Escrito nas Estrelas

Você pra mim foi o sol
De uma noite sem fim
Que acendeu o que sou,
Pra renascer tudo em mim.
Agora eu sei muito bem
Que eu nasci só pra ser
O seu parceiro, seu bem, (*)
E só morrer de prazer.

Caso do acaso bem marcado em cartas de tarô,
Meu amor, esse amor de cartas claras sobre a mesa
É assim.
Signo do destino, que surpresa ele nos preparou;
Meu amor, nosso amor estava escrito nas estrelas,
Tava, sim.

Você me deu atenção
E tomou conta de mim.
Por isso, minha intenção
É prosseguir sempre assim.
Pois sem você, meu tesão,
Não sei o que eu vou ser;
Agora preste atenção:
Quero casar com você.

_____________________

Variante:
(*) Sua parceira, seu bem,

SEMPRE-NOVAS

Série realizada entre 1994 e 1995, concebida e produzida por Carlos Rennó, no Museu da Imagem e do Som de São Paulo, sobre as obras dos compositores brasileiros do passado. O projeto apresentou catorze shows, com, entre outros, os seguintes artistas:

Luiz Melodia (cantando Geraldo Pereira);
Jorge Mautner (Wilson Batista);
Itamar Assumpção (Ataulfo Alves);
Edgard Scandurra (João de Barro);
Bocato e Orquestra (Pixinguinha);
Carlos Fernando (Ary Barroso);
Péricles Cavalcanti (Luiz Gonzaga);
Jussara Silveira (Paulo Vanzolini);
Neuza Pinheiro (Dolores Duran);
Skowa (Monsueto Menezes).

ENCONTROS COM O SÉCULO 20

Série de concertos sobre obras de compositores eruditos de vanguarda, com produção artística de Carlos Rennó e curadoria de J. Jota de Moraes, realizada entre 1994 e 1995, no Museu da Imagem e do Som de São Paulo; destacando os seguintes artistas e espetáculos correspondentes:

Clara Sverner – O Piano no Século 20;
Martha Herr – Canção: Uma Panorâmica;
John Boudler e Grupo de Percussão da Unesp – O Século da Percussão;
Paulo Álvares – “Piano: Segunda Metade do Século”;
Luiz Eugênio Afonso – O Clarinete no Século 20.

Sem Preconceito


de “Ficar com você”, de Patrícia Marx
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Uma branquinha que nem sal
Um pretinho tal e qual azeviche (hã hã)
Uma gracinha o casal
Só um cara tão careta mete o pau
Dizendo viche!

Uma boneca de cal
Um boneco de piche
Combina tão legal
Mas tem quem piche
E fale mal

Ele que piche
E ele que se lixe

Sem preconceito (Yeah!)

Quem tem raça e cor
E tem graça também
De que raça que for
Pode ser meu bem
Pode ser confusão
Pode ser meu amor
Porque esse meu coração
Não tem cor

Átimo de Pó


de “Quanta”, de Gilberto Gil

Átimo de Pó

Entre a célula e o céu
O DNA e Deus
O quark e a Via-Láctea
A bactéria e a galáxia

Entre agora e o eon
O íon e Órion
A lua e o magnéton
Entre a estrela e o elétron
Entre o glóbulo e o globo blue

Eu
Um cosmos em mim só
Um átimo de pó
Assim: do yang ao yin

Eu
E o nada, nada não
O vasto, vasto vão
Do espaço até o spin

Do sem-fim além de mim
Ao sem-fim aquém de mim
Den´ de mim

Rapto Rápido


de “Suzana Salles”, de Suzana Salles
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Você lembra quanto eu te raptei?
(Ei)
Você passava
(Psiu…)
Na calçada
Te achei
Uma graça
E já fui à caça
Você vinha vindo caminhando linda e depressa
Que presa!
Eu previa tudo
Dali de cima do viaduto
Do chá
E você me topou, eu pensei:
– Puxa,
Ganhei!
No ato eu fui muito apto
Achei que era fácil
Chamei logo um táxi
Ao som das buzinas
E foi tão rápido o rapto
Nem deu tempo de dizer não

Mother’s Heart (Coração Materno)

“Say what you want, oh my dearest,”
Said the loving peasant to the one he loved.
“For you I will steal, I will kill,
Though you cause me sorrow and pain, my beloved.
I just want to prove I adore you,
And worship your being, and for you I sigh.
So say what you want, I implore you,
For me it won´t matter to kill or to die.”

And she coyly answered this way:
“If you love me as much as you say,
If you´re madly in love, then depart,
Go and bring to me your mother´s heart.”
But believing in what he was told,
He ran fast as a flash down the road.
And his dear became so stupefied
That she fell on the pathway and cried.

