinhoso” (com Pixinguinha), além de “Pirata da Perna de Pau” e “Linda Lourinha”, só de Braguinha.

JB compunha assobiando, pois não “sabia” música. Com Ribeiro, dividia sons e palavras. E geralmente fazia só as letras das músicas compostas com os demais parceiros, entre os quais figuraram nomes como os de Alcir Pires Vermelho (co-autor de “Laura”) e Antonio Almeida (de “Vai com Jeito”).

Desses modos tiveram origem composições que se popularizaram nas vozes de Carmen Miranda, Mário Reis, Silvio Caldas, Orlando Silva, Francisco Alves, Carlos Galhardo, Carmen Barbosa, Emilinha Borba, Jorge Goulart e outros grandes intérpretes que se distinguiram nos anos 30, 40 e 50. Nos 60, ele seria regravado por Caetano Veloso; nos 70, por Chico Buarque, Maria Bethânia e Nara Leão e, especialmente, por Gal Costa, que estourou com “Balancê”; e nos 90, por Djavan.

Pré-bossanovista e pré-tropicalista

Marchas, sobretudo – mas não apenas. João de Barro também excursionou pelos terrenos da valsa, da toada, do samba, do samba-canção. Compostas neste gênero, aliás, se alinham duas músicas já tidas como precursoras da bossa-nova: “Laura” (parceria com A.P. Vermelho) e “Copacabana” (com A. Ribeiro), lançada por Dick Farney, em 1946.

Em matéria de antecipação, no entanto, o caso mais notável é o de “Yes! Nós Temos Bananas”, tropicalista – trinta anos antes! – na essência, na medula e na gênese: a marcha emprega um recurso artístico caro ao Tropicalismo, a paródia, tendo nascida como réplica a um fox americano em moda na época, “Yes! We Have No Bananas”. Não foi à toa, portanto, que Caetano Veloso a regravou em plena vigência do movimento, em 1967, movido talvez pela sua inclusão na revolucionária encenação de “O Rei da Vela”, do diretor Zé Celso Martinez Correa, naquele ano.

A precursora tropicalidade de Braguinha, porém, é evidenciada também por outra criação sua, a versão que fez para “Las Tres Carabelas” (“As Três Caravelas”). E que de novo o próprio Caetano, em dueto com Gilberto Gil, gravaram no álbum coletivo “Tropicália ou Panis etc Circensis”, em 1968.

Algo mais sobre “Yes! Nós Temos Bananas”. A par de suas conotações socio-econômicas, definindo um retrato a um tempo cômico e crítico das condições de nosso país, a música revela um outro componente distintivo do estilo de Braguinha e expressivo da brasilidade: o sexual. De fato, a malícia se faz presente em várias de suas canções, relacionada com o espírito do carnaval e do próprio brasileiro.

Clássicos da música infantil

Se por um lado muitas das canções de João de Barro são maliciosas, por outro, várias são por sua vez perpassadas por uma singeleza que caracteriza de modo especial uma parte significativa da sua vasta produção: a dirigida ao público infantil. Nenhum, dentre os grandes autores da história da MPB, se dedicou tanto a este filão como o criador (com Alberto Ribeiro) de “Capelinha de Melão”.

A popularidade de sua incursão no gênero – que incluiu dezenas de versões de canções americanas – é comparável à dos hinos que Lamartine Babo compôs para os clubes de futebol do Rio, tantas e tão conhecidas são as peças das adaptações de histórias infantis que fez. Alguns exemplos: “Chapeuzinho Vermelho”, “História da Baratinha”, “Pinóquio” e “Branca de Neve e os Sete Anões”.

Seus primeiros trabalhos do tipo coincidiram com o início das suas dublagens e traduções para filmes de Walt Disney no Brasil, em 1940. Desde 1935, JB já vinha trabalhando em cinema, tendo colaborado nos argumentos, roteiros, direção e trilhas dos históricos musicais “Alô, Alô, Brasil”, “Estudantes”, “Alô, Alô, Carnaval” e “Banana da Terra”.

Braguinha foi um polivalente em sua carreira, tendo também exercido a função de diretor artístico em gravadoras como a Columbia e a Continental. Nesta, se distinguiu ainda como produtor de uma coleção de discos infantis muito bem-sucedida comercialmente.

