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Vivo


de “In Cité: Ao Vivo”, de Lenine
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Precário, provisório, perecível,
Falível, transitório, transitivo,
Efêmero, fugaz e passageiro:

Eis aqui um vivo.

Impuro, imperfeito, impermanente,
Incerto, incompleto, inconstante,
Instável, variável, defectivo:

Eis aqui um vivo.

E apesar
Do tráfico, do tráfego equívoco,
Do tóxico do trânsito nocivo;
Da droga do indigesto digestivo;
De o câncer vir do cerne do ser vivo;
Da mente, o mal do ente coletivo;
Do sangue, o mal do soropositivo;
E apesar dessas e outras,
O vivo afirma, firme, afirmativo:

“O que mais vale a pena é estar vivo!”

Não feito, não perfeito, não completo,
Não satisfeito nunca, não contente,
Não acabado, não definitivo:

Eis aqui um vivo.

Eis-me aqui.

Homenagem a Jorge Mautner

Lido durante a cerimônia de entrega do título de cidadão paulistano ao artista, na Câmara Municipal de São Paulo, em 8 de maio de 2003

Jorge Mautner se alinha com nomes como
Luiz Melodia Walter Franco
Raul Seixas Rita Lee Moraes Moreira
João Bosco e Djavan
entre os grandes cantores-compositores
da moderna música brasileira
aparecidos e/ou consolidados na década de 70

ao lado de Rita e de Raul
(além de Erasmo Carlos)
particularmente
ele forma a linha de frente
do rock de cor local
nativo e original
daquela década
que abriu caminho
para as novas gerações vitoriosas
do rock tupiniquim dos 80

com Nelson Jacobina
ele compõe uma dessas duplas históricas
de autores de canções da nossa música popular
como Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito
como Nelson Gonçalves e Adelino Moreira
ou antes
João de Barro e Alberto Ribeiro

uma volúpia sensual e sensorial
habita os versos das suas canções
promovendo uma visão erótica
das relações amorosas
e uma erotização das coisas

em Mautner
amor
se casou com
eros

(ele até deu à sua filha o nome de
Amora
não querendo dizer a fruta
mas – segundo ele –
o feminino de amor)

“tem desejo de amor
até mesmo na flor e na planta
e na voz de quem fala
e na voz de quem canta”
canta ele
em “Rock Comendo Cereja”

essa é uma obra em que
“o bico do beija-flor beija flor
e toda a fauna flora grita de amor”
um universo poético-musical em que
“gotas tão lindas”
“até dá vontade de comê-las”
como ele proclama em “Maracatu Atômico”

sensualidade aliás presente
em muitas e tantas canções de amor
igualmente marcadas
pela lei e pela lógica do desejo
veja-se por exemplo
o caso paradigmático
de “Matemática do Desejo”

a presença do impensável
do imprevisto do imprevisível
da surpresa
do patético mesmo

afinal
quem
na poemúsica brasileira
ousaria conversar com os bichos
e as samambaias
e se comunicar com uma roseira?

(Cartola talvez
mas Cartola se arrependeu
se corrigiu e disse:
“que bobagem, as rosas não falam”
e Mautner não
[Mautner parece mesmo incorrigível
o “todo errado”])

e quem foi capaz
dos versos mais belos
já cantados sobre a tristeza
que ele derramou
com precisão e concisão
em “Lágrimas Negras”?

“belezas são coisas acesas por dentro
tristezas são belezas apagadas pelo sofrimento”

a mautneriana melancolia
e no entanto a alegria
a também mautneriana alegria
ou talvez melhor seria dizer
o seu humor
o lance do seu humor
do seu senso de humor
tão impregnado – o que é importante –
de uma saudável auto-ironia

o orientalismo leve e livre
de “Samba Japonês” e “O Rouxinol”
a tragédia social brasileira
na visão profética das crianças abandonadas
as questões filosófico-existenciais
associadas à solidão do ser
o lado político-discursivo panfletário
(“ou o mundo se brasilifica
ou vira nazista”)

essas coisas também estão lá
em JM

a contribuição para o vocabulário da MPB
com termos literalmente animais
em suas canções
rugidos, latidos, balidos, miados, guinchos
se tornam palavras cantadas
além de sons de trens
de trilhos
de bicicletas
etc.

nelas
personagens de HQ ganham vida
além do plano da página da revista
vêm pra vida
a vida da arte
das letras e músicas
onde convivem
naturalmente
com o autor

inverossímil?

JM refunda entre nós uma nova canção do absurdo
em sintonia com uma tradição de canção nonsense
inaugurada no passado por um Lamartine

é de JM o rock do absurdo “O Relógio Quebrou”
como são também dele algumas canções-piadas

está tudo lá

a introdução de temas novos
como a bomba atômica
(em “Cinco Bombas Atômicas”
de certo teor autobiográfico
já que algumas das mais remotas e marcantes reminiscências
do cantor-compositor
é a explosão
das bombas nucleares no Japão
ao final da Segunda Grande Guerra)

o tema do feminismo e do pacifismo
abordados ainda em meados dos 60
em “Não, Não, Não”
sinalizando pela primeira vez
talvez
uma deglutição de sabor inconfundivelmente pessoal
da obra inicial de Bob Dylan
em nossa moderna MPB

e ainda
em matéria de exploração pioneira de um tema
o que dizer de “O Vampiro”
que assustou Caetano Veloso
ao saber que a canção datava de 1959?