The peasant enters the cabin,
In front of the altar his mother he sees;
Then he, the demon, starts stabbing
The breast of the lady, who prayed on her knees.
He cuts out her heart, that´s bleeding,
The heart that he wanted, all other hearts above,
And shouts with a voice full of pleading:
“Victoria! Victoria! Here´s my proof of love.”

He was coming back running again,
When he tumbled and broke one leg then.
And his poor mother´s heart fell and rolled
Away from his hard hands down the road.
So a voice echoed under the sun:
“Are you hurt, oh my poor darling son?
Come embrace me, darling, I´m still here,
Come embrace me, I´m still yours, my dear.”

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Disse um campônio à sua amada:
“Minha idolatrada, diga o que quer.
Por ti vou matar, vou roubar,
Embora tristezas me causes, mulher.
Provar quero eu que te quero,
Venero teus olhos, teu porte, teu ser.
Mas diga tua ordem, espero,
Por ti não importa matar ou morrer”.

E ela disse ao campônio, a brincar:
“Se é verdade tua louca paixão,
Parte já e pra mim vai buscar
De tua mãe inteiro o coração”.
E a correr o campônio partiu;
Como um raio na estrada sumiu.
E sua amada qual louca ficou,
A chorar na estrada tombou.

Chega à choupana o campônio;
Encontra a mãezinha ajoelhada a rezar.
Rasga-lhe o peito o demônio,
Tombando a velhinha aos pés do altar.
Tira do peito sangrando
Da velha mãezinha o pobre coração,
E volta a correr proclamando:
“Vitória! Vitória! Tem minha paixão”.

Mas em meio da estrada caiu
E na queda uma perna partiu,
E à distância saltou-lhe da mão
Sobre a terra o pobre coração.
Nesse instante uma voz ecoou:
“Magoou-se, pobre filho meu?
Vem buscar-me, filho, aqui estou,
Vem buscar-me que ainda sou teu!”

Letra e música de Vicente Celestino, 1937

The Tragedy of Angelica (O Drama de Angélica)

The tragedy of Angelica – Act One

Here is my canticle
Unsystematical
Which is so typical
When one is not physical
My epic poetry
Rhymed with absurdity
Done with rapidity
And with insanity

I loved Angelica
She was so colorless
Had no salubrity
Only timidity
She was malignant
And her rapacity
Made my esophagus
Laugh very heavily

In a cold evening
In the big theater
We heard the notable
Virtuoso pianist
Outside was Zephyrus
Spoiling the spectacle
Therefore Angelica
Became asthmatical

The tragedy of Angelica – Act Two

I took Angelica
To a good hospital
And found a specialist
With prices moderate
Upon examining
It was so terrible
She had the cholera
And also syphilis

I ran immedi´tely
To buy some medicine
And also strychnine
To help her agony
A stupid pharmacist
Was irresponsible
Confused the formula
Made it illegible

He wasn´t scrupulous
He was ridiculous
Changing the elements
In all recipients
I hurried back speedily
Thirteen kilometers
Riding my bicycle
Faster than lightening

The tragedy of Angelica – Act Three

In a hot afternoon
As she was shivering
I gave Angelica
That drug or medicine
Such an experiment
Brought her no merriment
She drank two chalices
And got paralysis

What a fatality
What a calamity
It was an overdose
To her esophagus
The thing I gave to ´er
Would bring a grave to ´er
She cri-ed terribly
And di-ed instantly

Her dad got serious
Found it mysterious
A man so curious
Became so furious
Got many manias
A miscellanea
Of neurasthenia
And schizophrenia

The tragedy of Angelica – Fourth and Last Act

So died Angelica
And in her tumulus
She was lugubrious
And quite inanimate
After the autopsy
The doctors diagnosed
That my Angelica´s
Ill was inveterate

But in her memory
Made a sarcophagus
Black like the ebony
Near the asparagus
In the green botany
She lives in harmony
In the monotony
Of immortality

And as an epitaph
Poetic dolorous
I wrote an epigraph
Pathetic amorous:
“Here lies Angelica
Who lived in palaces
A girl so glamorous
Died in paralysis”

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O Drama de Angélica – Primeiro Ato

Ouve meu cântico
Quase sem ritmo
Que a voz de um tísico
Magro esquelético
Poesia épica
Em forma esdrúxula
Feita sem métrica
Com rima rápida

Amei Angélica
Mulher anêmica
De cores pálidas
E gestos tímidos
Era maligna
E tinha ímpetos
De fazer cócegas
No meu esôfago