Lamartine Babo

Publicado em 2001 na série de sites “Os Inventores da Música Brasileira”, do portal UOL

O lugar de Lalá

Lamartine Babo foi um dos maiores compositores da época de ouro da história da música popular brasileira, a década de 30. Ao lado de nomes como Noel Rosa, Ary Barroso e Assis Valente, entre outros, ele se alinha no time dos criadores mais inventivos e originais, responsáveis pela formação do que veio a se chamar mais tarde de MPB.

Como Noel, Ary e Assis, da mesma geração, e como Dorival Caymmi, da posterior, LB (1904-1963) fixou rápida e definitivamente um estilo próprio no cenário musical nacional de seu tempo. Autor de marchas e sambas inconfundíveis, ele se distingue perfeitamente de qualquer outro grande marchista ou sambista brasileiro. O compositor, carnavalesco por excelência, se constitui “em um caso à parte, pela apurada sensibilidade e pelo fino humor de suas produções” – como escreveu seu biógrafo, Suetônio Soares Valença, em “Tra-la-lá” (edição Funarte, 1981).

Os clássicos de Lalá

O nome do carioca Lamartine Babo, ou simplesmente Lalá, como era carinhosamente chamado, é sinônimo de carnaval. É que a fase áurea de desenvolvimento de sua obra – de 1931 a 1937 – se pautou principalmente pela produção voltada para esse tipo de música. Naquele período, todo início de ano ele deu o tom do que ia ser cantado no Rio de Janeiro e em outros pontos do Brasil. Suas composições acabaram se consagrando como as mais expressivas no gênero em todos os tempos. Algumas se tornaram autênticos hinos da festa máxima do povo brasileiro.

“O Teu Cabelo Não Nega”, por exemplo, é uma das mais populares, senão a mais popular das marchas de carnaval já compostas. Mas ele compôs outras, num leque de grande variedade estilística. As românticas, como “Linda Morena”; as brejeiras, na linha de “Moleque Indigesto”; as maliciosas, do tipo de “Aí, Hem”. E entre seus clássicos carnavalescos figuram ainda “A Tua Vida É Um Segredo” e “Marchinha do Grande Galo”, além do samba “Rasguei a Minha Fantasia”.

Lalá não se limitou a esse repertório, porém. Investiu também com sucesso na expressão de outros aspectos da alma brasileira. Assim, perpetrou algumas canções sentimentais antológicas do nosso cancioneiro, como a sertaneja “No Rancho Fundo”, feita em parceria com Ary Barroso, e “Serra da Boa Esperança”. Além de valsas de um singelo romantismo, como “Eu Sonhei Que Tu Estavas Tão Linda” e “Mais Uma Valsa, Mais uma Saudade”.

Por outro lado, suas incursões no filão das músicas feitas para festas juninas resultaram em pelo menos duas das melhores composições no estilo: “Chegou a Hora da Fogueira” e “Isto É Lá com Santo Antônio”.

Por fim, dedicou-se à produção dos hinos dos grandes clubes de futebol do Rio, dos mais bonitos e conhecidos, dentre todos os já criados para times brasileiros: do Flamengo, do Fluminense, do Botafogo, do Vasco da Gama, do América – do qual era torcedor – e até do Bangu. Marchas de imensa popularidade entre nós, praticamente não passa uma semana no país sem que sejam executadas e entusiasticamente cantadas.

Canções de invenção

“Lamartine Babo, o verdadeiro artista da graça, do improviso, maravilhava a todos com versos humorísticos e frases cheias de espírito”. A sentença, colhida em um jornal do Rio nos anos 30, falava sobre uma de suas apresentações. Mas se aplica perfeitamente às suas canções, que o colocam entre os compositores-letristas brasileiros de maior inventividade do passado, do presente e do futuro.

Veja-se o caso de “Canção para Inglês Ver”. Obra-prima do nonsense popular brasileiro, é ao mesmo tempo uma sátira à influência americana e à moda da língua inglesa, no momento em que começam a se introduzir entre nós através do cinema falado (nesse sentido, guarda relações com “Não Tem Tradução”, de Noel Rosa, e “Good-bye”, de Assis Valente). Seus versos misturam palavras do português e do inglês deliciosamente rimadas, usando ainda termos franceses.

Outra tirada de bom humor de extração tipicamente lamartiniana é a rancheira “Babo…zeira”. Aqui, seu gosto por trocadilhos – e também sua auto-ironia – já se percebem no título. Numa passagem, chega a dizer: “Rancheira, o nome está dizendo,/ É rã que cheira…”.