não são poucas
aliás
as coisas estranhas
que repontam
em sua obra de cancionista
coisas que não se parecem
com nada que veio antes
nem depois
veja por exemplo “Olhar Bestial”
dos anos 60

entre elas há
claro
o seu amor pela chuva
a chuva
imagem-símbolo tão recorrente
seja em sua obra poetico-musical
seja em sua obra literária
chuva-signo também de São Paulo
cidade que ele abraçou
residindo aqui
o elo poético justo
entre ele e a cidade
a justificar plenamente
a homenagem de hoje

o descompromisso
o descomprometimento
com as formas convencionais
inclusive as elegantes

um espírito de menino

sem medo do ridículo e do óbvio
como rimar – à perfeição –
Hong-Kong com pingue-pongue
o óbvio
mas que ninguém viu

e é
como que
brincando
como um menino
sem demonstrar o menor esforço
mas muita naturalidade
rindo mesmo disso
que ele faz uso das rimas mais raras e imprevistas
ricas
cheias de sofisticação
tipo apague-as com águias
ou então
Pégaso com pega o azul

onde na verdade
mais do que um rima
o que temos
é a concretização
verbo-musical
do vôo do cavalo alado
no plenicéu do espaço do canto

“Pégaso Pégaso Pégaso Pégaso
Pégaso Pégaso Pégaso Pégaso
Pégaso Pégaso Pégaso
pega o azul”

há também rimas de som, sentido e imagem:
“você voa com as nuvens
que são penugens
cor do algodão”
(“Aeroplanos”)

e por fim
last but not least
como não poderia faltar
a um poeta-palhaço como ele
ao mesmo tempo brincalhão e sincero
a licença poética
de uma rima anedótica
instaurada por uma torção na acentuação de um dos termos
(o próprio sobrenome dele
– um paroxítono –
pronunciado como oxítono)
instaurando uma atmosfera engraçada
num quarteto de versos finais
cantados em tom quase sério-irônico
bem de acordo
com a personalidade do artista:

“salve o nosso guia
pro que der e o que vier
salve o nosso guia
Jorge Mautnér”
(“Urge Dracon”)

Poesia literária e poesia de música: convergências

Publicado no livro “Literatura e Música” (Senac Editora / Itaú Cultural), de 2003

Poesia não é (bem) literatura, decretou Ezra Pound, um dos maiores poetas e teóricos de poesia do século passado, em seu célebre e ainda hoje, por tantas razões, atual e, por isso mesmo, utilíssimo (como neste texto mesmo veremos), “ABC of Reading” – o “ABC da Literatura”, tal como foi traduzido entre nós por Augusto de Campos e José Paulo Paes. Para esse ícone do modernismo literário europeu, norte-americano de nascimento, a poesia seria uma arte mais próxima da música – e até da dança – do que da literatura propriamente dita, tal a diferença substancial, de natureza estrutural, existente entre ela e a prosa.

As idéias de Pound a respeito das relações de proximidade e afinidade entre a música e a poesia – e, por extensão, acerca da relevância de elementos musicais para a arte poética –, se desenvolveram a partir de uma base muito sólida, apoiadas na experiência do artista. Durante sua vida e o desenrolar da construção de sua obra, não só o poeta manteve uma ligação profunda com o gênero de poesia de caráter essencialmente musical, a trovadoresca, como, em certos períodos, com a própria música.

De um lado, ele foi um dos maiores responsáveis pelo resgate, no século passado, do legado dos trovadores provençais, que introduziu e traduziu para seus contemporâneos e para as gerações posteriores. De outro, ele mesmo se envolveu, primeiro indireta, em seguida diretamente, com a chamada arte dos sons. Assim, depois de patrocinar o trabalho do pianista e compositor americano George Antheil, em sua primeira fase, de caráter largamente experimental, Pound então se dedicou à composição, criando uma espécie de ópera de vanguarda chamada “Le Testament” (baseada em baladas de François Villon).

Para completar, ainda teve uma mulher violinista.

De acordo com um outro grande poeta do século 20, o francês Paul Valery, a poesia seria uma “hesitação entre som e sentido” – definição a que chegou também por levar em alta conta a importância que tem a música para a arte poética, considerando-se a sonoridade como uma das principais propriedades musicais da poesia, ao lado do ritmo.

O universalmente reconhecido “O Corvo”, de Edgar Allan Poe, oferece uma interessante demonstração da idéia expressa por Valery, servindo de ilustração do que representa o som para a poesia. O linguista russo Roman Jakobson foi quem apontou a relação de afinidade, do ponto de vista sonoro, entre o título do poema, “The Raven”, e o seu estribilho, “nevermore”, mais exatamente entre raven e never, termos quase completamente anagrâmicos (fato que, surpreendentemente, passou despercebido pelo próprio Poe, na conhecida dissecação que fez do processo de criação de sua obra-prima, intitulada “Filosofia da Composição”).

Ao mesmo tempo, uma leitura do poema em inglês e de sua tradução para o português realizada por Fernando Pessoa, desde que feitas com ouvidos sensíveis, pode servir modelarmente de exemplo do que seja o ritmo para a poesia. Observar como Pessoa, mantendo a mesma métrica definida no original, não apenas restitui os significados mais essenciais dos versos em inglês (uma língua muito mais sintética que a nossa), como, ainda por cima, o faz reproduzindo em português a mesmíssima música – em termos rítmicos – que o poema apresenta em seu idioma de partida. É simplesmente notável: o ritmo que ouvimos é idêntico!

Comparar essa tradução com outras já realizadas para o português do mesmo poema só notabilizará ainda mais o trabalho do genial poeta português, por causa principalmente do seu senso musical. Cotejá-la com a feita por outro gênio – mas da prosa… – em nossa língua, Machado de Assis, tradução que também mostra suas qualidades, só que do ponto de vista mais estritamente literário, pode servir para dar uma visão do que seja uma poesia contaminada de música e outra nem tanto.

A tradução de outro poeta, Augusto de Campos, para “Chanson Do Ill Mot Son Plan e Prim” (“Canção de Amor Cantar Eu Vim”), de um grande trovador provençal, Arnaut Daniel, também é um primor de poesia sob o ponto de vista da musicalidade. Sob o aspecto sonoro, por exemplo, Augusto reproduz com o som mais aproximado em português três (em “im”, “or” e “oilla” – “olha”) das quatro rimas usadas em sistema de rodízio em cada uma das 6,5 estrofes do poema. No tocante à cantabilidade, a operação tradutória se mostra igualmente bem-sucedida. Como se pode comprovar ouvindo-se a gravação existente da canção (já que desta a notação musical não se perdeu), os versos de Augusto são perfeitamente cantáveis sobre as frases melódicas da mesma, sílaba por sílaba sobre nota por nota, sem que a prosódia do poema no idioma de chegada seja jamais prejudicada.