Em noite frígida
Fomos ao lírico
Ouvir o músico
Pianista célebre
Soprava o zéfiro
Ventinho úmido
Então Angélica
Ficou asmática

O Drama de Angélica – Segundo Ato

Fomos ao médico
De muita clínica
Com muita prática
E preço módico
Depois do inquérito
Descobre o clínico
O mal atávico
Mal sifilítico

Mandou-me o célere
Comprar noz vômica
E ácido cítrico
Para o seu fígado
O farmacêutico
Mocinho estúpido
Errou na fórmula
Fez despropósito

Não tendo escrúpulo
Deu-me sem rótulo
Ácido fênico
E ácido prússico
Corri mui lépido
Mais de um quilômetro
Num bonde elétrico
De força múltipla

O Drama de Angélica – Terceiro Ato

O dia cálido
Deixou-me tépido
Achei Angélica
Já toda trêmula
A terapêutica
Dose alopática
Lhe dei em xícara
De ferro ágate

Tomou num fôlego
Triste e bucólica
Esta estrambólica
Droga fatídica
Caiu no esôfago
Deixou-a lívida
Dando-lhe cólica
E morte trágica

O pai de Angélica
Chefe do tráfego
Homem carnívoro
Ficou perplexo
Por ser estrábico
Usava óculos
Um vidro côncavo
Outro convexo

O Drama de Angélica – Quarto e Último Ato

Morreu Angélica
De um modo lúgubre
Moléstia crônica
Levou-a ao túmulo
Foi feita a autópsia
Todos os médicos
Foram unânimes
No diagnóstico

Fiz-lhe um sarcófago
Assaz artístico
Todo de mármore
Da cor do ébano
E sobre o túmulo
Uma estatística
Coisa metódica
Como “Os Lusíadas”

E numa lápide
Paralelepípedo
Pus esse dístico
Terno e simbólico:
“Cá jaz Angélica,
Moça hiperbólica,
Beleza helênica,
Morreu de cólica!”

Música e letra de Alvarenga e M.G. Barreto, 1943

O poeta da canção Orestes Barbosa

Publicado na “Folha de S.Paulo” (“Mais!”), em 9/5/1993, sob o título “Orestes leva para canção os sinais do moderno”

Orestes Barbosa figura no primeiro time do elenco de compositores que atuaram naqueles anos douradíssimos da MPB, os anos 30 (do século vinte). É certo que suas composições não são tão populares quanto as de contemporâneos seus como Noel Rosa, Ary Barroso, Lamartine Babo. Embora de inspiração popular, seus versos têm um quê de aristocráticos no balanceamento entre um coloquia¬lismo menos comum e o uso de termos mais poéticos. Mesmo assim, bastaria citar uma criação sua para lhe atestar a importância como letrista e lhe assegurar um lugar no Olimpo dos compositores clássicos do Brasil: “Chão de Estrelas”. A canção, uma de suas parcerias com Sílvio Caldas, é das mais populares de todos os tempos entre nós, e das mais belas em imagens ricas de significado.

Na terceira de suas quatro estrofes, o flagrante fotográfico da favela constitui expressão-síntese de um espírito de época e de um momento histórico. Quantas ideias não podem suscitar aqueles versos que comparam os trapos estendi¬dos no varal a bandeiras agitadas, a um festival no morro onde todo dia e (era) feriado nacional?

Orestes Barbosa é um caso especial de letrista que legou uma obra conhecida por seu nome, independentemente de seus parceiros. Nesse sentido, antecedeu Vinícius de Moraes. Como Vinícius, conferiu prestígio à área da música com a literariedade de suas letras, elogiadas por intelectuais e poetas como Manuel Bandeira e Guilherme de Almeida.

Letrista consciente do fazer poético, poetizou a canção de seu tempo com versos da classe da letra-arte. Duas foram suas marcas registradas como elaborador e manipulador dessa linguagem: a inovação vocabular e a invenção imagética. No rebuscamento frásico, ele se alinha a predecessores como Candido das Neves e Catulo da Paixão – letristas lunares, tristes e enamorados como ele. Mas os suplanta de longe na incorporação de signos novos, com os quais urbanizou e modernizou o lirismo da época.

Motor; abajur, tapete, telefone; veneziana; biombo, apartamento, elevador, arranha-céu; reclames, anúncios luminosos; clichê, manchete; manteau, peignoir. Termos e temas tais foram introduzidos por ele, às vezes em remates deslumbrantes, como no caso dos “delírios nervosos/ Dos anúncios luminosos/ Que são a vida a mentir” , de “Arranha-Céu” .