Disparates como esse, de um dadaísmo ingênuo, fazem a graça também da sintomaticamente intitulada “Canção do A.B.surdo”, uma de suas parcerias com Noel Rosa. E com Noel ele compôs ainda “A.E.I.O.U.” (sobre a personagem Juju, que “foi pra Ásia e teve azia…”), classificada bem-humoradamente pela dupla como “marcha colegial”.

História do Brasil

Quem foi que inventou o Brasil?
Foi seu Cabral
No dia 21 de abril
Dois meses depois do Carnaval

Depois Ceci amou Peri
Peri beijou Ceci
Ao som do “Guarani”
Do “Guarani” ao guaraná
Surgiu a feijoada
E mais tarde o parati

Pelo espírito e pelo estilo, pelo tema e pela forma, essa composição carnavalesca de LB poderia tranquilamente ter sido criada pelo grande poeta modernista Oswald de Andrade, o autor de “Poesia Pau-Brasil” – não por acaso, um apologista do Carnaval brasileiro, em seu “Manifesto Antropófago”.

Certas bossas criadas por Lalá foram antecipadoras na sua modernidade. Que dizer da enumeração de “Senhorita Carnaval”: “Carioquíssima!/ Animadíssima!/ Renovadíssima!/ Nacionalíssima!/ Amabilíssima!/ Valiosíssima!/ Assanhadíssima!/ Luxuosíssima!”?

Ou então do jogo sonoro-linguístico de “Hino do Carnaval Brasileiro”, em que, pela exploração de um artifício simples mas de ótimo efeito, uma frase emenda na outra, o som da última sílaba de um verso dando início ao seguinte: “Cor do café, a nossa grande produção/ – São, são, são, são quinhentas mil morenas!”.

Mais de trinta anos depois, não seria outro o procedimento que Caetano Veloso empregaria em “Cara a Cara”, justamente na sua fase de maior dedicação à produção de músicas para carnaval, no começo dos 70. Desde o primeiro verso a letra faz a mesma brincadeira de som e sentido, culminando com: “De alegria/ ria, ria, ria, ria,/ Que a luz se irradia/ – Dia, dia, dia, dia,/ Dia de sol na Bahia”.

A musicalidade de Lalá

O talento do compositor LB não se reduziu ao seu desempenho como letrista. Ele foi também, reconhecidamente, de um senso musical admirável na criação de muitas de suas melodias e até na definição de vários arranjos que as vestiram.

“Um dos poucos compositores que sabiam exatamente o que queriam com suas músicas”: eis como o definiu certa vez Radamés Gnatalli, o grande maestro que – assim como Pixinguinha – se responsabilizou pelos mais bonitos acompanhamentos que se fizeram para as músicas de LB. “Ele descrevia todo o arranjo, cantando a introdução, meio e fim, solfejava acordes e sugeria partes instrumentais. A gente só fazia escrever”.

Lalá se notabilizou pela concepção das introduções instrumentais que colaboraram decisivamente para a fixação de canções suas como “Linda Morena”, “Chegou a Hora da Fogueira”, “Menina Oxigenê”, “2 a 2” e, acima de todas, a internacionalmente conhecida introdução de “O Teu Cabelo Não Nega”.

Os intérprete e a permanência da obra

LB foi cantado, gravado e lançado pelos mais significativos cantores do seu círculo no seu tempo. Mas sobretudo por Mário Reis, cuja voz, pequena, e tipo de interpretação, contida, despojada, moderna, combinava à perfeição com o espírito das suas canções. Sozinho ou em dupla com Francisco Alves ou mesmo com Lalá, Mário Reis constituiu-se no principal intérprete de LB, de quem aliás era grande amigo.

O próprio autor também se constitui num ótimo intérprete dele mesmo, principalmente das peças mais engraçadas de seu repertório, que teve ainda em Carmen Miranda outro intérprete importante e funcionalmente adequado. Francisco Alves e Carlos Galhardo completam o grupo de principais cantores da sua obra.

Uma prova da sua durabilidade já foi dada pelas regravações – e suas repercussões públicas – recebidas de artistas de gerações muito posteriores à de LB. Foram particularmente os casos de Erasmo Carlos (com “Eu Sonhei Que Tu Estavas Tão Linda”) nos anos 60, de Chico Buarque, Maria Bethânia e Nara Leão (“Cantores do Rádio”) nos anos 70, e de João Gilberto e Rita Lee (“Joujoux e Balangandãs”), As Frenéticas (“Linda Morena”) e Xitãozinho e Chororó (“No Rancho Fundo”) nos 80. Lalá vive para sempre.