De fato, a poesia – não toda, mas boa parte dela – apresenta propriedades musicais que lhe parecem intrínsecas, inerentes. Já aí podemos localizar um primeiro aspecto a associar as duas artes ou linguagens de naturezas tão distintas, uma verbal, outra sonora, e por isso mesmo passíveis de ser classificadas, pelo caráter, como díspares e opostas.

A associação entre elas, no entanto, remonta à própria origem da poesia (da poesia ocidental, pelo menos), que na Antiguidade, como sabemos, era cantada. Depois, muito tempo depois, na Alta Idade Média, a chamada poesia trovadoresca veio a promover uma ampliação da aplicação dessa propriedade primordialmente característica da poesia. Como igualmente se sabe, também os poemas criados pelos trovadores ou menestréis eram todos cantados, a cada um correspondendo invariavelmente uma melodia. Não à toa, portanto, vieram a ser chamados de “canções”.

Infelizmente, grande parte das notações que poderiam indicar as músicas correspondentes a essas “letras” se perderam. Contudo, os poucos exemplos de linhas de canto sugeridas para os versos desses poemas que permaneceram até hoje, são, por sua força expressiva e notável beleza, mais do que suficientes para provar por que tais poemas recebiam a denominação de canções. As canções trovadorescas constituem efetivamente o caso mais evidente de poesia literária em ponto de convergência com a música.

Situada ao sul do território que viria a ser posteriormente o da nação francesa, a região de Provença foi o lugar em que, por nela se inaugurar e crescer na época uma tradição de trovadores dos mais inventivos, a arte da poesia trovadoresca prosperou mais gloriosamente, durante os séculos de 11 a 13.

A música popular – ou talvez seja mais exato dizer: a canção popular – que ganhou imensa difusão no século 20, tornando-se uma expressão do espírito dos tempos modernos, e que continua florescendo com grande esplendor nos Estados Unidos e no Brasil, vem realizando, por sua vez, em seus momentos culminantes, uma espécie de retomada, no plano da produção artística de consumo, da arte poética erudita dos trovadores medievais. Destes, já se disse que os maiores songwriters dos últimos cem anos podem ser vistos como continuadores ou sucessores.

Os Cole Porters, os George e Ira Gershwins, os Bob Dylans, os John Lennons e os Princes; os Noéis, os Caetanos, os Chicos e Gils; os Jacques Brels e Alfredos Marcineiros – todos estes, e outros mais, seriam assim os trovadores da modernidade, os Arnaut Daniel, os Bernart de Ventadorn, os Raimbaut d’Aurenga e os Bertran de Born (para me referir a alguns dos principais praticantes da linha mais inventiva das canções trovadorescas provençais) dos tempos modernos. Isso, levando em consideração o enorme engenho-e-arte do conjunto de suas letras e músicas (de suas poemúsicas, digamos assim) ou particularmente da porção mais engenhosa e artística, do ponto de vista poético especialmente, de seus repertórios.

O que ocorre é que, quando a letra de música se sofistica, extrapolando os limites entre alta e baixa cultura e confundindo as distinções usualmente feitas entre cultura erudita e popular, ela alcança um plano esteticamente superior e pode então ser tomada como uma modalidade de poesia: poesia cantada (uma forma de poesia de música, em contraposição a poesia literária, de livro). A propósito disso, Augusto de Campos, em meu livro “Cole Porter – Canções, Versões”, escreveu:

“Esses cruzamentos da linguagem popular e impopular, que rompem fronteiras estilísticas, sinalizam o que se poderia denominar de poetização da canção – o momento em que a letra de música, por vezes banal ou vulgar, sem qualquer valor intrínseco, mas eficaz porque perfeitamente aderente à melodia, ou valorizada pela interpretação, se sobreleva e atinge o plano da letra-arte: poesia.” (O texto de Augusto, basicamente sobre o compositor americano, se chama “Beba Cole”). Augusto é o mais músico dos poetas brasileiros.

Augusto de Campos já cresceu num ambiente musical. Seu pai, Eurico de Campos, era compositor de sambas (um deles, “Chegou a Noite”, ganhou registro de Passoca, em disco deste, e outro do próprio poeta, incluído no CD “Poesia É Risco”, de Augusto em parceria com o filho Cid, que é músico profissional). O gosto por música popular nasceu, portanto, em casa. A familiarização com o repertório erudito, de vanguarda, porém, não tardou a ser cultivada.

Mais tarde, como Mallarmé em relação a “Um Lance de Dados” (cuja inovadora configuração espacial dos “versos” devia ser vista, segundo o grande poeta francês, como uma partitura), Augusto incorporou a música à estrutura de seus poemas. Assim, a série de seus “poetamenos”, publicada nos anos 50, procurou assimilar, por meio do uso de uma variação de cores nas letras, a melodia de timbres pioneiramente empregada por Anton Webern, o criador do serialismo dodecafônico. Tal apropriação se inseriu no próprio projeto concretista, de uma poesia de natureza “verbivocovisual” – procurando atuar, portanto, não só nas dimensões verbal e visual, mas também vocal.

Paralelamente a isso, Augusto vem, desde a década de 60, desenvolvendo um brilhante trabalho de intervenção crítica em que se dedica à divulgação de trabalhos e obras de músicos que considera importantes e que, não raro, foram marginalizados.