Último romântico de sua época, em sua obra ele de fato reuniu a Zona Norte à Zona Sul do Rio, cantando casos em subúrbios e em bares, cassinos e cabarés da moda; idílios em barracos de morro e romances em elegantes apartamentos da cidade. Em geral suas letras expõem o sentimento, definido em sua “Torturante Ironia”, de quem “ama e não pode amar”. Paixões secretas, casos acabados, desejos insatisfeitos – o que nos confidenciam suas canções-queixas. Porém, mais que um enredo, o que elas destacam são versos sensorialistas, de forte apelo visual, sobres-saindo em alto-relevo:

“E triste escuto o seu riso/ E sem querer fiscalizo/ Tua vida no apogeu/ Ouço o chuveiro em cascata/ A água em fios de prata / É mais feliz do que eu” – canta ele, em “Bailarina”.

Poeta-pintor, “cenógrafo do samba”, na expressão de Mario Lago, Orestes Barbosa foi um incansável caçador de imagens imprevistas e desconcertantes. Visionário de ilusões fugidias, via a amada em situações insólitas, alucinadas: “E quando bebendo, espio/ Uma taça que esvazio/ Vejo uma visão qualquer/ Não distingo bem o vulto / Mas deve ser do meu culto / O vulto dessa mulher” (“A Mulher Que Ficou na Taça”); “Hoje ver o relógio me tortura / Os ponteiros são braços de mulher” (“Nestas Noites de Amor”). Ou, exagerado, jogado aos seus pés, em cenas de amor servil: “Mas eu sufocarei o meu soluço/ Se consen¬tires, boa como és, / Que o meu desejo, como um galgo russo,/ Possa humilde dormir junto a teus pés” (“Galgo Russo”).

Em canções mais felizes, a mulher era mirada e admirada em linhas delicadas: “Oh minha avenca nervosa/ De unhas pintadas de rosa/ E olheiras de tanto amar/ Olheiras de violetas/ Tarjando essas borboletas/ Noturnas do teu olhar”; seus lábios (“de doçuras”), comparados a “tâmaras maduras”, a boca, a “morango do meu jantar”.

Às vezes suas equiparaçõs tomavam feições simbolistas. À Lua, termo recorrente em suas letras, ele aplicou as mais diversas corporificações e simbolizaçõs. De “clichê dourado impresso em papel azul” a “gema do ovo no copo azul do céu”; de “lâmpada acesa da tristeza” a “mentira branca dos espaços”. Além destas – “hóstia de mágoa” e “freira do céu” – que poderiam até figurar em “Litanias dos Quatro Crescentes da Lua”, do genial Jules Laforgue.

Raramente no âmbito da palavra cantada o sentido plástico impregnou tanto o conjunto de uma obra.

Nos anos 60, estiveram na moda as canções psicodélicas, das quais “Voodooo Chile”, de Jimi Hendrix, constitui um caso exemplar de fanopeia pop. Influenciado pelo cinematografismo bíblico, Bob Dylan se tornou mestre nessa modalidade poética. Há pouco tempo, Prince, o mais fecundo e interessante letrista surgido de 80 para cá, nos brindou com essa deliciosa sequência de movimentos contrastantes: “When 2 are in love/ Falling leaves will appear to them like slow motion rain/ When 2 are in love/ The speed of their hips can be faster than a runaway train” .

Na estrofe final de “Chão de Estrelas”, a construção das imagens, passando pelo “salpicar estrelas” e culminando na frase “tu pisavas os astros distraída”, é precisa, perfeita: um dos pontos mais altos e luminosos já atingidos na poesia de canção. Em meu “Cole Porter – Canções, Versões”, depois de lembrar os usos renascentista e barroco de “pisar estrelas”, Augusto de Campos dá vantagem ao verso do “grande Orestes” ao cotejá-lo com outros, similares, escritos por Camões e Gongora. Alguns podem achar exdrúxula a comparação, já que Orestes não foi um poeta “propriamente dito”. Será?

“Muitos músicos não consideram George Gershwin um compositor sério. Mas eles deveriam entender que, sério ou não, ele é um compositor. Há um número de compositores, sérios (como eles acreditam) ou não (como eu sei), que aprenderam a juntar notas. Mas eles são sérios apenas em função de uma perfeita falta de humor e alma” – escreveu Arnold Schoenberg, para quem Gershwin foi um inovador.

Com alma e ténica, Orestes Barbosa foi um poeta da canção, porque mostrou que esta era sua linguagem natural, e porque nela expressou ideias originais, com simplicidade e singeleza. Mas sem levar em conta essas qualidades, não é possível reconhecer o seu valor, nem compreender a natu¬reza da arte da canção popular.

O letrista de música e o poeta de livro

“O poeta Orestes que eu mais aprecio não é o dos versos proclamados admiráveis por Hermes Fontes, Medeiros e Albuquerque e Agripino Grieco, mas o letrista de sambas e canções”, escreveu, com razão, Manuel Bandeira.

Aplaudidos no ambiente intelectualmente provinciano do Rio dos anos 10 e 20, pouco representaram para a literatura os livros de poemas de Orestes Barbosa, que trocou o mundo das Letras pelo das letras – de música – e aíse tornou realmente maiúsculo.

Seus versos são tão melodiosos e cantantes que às vezes tendem a nem ser cantados. Num dos programas da série que comemorou seus 50 anos, ano passado, Caetano Veloso cantava trechos de música de compositores antigos, cujos nomes lhe eram indicados na hora pelo jornalista Matinas Suzuki. Quando este disse “Orestes Barbosa”, Caetano não cantou, mas declamou a estrofe inicial de “Arranha-Céu”.

O fato, também, é que seus versos chegam a superar as melodias. Sem o concurso delas, eles perderiam muito de sua função e de seu poder de fixação, mas com certeza foram as letras, não as músicas, que conduziram o processo de composição das canções. Às vezes, as melodias parecem servir de moldura para os quadros que os versos pintam. Dois fatores concorrem para isso.

Um: as letras de Orestes são dispostas em formas fixas, definidas por quadras ou sextilhas (seguindo sempre um esquema de rimas AABCCB) divididas em decassílabos ou redondilhas maiores.

Dois: seus principais parceiros – e intérpretes – eram mais cantores que compositores: Sílvio Caldas e Francisco Alves.

Com o “Caboclinho Querido” (um dos inspiradores do verso “Eu vi muitos cabelos brancos na fronte do artista”, de “Força Estranha”, de Caetano), Orestes consolidou o gênero da seresta.

Mas ele trabalhou também com vários outros parceiros, alguns deles compositores de primeira linha. Como Ataulfo Alves e Wilson Batista, em sambas tematizando a negritude – “O Negro e o Café” e “Abolição”, respectivamente. E Custódio Mesquita, “darling” dos músicos, com quem fez “Flauta, Cavaquinho e Violão” (samba-choro que foi sucesso com Aracy de Almeida), “Gato Escondido” (marcha, com as Irmãs Pagãs) e “Nestas Horas de Amor” (valsa).

Com Noel Rosa, criou “Positivismo”, onde prevalece a veia irônica do poeta de Vila Isabel, que gravou o samba e, ao que tudo indica, influenciou também a feitura de “Caixa Econômica”, o mais noelino e bem-humorado dos sambas de Orestes, composto com Nássara e gravado por Luiz Barbosa.

Outros parceiros: Benedito La¬cerda (“Manchete de Estrelas”), Vicente Celestino (“Altar de La¬ma”), J.Tomas (“Verde e Amarelo”), Oswaldo Santiago (“Bangalô”), Newton Teixeira (“Tens Razão”), Valzinho (“Óculos Escuros” e “Imagens”).

Na década de 70, estas duas últimas músicas foram magnificamente recriadas, a primeira por Paulinho da Viola, a segunda por Jards Macalé – numa notável in-terpretação registrada no LP “Aprender a Nadar” (1974), momento excepcional de sua carreira, quando lançou com Waly Salomão a onda da “morbeza romântica”, que alguma coisa deveu a Orestes.

Os Mutantes já tinham realizado uma versão irreverente de “Chão de Estrelas”, em 1970. E Caetano a havia reverenciado, citando-a em “Como Dois e Dois” (“A mesma porta sem trinco/ O mesmo teto/ E a mesma lua a furar nosso zinco”). Anos mais tarde, Augus¬to de Campos reutilizaria os termos “barraco”, “trinco” e “zinco” tirados da canção, ao verter um poema do livro “Hugh Selwyn Mauberley”, de Ezra Pound. A tradução acabou sendo musicalizada com muita sensibilidade por Passoca, em 1984 – três anos depois de Arrigo Barnabé ter entoado o trecho inicial de “Arranha-Céu”, em “Diversões Eletrônicas” (do histórico disco “Clara Crocodilo”).