Já naquela época, desempenharam papel importante no cenário da música popular brasileira seus textos em defesa da produção de vanguarda, principalmente a dos tropicalistas. De lá para cá, tornaram-se comuns as suas publicações na imprensa de artigos sobre compositores da música contemporânea de invenção, dos mais (de Pierre Boulez e John Cage) aos menos conhecidos (de Henry Cowell a Nancarrow), a maioria deles muito pouco reconhecidos. Muitos desses textos estão reunidos em seu livro “Música de Invenção”.

Não é de surpreender que um poeta assim tenha feito amizades – e parcerias – no meio musical brasileiro, em que segue sendo admirado pelas novas gerações. Caetano Veloso, por exemplo, musicou dois poemas seus: “dias dias dias” e “Pulsar”. Além disso, Augusto exibe uma notável musicalidade em outros trabalhos, como atestam as suas traduções – todas perfeitamente cantáveis – do texto de “Pierrô Lunar”, a ópera de Arnold Schoenberg, e de várias canções de trovadores provençais como Arnaut Daniel (“o melhor artífice”, na opinião de Dante Alighieri).

Alguns autores muito especiais já ergueram, outros (os que ainda estão vivos e em atividade) vêm erguendo obras que ilustram magnificamente bem a poetização da canção popular apontada por Augusto.

No panorama mundial, para começar pelos norte-americanos, isso fica patente nos trabalhos de compositores-letristas da estirpe de Cole Porter, Jerome Kern e Johnny Mercer, além das célebres duplas de parceiros formadas pelos irmãos George e Ira Gershwin e por Richard Rodgers e Lorenz Hart (ou seu substituto, Oscar Hammerstein), para nos determos nos autores da canção americana clássica, que viveu seu apogeu dos anos 20 aos 40 do século que passou.

Uma outra analogia pode aqui muito bem ser feita. Porter, Irving Berlin, os irmãos Gershwin, Rodgers e Hart ou Hammerstein, Mercer, Kern, além de Harold Arlen, Hoagy Carmichael, Vernon Duke, Victor Young e Vincent Youmans. Esses “songwriters” vêm a ser de fato os Bachs, os Beethovens, os Mozarts, os Wagners, os Tchaikovskys da história da canção popular não apenas americana, mas mundial, do século 20 e deste início de século 21. Numa palavra, os clássicos da canção moderna.

Depois, obedecendo a uma ordem cronológica de aparecimento na história da arte da canção, um desfile no tempo das obras de maior inventividade, de uma perspectiva que priorizasse o aspecto poético da conjugação de música e poesia, naturalmente apresentaria, na sequência, com enorme destaque, os nomes de ícones do pop e do rock como Bob Dylan, John Lennon, Mick Jagger (estes dois, britânicos), Jim Morrison e Lou Reed, entre outros da safra da década de 60, seguidos por Stevie Wonder, Michael Jackson e sobretudo Prince, além de David Byrne, surgidos já nos 70 e 80, respectivamente.

(Uma seleção internacional dos principais cancionistas do século 20 não poderia, ainda, deixar de incluir nomes como Jacques Brel, o “rei” da canção francesa clássica, Alfredo Marcineiro, representante máximo do fado português tradicional, e provavelmente Discépolo, como o maior compositor-letrista de tangos. Entre outros autores e gêneros…).

Quanto a nós, que em matéria de canção popular não ficamos atrás dos americanos – que são os primeiros –, quanto a nós, brasileiros, temos igualmente nos mostrado pródigos em músicos-poetas dessa mais alta linhagem. No panorama de nossa canção, há mais de uma dúzia de criadores – existe, solidamente estabelecida, uma tradição deles entre nós – que se distinguem por alcançar patamares estéticos normalmente não atingidos no cenário dessa arte em outros contextos nacionais.

Apesar das profundas diferenças de estilo, procedimento, formação e contexto em que atuaram, os integrantes desse clã especial se dão as mãos, como artistas, num plano situado acima do tempo. Para efeito de simplificação, eles poderiam ser divididos segundo as gerações a que pertenceram.

Assim, uma das mais antigas delas, reunida nos anos 30, a chamada época de ouro de nossa música popular, produziu Noel Rosa, Orestes Barbosa e Lamartine Babo, merecendo lembrança ainda o nome de Assis Valente. Despontando no final daquela década e consolidando suas obras nas seguintes, tivemos Dorival Caymmi e Lupicínio Rodrigues, valendo uma menção honrosíssima para Nelson Cavaquinho e Cartola. A terceira, na segunda metade dos 50, nos deu Vinicius de Moraes. Na quarta, uma das mais concentradamente fecundas, datada dos fervilhantes 60, vieram Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil e Jorge Ben Jor. Da década de 70, poderíamos destacar Rita Lee e Raul Seixas. E da de 80, Cazuza e Arnaldo Antunes.

Letra-arte, letra-poema

“Chão de Estrelas” constitui o que se pode chamar de um belo caso de fanopeia em poesia de música popular. Fanopeia é uma das três modalidades de poesia (as outras duas são a melopeia e a logopeia) classificadas por Pound em seu “ABC da Literatura”; consiste, segundo ele, num “lance de imagens sobre a imaginação visual”. Trata-se, portanto, de qualquer texto poético de forte apelo imagético.

O carioca Orestes Barbosa foi, entre nossos letristas, um dos maiores cultores da fanopeia. Os versos de “Chão de Estrelas”, de sua autoria, receberam música de Silvio Caldas, e a canção tornou-se um clássico do gênero seresta, instaurado pela dupla nos anos 30. Composta integralmente de decassílabos, a letra, a exemplo da quase totalidade das letras que Orestes escreveu, apresenta um sistema estrófico e rímico fixo, sendo formada de quatro estrofes de seis versos cada, as rimas ocorrendo segundo o esquema AABCCB. Esse procedimento, frequente em sua obra, já sugere a aspiração literária do autor.