Ajoelha e Reza

E aí, ele disse pra mim
Como vai?
E aí, eu me disse taí
Minha chance
Respondi
Tudo bem e você onde vai?
Foi daí
Que saímos dali prum romance

E de repente na nossa história
De amor e de glória
Ele vem e me agarra,
eu me amarro
ele ajoelha e reza
E então me confessa

Que tá na maior paixão
e nunca esteve assim
Nem sente seus pés no chão
E até se realça por causa de mim

E assim, o que ele me faz
Pode ser
Pode sim, pode até parecer uma cena
Mas pra mim, é uma cena real
Radical!
Tão real, que parece igual no cinema

E nesse filme de amor e ventura
Verdade e mentira
um pornô com ternura
Ele vem e se atira,
eu morro
E depois me comovo
quando me diz de novo

Que tá na maior paixão
e nunca esteve assim
Nem sente seus pés no chão
E até se realça por causa de mim

E assim, o que ele me faz
Pode ser
Pode sim, pode até parecer uma cena
Mas pra mim, é uma cena real
Radical!
Tão real, que parece igual no cinema

E de repente na nossa história
De amor e de glória
Ele vem e me agarra,
eu me amarro
ele ajoelha e reza
E então me confessa

Que tá na maior paixão
e nunca esteve assim
Nem sente seus pés no chão
E até se realça por causa de mim
Tá na maior paixão
e nunca esteve assim
Nem sente seus pés no chão
E até se realça por causa de mim
Tá na maior paixão
e nunca esteve assim
Nem sente seus pés no chão
E até se realça por causa de mim

Tá na maior paixão

Roupa

Tua veste é como o penacho
Que reveste o pássaro macho

Tua roupa é tua plumagem
E plumagem pouca é bobagem

Por isso, meu amor
Te produz
seduz
reluz
na rotina do cotidiano
na retina dos dias medianos

Pois a roupa é tua imagem
Tua linhagem
Tua linguagem
A roupa é tua mensagem

Pois a roupa fala
não cala
E tudo que se pensa e diz
Na roupa se diz e pensa
Por isso é que se dispensa
Cuidado com a aparência

Pois as aparências não enganam
não empanam
As aparências emanam
o que é real e humano

E em cada peça de baixo
E em cada peça de cima
De cima abaixo
De baixo acima
Dos pés à cabeça
Da cabeça aos pés
A roupa é o que te expressa
A roupa é o que és

Por isso, meu amor
Instaura o teu modelo e tua moda
E a aura do que é belo em tua roda

Pois a roupa
é tua outra
pele

Pele
e embalagem da pele
a roupa
é embalagem e conteúdo
Embalagem da beleza
embalagem de tudo

Por isso, não guarda, não poupa
Investe no teu guarda-roupa
Investe no que te veste
Investe no que te despe
Pois ainda mais que vestir
O que a roupa faz é despir

A roupa não cobre
Descobre
A roupa não vela
Revela
A roupa te mostra
De todos os ângulos
De frente, de costas
Nos flancos

Por isso, te desinibe
Pois a roupa te conceitua
A roupa te exibe
A roupa te deixa nua

Mille Baci


de “Rita Lee”, de Rita Lee

1993_Rita_Lee_1024

Amami se vuoi,
Tienimi se puoi
Braccia, labbra, faccia, mani, piedi.
Sii benvenuto;
Tutto, baby, tutto,
Baby, ti do tutto se lo chiedi.

Ma dammi dammi dammi mille baci
E cento e mille e cento e mille e cento.
Cosi tra mille baci ed abbracci,
Godiamici la vita e il momento.

Vieni per saziarmi,
Per accarezzarmi
I peli e la pelle più segreta.
Tu, amore mio,
Mi sembri un Dio;
Fammi sentire come il poeta.

Ma dammi dammi dammi mille baci
E cento e mille e cento e mille e cento.
Cosi tra mille baci ed abbracci,
Godiamoci la vita e il momento.

Nossos Momentos


de “Tetê Espíndola”, de Tetê Espíndola

Sozinhos e juntos
Na dor e no prazer,
Nas fases difíceis
E nas fáceis de viver,
Tivemos, dia a dia,
Tristezas e alegrias,
Belezas, fantasias
E tantas outras coisas em comum.

Em busca dos sonhos
De felicidade e dois,
Por vezes estranhos
À realidade a dois,
Nós temos, mais que um dia,
Momentos de poesia
Tão claros e tão raros,
Que neles nós vivemos algo incomum.

Neles tudo mais para;
Nada mais se compara
Ao par, ao casal
Que somos nós dois,
Sem par, sem igual,
Nossos momentos não têm antes nem depois.

Sozinhos e juntos
Na dor e no prazer,
Nas fases difíceis
E nas fáceis de viver,
Tenhamos outras vezes
Momentos como esses,
Instantes transcendentes,
Instantes em que somos como dois em um.

Serenata do Prado (Meadow Serenade)

Serenata do Prado (Meadow Serenade)

Eu ouço folhas em farfalhos
Trinados, trilos
Onde voa a cotovia
E o pintassilgo silva sem parar

Eu ouço coros de chocalhos
Cri-cri de grilos
Onde a aranha se arranha
E o sanhaço se assanha com seu par

E eu ouço a vibração da brisa
Na flora feliz
Colibris colibrisam em flores de liz
Há música no ar, minha mente voa
Onde a serenata soa
Na madrugada gris

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(George Gershwin e Ira Gershwin)

I hear the rustle of the trees
From the nearby thicket
Where the oriole is calling
And the bobolink is falling
For his mate

I hear the sighing of the breeze
And the chirping cricket
Where the whippoorwill is wooing
And the katydid is cooing
To his Kate

And I can hear a cowbell chorus
That’s now being played
Hummingbirds humming for us
From deep in the shade

There’s music in my heart
As my thoughts go winging
Where the spring is ever singing
That meadow serenade

Joyce em John Lennon

Publicado na “Folha de S.Paulo” (“Ilustrada”), em 5/10/1992, sob o título “Bob Dylan levou Lennon à letra-arte”

A presença ostensiva da expres¬são “I love you” nos refrões de “Love Me Do” e “P.S. I Love You”, de Paul McCartney, é somente um dos indicadores do lugar-comum poético dessas canções. Em suas letras, contudo, colocam-se vários outros que também John Lennon escreveria apenas “profissionalmente”, sem ambições artísticas, no período inicial dos Beatles. Um fato, po¬rém, mudaria radicalmente a vi-são de Lennon sobre a importân¬cia do texto na música: o reconhe¬cimento da qualidade poética das canções de Bob Dylan.

Dylan: desde Cole Porter e Ira Gershwin a poesia popular canta¬da de língua inglesa não alçava voos tão altos, de imaginação e inventividade. À época, Lennon, popstar intelectualizado, já tinha escrito dois livros, num deles incursionando ludicamente pela linguagem chamada de invenção – “Um Atrapalho no Trabalho” (na tra¬dução de Paulo Leminsky). Para ele, porém, a palavra só podia adquirir expressão estética em li¬teratura, não em música pop. Com Dylan, encarnação supermoderna do bardo, gênio indiscu¬tível, Lennon descobriu a letra-ar¬te. E percebeu que uma canção, além de voar, poderia transmitir belezas e verdades (especialmente as próprias) através de sua letra.

Mas, ao contrário do metafóri¬co, profuso e às vezes obscuro Dylan, Lennon definiu-se pelo de¬sign mais nítido, a expressão cla¬ra, direta e objetiva. Fez mais sucesso por isso, mas nem por isso foi mais simples. Sua “enga¬nosa simplicidade” (Glauco Mattoso) pode ser atestada por um exame cuidadoso de, por exem¬plo, “Julia” (atentar para suas sutilezas estruturais e suas ambi¬guidades), em homenagem a sua mãe, mas também em referência a sua mulher, Yoko (“ocean¬child”). Escrevendo na primeira pessoa, Lennon sempre falou dele mesmo em suas letras, de suas experiências. Do drama existen¬cial de “Help” às memórias de “In My Life” e “Strawberry Fields Forever”. Do psicodelismo pioneiro de “Tomorrow Never Knows” até os hinos contracultu¬rais “All You Need Is Love” (antibélico) e “Revolution”.

“A Day In the Life” pode ser considerada, se se pensar em “Ulisses”, a mais joyceana de suas letras. Mas onde ele mais explicita suas referências literá¬rias, radicalizando no experimen¬talismo (pelo surrealismo e pelo uso das palavras-va¬lise inventadas por Lewis Car¬roll – e radicalizadas em Joyce), é em “I Am the Walrus”. Não parou por aí. Em “Across the Universe” traçou uma bela sequência de “lances de imagens sobre o intelecto” (fanopeia), de inspiração cósmico-religiosa, ao mesmo tempo em que refletiu sobre o ato poético-criativo. E em “Come Together”, uma livre-as¬sociação imagética que beira a incomunicabilidade, e onde o sen¬tido importa menos que o som, salvo no refrão, uma ce1ebração ao orgasmo simultâneo.

Paul não foi tão longe, é óbvio – seu negócio era mais música mesmo –, mas deu sua contribuição, especialmente como contador de histórias, na terceira pessoa. Basta dizer que foram dele a ideia e o desenvolvimento da maior parte de “Eleanor Rigby” e “She’s Leaving Home”, para¬digmática da adolescente que foge de casa. E que ele fez sozinho “The Fool On the Hill”, a lindís¬sima “For No One”, “Hey Ju¬de” e “A Little Help From My Friends”(que melodias!).