Em “Chão de Estrelas”, a força das associações de imagens é crescente. Na terceira estrofe, Orestes associa “roupas comuns dependuradas” no varal a “bandeiras agitadas” e a “um estranho festival”, onde se dá a “festa dos nossos trapos coloridos”. O clímax, porém, ocorre na última estrofe, em que, depois de dizer que a lua “salpicava de estrelas” o chão do barraco, ele nos brinda com o famoso “tu pisavas os astros, distraída”.

O verso fez a música cair na preferência de alguns poetas de renome em nossa literatura. Primeiro, foi Guilherme de Almeida, a quem Silvio e Orestes mostraram a composição ainda inédita e que lhes sugeriu a feliz expressão-título. Depois, outro modernista, Manuel Bandeira, o considerou “talvez o mais bonito da língua portuguesa”. Por fim, Augusto de Campos lhe dedicou (em “Beba Cole”, aqui citado) todo um parágrafo, no qual o coteja com outros versos renascentistas e barrocos que também empregaram a imagem “pisar estrelas”, escritos por Camões e Gôngora. Por causa do efeito paronomástico contido em “astros distraída”, o poeta concretista dá vantagem ao criado pelo letrista.

Caetano Veloso o parafraseia em sua canção “Livros”, da mesma maneira composta inteiramente de decassílabos e iniciada com a linha: “Tropeçavas nos astros, desastrada”. Interessante observar que Caetano se referiu ao verso orestiano, que poderia figurar num poema de livro, depois de ler o que – e por causa do que – Augusto escreveu sobre esse verso em um livro (“Cole Porter – Canções, Versões”); e que fez a referência numa composição chamada “Livros” (em que recorda o papel da cultura literária em sua formação – mais exatamente desde os primeiros tempos dela) contida num CD de nome “Livro” lançado pouco depois de ter escrito um livro de reminiscências dos anos 60, mais exatamente do movimento tropicalista (“Verdade Tropical”). Caetano, aliás, já havia citado o “Chão de Estrelas” no início dos anos 70, em “Como Dois e Dois”, composta para Roberto Carlos cantar: “A mesma porta sem trinco / E o mesmo teto / E a mesma lua a furar nosso zinco”.

Orestes Barbosa, que era jornalista, veio a ser o primeiro compositor da música popular brasileira que se destacou também como intelectual e o primeiro a escrever e lançar livros. Foram três, dois deles de poesia. O terceiro, de prosa – intitulado “Samba” –, porém, é o mais atraente devido à linguagem ágil, telegráfica, cheia de cortes, pioneiramente modernista (a publicação antecedeu a eclosão do movimento em São Paulo), no entender de outro jornalista, o também poeta – além de crítico de música – José Lino Grunewald.

No panorama musical internacional dos últimos quarenta anos, Bob Dylan se tornou um dos principais cultivadores de uma poesia pop com uma incidência muito acima da média de elementos imagéticos (tantas vezes responsáveis pela valorização poética de um texto). Dentre os maiores autores de canção norte-americanos das gerações posteriores à de Dylan, o grande Prince, genial não apenas como compositor mas igualmente como letrista, pode não ser um assíduo praticante de versos que privilegiam o emprego da fanopeia. Mas dele podemos colher duas passagens antológicas dessa categoria poética no campo da canção, em “When 2 Are in Love”.

A primeira ocorre ao final da primeira estrofe, em trecho em que a letra expõe, uma logo em seguida à outra, duas imagens particularmente felizes e contrastantes, ricas de sugestões de ritmos (um devagar, outro veloz) e atmosferas (a primeira, romântica e onírica; a segunda, sexual e selvagem) completamente distintas. Os versos dizem: “When 2 are in love,/ Falling leaves will appear to them like slow motion rain./ When 2 are in love,/ The speed of their hips can be faster than a runaway train” (numa tradução livre, algo como: “Quando duas pessoas estão apaixonadas,/ Folhas caindo vão lhes parecer como chuva em câmara lenta./ Quando duas pessoas estão apaixonadas,/ A velocidade de seus quadris pode ser maior do que a de um trem em disparada”).

Momentos depois, quase ao término da estrofe derradeira da canção, ele nos vem com essa: “When 2 are in love,/ The thought of his tongue in the V of her love in his mind,/ This thought, it leads the pack” (Aproximadamente: “Quando duas pessoas estão apaixonadas,/ O pensamento da língua dele no V do amor dela na cabeça dele,/ Este pensamento, é o que move”). Para não dizer “vagina” (provavelmente por não se tratar de um termo poético o bastante para uma canção de amor, mesmo sendo essa uma de suas canções de intensa carga erótica), Prince opta por um “V” que ele afirma ser do (“of”) “her love”. Ora, a letra “v” está no meio da palavra “love”… Além disso, como não pensar no fato de que ela pode (aqui, arrisco dizer que deve) ser vista como uma representação fisionômica de um par de pernas abertas – condição necessária para que se dê aquilo que os versos estão insinuando?

A riqueza de sugestões faz enriquecer um poema. Literatura é linguagem carregada de significado (Pound). Prince, que ninguém se engane, é, sim, um verdadeiro poeta. E várias passagens de letras suas atestam isso.

A propósito, quantas vezes uma letra já não nos levou a dizer que ela era “um poema!”? Há versos de canções que são de uma força, de uma intuição e de uma construção poética invulgares, chegando a fazer pensar que poderiam ter sido escritos por grandes nomes da literatura.

Augusto já sugeriu quão shakespeareanos são essas memoráveis linhas de Lupicínio Rodrigues, o fantástico criador da “dor de cotovelo”, em sua antológica “Nervos de Aço”: “Eu não sei se o que trago no peito / É ciúme, despeito, amizade ou horror. / Eu só sei é que quando eu a vejo / Me dá um desejo de morte ou de dor”. Será que, da mesma forma, não poderiam ter sido escritos por Oswald de Andrade os versos de uma marchinha carnavalesca do carioquíssimo Lamartine Babo que, coincidência ou não, leva o nome de uma série de poemas integrados ao livro “Pau-Brasil” do genial e bem-humorado poeta modernista de São Paulo, não por acaso um apologista do Carnaval brasileiro, em seu “Manifesto Antropófago”? Vejamos:

História do Brasil

Quem foi que inventou o Brasil?
Foi seu Cabral, foi seu Cabral
No dia 21 de abril
Dois meses depois do Carnaval

Depois
Ceci amou Peri
Peri beijou Ceci
Ao som do “Guarani”
Do “Guarani” ao guaraná
Surgiu a feijoada
E mais tarde o parati

E o que dizer da segunda quadra do lindo fado “Fria Claridade” (de José Marques do Amaral e Pedro Homem de Melo): “Então passaram por mim / Dois olhos lindos depois; / Julguei sonhar vendo enfim / Dois olhos como há só dois”?

A alta voltagem poético-literária de determinadas letras de música nos surpreende particularmente quando sabemos que seus autores não eram artistas cultos, mas intuitivos, provenientes não raro de camadas humildes da população. Essa voltagem é o que faz com que certas letras apresentem uma sustentabilidade poética no papel. Ou seja, se mostrem bons poemas não apenas no espaço da melodia, isto é, ao serem cantadas, mas também no espaço branco da página.

Chico Buarque e Caetano Veloso, entre os brasileiros, são os compositores-letristas cujas obras dispõem do maior número de letras dessa categoria. Antecedendo-os como criador dessa classe de letras-poemas, há Noel Rosa, na primeira metade do século passado. Antonio Cicero, Waly Salomão e Arnaldo Antunes (considerem-se determinados textos seus para canções que manifestam um inequívoco experimentalismo, como “Macha Fêmeo” e “Inclassificáveis”) estão entre os que, dos anos 80 para cá, também chamam a atenção por algumas letras localizáveis no limite com a poesia propriamente dita. Os três, aliás, atuam no campo poético-literário, com livros especificamente de poesia já publicados.

De Caetano, chega a ser espantoso que um samba como “Sampa” tenha conquistado tamanha popularidade, a ponto de vir a se transformar praticamente num hino da cidade de São Paulo. Caetano é praticante de um estilo que faz uso, com muita naturalidade, de um grande número de citações e referências provindas das mais variadas fontes, seja da cultura popular, seja da erudita. Mas “Sampa” é uma das suas canções em que esse caráter alusivo de seu trabalho se amplia, como se depreende de uma análise detida, verso por verso, do que diz o seu texto, marcado pelo hermetismo de certas passagens de difícil compreensão, pelo menos para o chamado grande público.

Por que então este fez da canção um clássico, se nela há frases como “porque és o avesso do avesso do avesso do avesso” (referência ao poeta concretista Décio Pignatari), por exemplo? Ou então, “Pan-américas de áfricas utópicas, túmulo do samba / Mas possível novo quilombo de Zumbi” (em alusões ao escritor e cineasta José Agrippino de Paula, a Vinicius de Moraes e provavelmente ao início do movimento dos operários siderúrgicos do ABC, no final dos anos 70)? Afinal de contas, uma canção, para ver facilitado seu caminho rumo à popularização, deve comunicar de imediato o seu recado…

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A mesma sugestão de relação feita aqui entre “História do Brasil”, de Lamartine Babo, e a poesia pau-brasil de Oswald de Andrade, pode ser igualmente estendida a “Yes, Nós Temos Banana”, da dupla João de Barro-Alberto Ribeiro e o modernismo oswaldiano, sendo ainda a marchinha carnavalesca de Braguinha passível de ser apontada como uma canção pré-tropicalista (não à toa foi regravada por Caetano Veloso em plena eclosão do movimento, em 1967, logo depois de o cantor-compositor ouvi-la na peça “O Rei da Vela”, de José Celso Martinez Correia, do Teatro Oficina, em montagem que significou um marco na história do Tropicalismo).

Exemplo de absorção criativa do surrealismo, podemos lembrar aqui também o exemplo de “Canção pra Inglês Ver”, outra de Lamartine.

No campo das assimilações inventivas de procedimentos literários por compositores populares, há que se citar alguns casos mais modernos, a começar pelo de “Batmakumba”, mais uma peça tropicalista, composição esta de Caetano e Gilberto Gil, em que a letra, de fatura concretista, apresenta uma configuração de grande apelo visual (um enorme K), ao mesmo tempo que se utiliza do recurso da montagem de vocábulos. O mesmo procedimento – uso de palavras-valise, empregadas pioneiramente por Lewis Carroll e posteriormente, com maior radicalidade ainda, por James Joyce, em seu “romance para acabar com todos os romances”, “Finnegans Wake” – seria reutilizado por Caetano nos anos 80 em “Outras Palavras” e, uma década depois, por Arnaldo Antunes em “Inclassificáveis” (entre um e outro, eu o apliquei numa letra para uma música de Tetê Espíndola, “Crisálida-Borboleta”, em que também faço uso de outro jogo lingüístico lewiscarrolliano: o puzzle).

Em música popular, no entanto, o primeiro a se utilizar dele parece ter sido John Lennon (que já havia publicado um pequeno livro escrito em palavras-valise, inspirado em James Joyce; a obra foi traduzida entre nós pelo poeta Paulo Leminski, sob o título “Um Atrapalho no Trabalho”). Mais exatamente na surrealista “I Am the Walrus”, uma canção dos Beatles, que cita inclusive personagens de “Alice no Pais dos Espelhos” (também o nome do poeta beatnik Allen Ginsberg é sutilmente aludido, no trecho em que Lennon escreve/canta “Edgard Allen Poe” – com “Allen” no lugar de “Allan”).

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Entre as várias invenções formais apresentadas por Arnaut Daniel em suas canções, está o complexo sistema rímico presente em “L’Aura Amara”, em que as rimas têm sua ocorrência de estrofe a estrofe e não necessariamente dentro de cada estrofe. E não são poucas: 12 rimas inter- contra (apenas) três intra-estróficas (Augusto as reproduziu todas, em sua bela tradução do poema, incluída originalmente em seu livro “Verso Reverso Controverso”). Rimas sutis, remotas, difíceis de serem percebidas à primeira audição, rimas (que Pound denominava “polifônicas”) feitas para ouvidos sensíveis, perspicazes.