As palavras das canções de Lennon e McCartney representa¬ram o contraponto verbal à revo¬lução que os Beatles detonaram nos planos musical, comportamental e mental de sua geração. É certo que mesmo as melhores letras do grupo não exibiram a engenhosa sofisticação das que Cole e Ira fizeram nos anos 30: seria uma repetição. Mas enrique¬ceram demais o repertório geral com temas, formas e imagens até então inéditos. E serviram para colocar Lennon, ao lado de Dylan e também de Jim Morrison, entre os maiores músicos-poetas dos 60 e de todos os tempos.

Meu ABC

Hello, my dear
No que posso servir?
Pode me usufruir
So nice to see you here
Qu´est-ce que vous fait plaisir?

Que tal ma belle
Una luna de miel
Na nossa louca Babel?
Endiabrados no céu
Like two angels from hell

Com você, meu ABC
Je suis enchanté con te
Con te, à coté
Em turnê por você

Mon amour
Baixa a luz do abajur
E beija a espada de Artur
Espalha em mim seu glamour
Minha belle de jour

Pra ser seu rei
Me escravizarei
So, lady, stay, lady, lay
Adesso io direi
Baby, I just want to play

Com você, meu ABC
Je suis enchanté con te, con te à coté
Em turnê por você

Niña
Que canto em la canción
Seja minha
Non, non, non me dire non
Yo te quiero
Con obscena obceción
El dia entero
On and on and on and on

O Anticlichê

Eu corro por dentro, entro pela terra,
Enquanto os outros correm para o mar.
Na contracorrente, saio lá da serra
No rumo do Paraná,
E paro por lá.

Por isso mesmo sei que vou sozinho;
Eu dou as costas ao lugar-comum,
E vou em frente sempre num caminho,
Que não é igual a nenhum.
Assim eu sou um.

Podem me chamar
Marginal,
Porque não corro para o mar,
Contra a lei geral.
Nado contra a maré,
Na contramão vou pro que der e vier.
Sou um antigo anti-heroi, um anticlichê,
Eu, o Tietê, eu, o Tietê,
O anticlichê, eu, o Tietê.

Na serra eu nasço, em São Paulo eu morro.
Depois renasço e vou até o fim.
Por onde eu passo e pra onde eu corro,
Jamais se viu um rio assim;
Eu falo por mim.

Mas assim mesmo sei que estou à margem
De vilas e de vias marginais,
De vales de canaviais, à margem
De zonas e parques rurais
E industriais.

Cole Porter – Canções, Versões

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“Cole Porter – Canções, Versões” (Paulicéia, 1991) – Livro de Carlos Rennó, contendo textos e versões para o português de sua autoria, a partir de canções do compositor. Com textos de Augusto de Campos, Caetano Veloso e Cláudio Leal Ferreira.

Engenho e arte nas letras de um gênio

Publicado na“Folha de S.Paulo” em 12/4/1989, sob o título “Letras reúnem o clássico e o pop”

Na história da música popular desempenha um papel fundamental a produção dos principais compositores de canções norte-americanos dos anos 30 e 40, como George e Ira Gershwin, Rodgers e Hart, Irving Berlin, Cole Porter, Johnny Mercer. São eles os Bachs, os Beethovens, os Mozarts, os clássicos autores dos grandes clássicos do gênero. Nesta constelação, um lugar especial cabe a Cole Porter.

Graças ao seu estilo e à sua técnica de ajustar letras elaboradas a melodias relativamente (embora nem sempre) simples, Porter elevou o nível do texto da canção popular a uma alta potência poética, alcançando ele próprio como letrista um grau de sofisticada criatividade em momentos comparável mesmo ao de poetas da área erudita.

Quem quiser provar isso na prática, pode tentar verter algumas canções suas que impõem desafios que só poemas eruditos impõem. Nelas, sem prejuízo da naturalidade, Porter usa recursos que as tornam ainda mais agradáveis à medida que reouvidas: rimas imprevistas, internas, polifônicas; construções ele¬gantes, trocadilhos, enumerações, ambiguidades, paronomásias requintadas e imagens ricas, em temas amorosos tratados com charme e inteligência.

Da supermoderna obra-prima pop “You’re the Top” (uma das maiores – 135 versos mais a introdução e uma estrofe paródica – e melhores letras já escritas) a uma certa “It Was Written In The Stars”, suas mais de 800 canções configuram uma produção marcada mais pela personalidade que pela pessoalidade (tudo foi feito para trilhas da Broadway e Hollywood) e uma obra que excede em quantidade e qualidade. Cole Porter não tem fim.