Cole Porter, o genial cancionista norte-americano, exercita-se nessa rima em alguns de seus clássicos, as antológicas canções de amor “I Get a Kick Out of You” e “I Concentrate on You”. Sem o mesmo arrojo e requinte, é verdade (não nos esqueçamos de que estamos aqui no campo da canção pop/ular, um terreno em que a simplicidade e a singeleza são naturalmente maiores) – mas elas estão lá: uma na primeira e três na segunda, em letras relativamente curtas, se comparadas, por exemplo, à extensão do poema “L’Aura Amara”.

Nenhum desses casos porterianos de polifonia rímica, no entanto, se compara ao que Chico Buarque, um dos mais inventivos compositores-letristas do Brasil e do mundo nos últimos cinquenta anos, nos oferece em “O Futebol”. A letra se dispõe em três estrofes de catorze versos cada, nas quais o fenômeno da coincidência fônica não acontece nos finais somente dos versos décimo e último. Até o oitavo verso, as rimas são cruzadas – intra-estróficas, portanto; do nono ao décimo-terceiro, parecem não ocorrer… quando na verdade, se dão inter-estroficamente, quase imperceptivelmente.

É de perceptividade também bastante difícil (mais difícil até) o evento sonoro que Chico faz ocorrer em outra letra extraordinária de sua autoria, escrita sobre música de Edu Lobo, “Bancarrota Blues”. Nas quatro estrofes correspondentes à primeira parte melódica, sempre entre os finais do terceiro e do sexto verso se dá uma quase-rima, ou pseudo-rima, entre termos cujas duas últimas sílabas possuem exatamente ou quase exatamente as mesmas letras (e que, por isso, a princípio terminariam com a mesma sonoridade) mas que, por serem respectivamente uma palavra paroxítona e outra oxítona, acabam tendo sua acentuação forte deslocada. São eles: varanda/jacarandá; fresca/pescar; poeira/cheirar; e açoites/oitis. Jamais um outro compositor veio com uma novidade inventiva dessas; eu pelo menos nunca vi.

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Caetano Veloso musicou “Escapulário”, de Oswald de Andrade; “Pulsar” e “Dias Dias Dias”, de Augusto de Campos, e um trecho de “Galáxias – Xadrez de Estrelas”, de Haroldo de Campos, intitulado “Circuladô de Fulô”. Arrigo Barnabé musicou um trecho de “O Jaguadarte”, tradução de Augusto para o poema de Lewis Carroll. Péricles Cavalcanti também pôs música em “Elegia”, o poema de John Donne na transposição de Augusto, e em passagem do “Panaroma de Finnegans Wake”, o livro dos irmãos Campos a partir do original de Joyce. Chico Buarque musicalizou “Funeral de um Lavrador”, de “Morte e Vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto. “Canção Amiga”, de Carlos Drummond de Andrade, recebeu melodização de Milton Nascimento. Fernando Pessoa e Manuel Bandeira foram dois poetas que ganharam cada um todo um disco contendo musicalizações de poemas por grandes compositores brasileiros de MPB.

Versão, tradução

“Não Chore Mais” (para “No Woman, No Cry”, o grande sucesso de Bob Marley) e “Só Chamei Porque Te Amo” (para “ I Just Called to Say I Love You”, de Stevie Wonder), por Gilberto Gil. “Negro Amor” (para “It’s All Over Now, Baby Blue”, de Bob Dylan), por Caetano Veloso e Péricles Cavalcanti. “O Malandro” (para “Mack the Knife”, de Kurt Weill e Bertolt Brecht), por Chico Buarque. Modelos de versão, de canções originalmente compostas em outras línguas (inglês, sobretudo), em português.

Em meu trabalho de versionista, procuro pôr em prática critérios de versão específicos, empregados em “Cole Porter – Canções, Versões”. De acordo com essa visão, busca-se traduzir não apenas o sentido e o espírito das letras originais, mas também a forma e o estilo nelas exercidos – além, naturalmente, de se obter a melhor cantabilidade possível para as palavras em português. Tendo pela frente versos de letristas sofisticados como Cole Porter e Ira Gershwin, que já verti, a aplicação de um rigor literário ao trabalho se faz necessária. Assim, para enfrentar o desafio, procuro tratar as letras de Porter e Ira como uma modalidade de poesia – cantada.

Os recursos que adoto decorrem das idéias de tradução inventiva proposta pelo poeta norte-americano Ezra Pound para verter grandes poetas da literatura universal para o inglês. As lições deixadas por Pound nesse terreno inspiraram a obra de tradução de poesia desenvolvida pelos poetas do Concretismo (movimento de vanguarda brasileiro surgido nos anos 50). Essa obra se tornou uma das produções mais importantes da poesia brasileira da segunda metade do século. Em meu trabalho como versionista ela é tomada como modelo.

Eis alguns exemplos de procedimentos que expressam os parâmetros que orientam minhas versões (incluídas no disco “Cole Porter e George Gershwin – Canções, Versões”).

  1. No final de “Que De-lindo” (a versão de “It’s De-lovely”) é reconfigurada em português a enumeração aliterativa de nove termos iniciados por “del” ou “dil” (“Que deleite, que delícia, que delíquio, que delírio, que delito, que dilema, que dilúvio, que de-lindo!”) – exemplo de tradução nos níveis semântico, formal e fonético. Outro dado: a exemplo de “de-lovely”, o termo “de-lindo”, do título, também constitui um neologismo.
  2. Em “Eu Só Me Ligo em Você” (a versão de “I Get a Kick Out of You”), o trecho que diz “i’m sure that IF/ i took even one snIFF,/ that would bore me terrIFc’ly too” é vertido para “que POrre, oh,/ eu não POsso com PÓ,/ coca só me provoca deprê”, em que o fonema “PÓ” (gíria para cocaína) se imiscui entre as palavras e versos, assim como “IF” no original. Ao final da letra, a sequência de sons em “Y” (de “sky”) é respondida por uma série em “ÉU” (de “céu”, “sky” em português): “saltar ao lÉU de asa-dELta no cÉU/ É O que EU nunca penso em fazer” para “flYing too hIGH with some gUY in the skY/ is mY Idea of nothing to do”.
  3. “A Foggy Day” (“In London Town”) virou “Um Dia de Garoa” (“Em São Paulo”) porque “garoa” (uma espécie de chuva fina e persistente) é um fenômeno climático típico e – assim como o “fog” em relação a Londres – tradicionalmente associado à cidade de São Paulo. Um caso de transposição cultural para uma ambiência local, tal como propugnava Pound.
  4. “Façamos”, a versão de “Let’s Do It”, é outro exemplo de busca de restituição de uma atmosfera e de um humor essenciais, como forma de fidelidade ao espírito do original. Nela, expresões como “picantes pica-paus”, “tico-ticos no fubá” e muitas outras transpõem o sentido geral da letra em inglês para um contexto tipicamente brasileiro. Por outro lado, não ficam sem resposta todos os efeitos estilísticos produzidos por Cole Porter: paronomásias, trocadilhos, duplos sentidos… “Oysters down in Oyster Bay do it”, por exemplo, virou “Camarões em Camarões fazem” (traducao do jogo de palavras); “Sentimenal centipedes do it” se transformou em “Centopeias sem tabu fazem” (tradução paronomástica). Etc.
  5. Um detalhe em “Quem Tome Conta de Mim” (“Someone to Watch Over Me”), que teve a co-autoria de Nelson Ascher: a aliteração em três Ls de “oveLhinha ao Léu sem Lar sem ninguém” correspondendo aos igualmente três Ls de “i’m a Little Lamb who´s Lost in the wood”, do mesmo verso no original.
  6. Outro, em “Ó dama, tem dó” (“Oh Lady, Be Good”), que Charles Perrone verteu comigo: “quero aCHAR MOÇA CHARMOSA” como solução para o anagrama contido no verso “i must WIN SOME WINSOME miss”, do verse. E no estribilho, a aliteração de quatro Ds de “ó Doce amaDa Dama, tem Dó” procura responder à de três Ls de “LoveLy Lady”.

*

“Palavra cantada é palavra voando”, escreveu James Joyce.

Pedra Bruta

Que virá do sonho?
Toda bruta.
Que virá do sem som do sonho?
Pedra toda bruta.
Que se verá vir do sem som com cor do sonho?
Pedra preta toda bruta.
E quererá entrar na realidade?
Pedra preta transmudada toda bruta,
Pra fecundar a realidade
E reviver a metade de nada?
Pedra preta azul-luz-transmudada toda bruta.
Que trará então nesse dia
O grande grão da alegria?
Pedra pretablue toda bruta.

Nara, Nara, Nara


de “Por que Nós”, de Camilo Frade


de “Cores de Acolá”, de Tito Lys

Eu não imaginara, Nara, Nara,
Que eu me apaixonara, Nara, Nara, Nara, por você;
Como eu jamais imaginara, Nara,
Meu coração dispara, pára, pára, pára por você.

Nara, o tempo não espera por nós dois,
E o tempo da paixão é já, jamais depois.

Eu já me condenara, Nara, Nara,
Quando eu me vi, de cara, cara a cara, cara, com você;
Aí então já me danara, Nara,
Como eu jamais imaginara, Nara, Nara, com você…

Nara, o tempo não espera por nós dois,
E o tempo da paixão é já, jamais depois.

Eu não imaginara, Nara, Nara:
O amor me revolucionara, Nara, Nara, por você.
Também me aprisionara, Nara, Nara,
E não me libertara a tara, a tara, a tara por você.

Nara, o tempo não espera por nós dois,
E o tempo da paixão é já, não é jamais depois.

Milagre

Milagre!
Multiplicou-se em cem uma semente,
Em mil, em mil e cem, uma somente,
Uma semente só, tão resistente!

Milagre!
Dentro do ventre tal como um cometa,
Entre milhões apenas um gameta,
Não mais do que um gameta, chega à meta.

Milagres como esses são diários,
Mas não milagres extraordinários:
Milagres, mas milagres ordinários.

Milagre!
Que coisa incrível, sim, que coisa louca,
A guerra da saliva em minha boca
E a longa vida, oculta, da minhoca!

Milagre!
A efêmera beleza de uma flor!
O pouco odor, o tom marrom da cor
E a boa forma, firme, de um cocô!

Milagres como esses são diários,
Mas não milagres extraordinários:
Milagres, mas milagres ordinários.

Milagre!
Viver por toda a vida, todavia,
Morrendo e renascendo a cada dia,
Com o pé quente e a cabeça fria.

Milagre!
Provar o sal, o amargo, o doce, o agre!
E derramando a comovida lágri-
Ma, comprovar que a vida é um milagre!

Milagres como esses são diários,
Mas não milagres extraordinários:
Milagres, mas milagres ordinários.

Milagre, ah, milagre, oh, milagre!

A Fêmea, o Gêmeo


de “Aço do Açúcar”, de Aldo Brizzi

2004_Aldo_Brizzi_aco_de_acucar_1024


versão remix

A fêmea, o gêmeo, o gérmen, o sêmen,
O homem, o hímen, o ímã, o clímax,
A fênix, o pênis, a Vênus, o Adônis,
O ânus, o tônus, o músculo, o másculo,
A carne, o nácar, o néctar, o esfíncter,
A púbis, a cútis, o látex, o ápice,
Os lábios, os hábeis, as línguas, os langues,
A relva, a selva, a vulva, o alvo,
A dupla, a cópula, o pólen, a pétala,
A pelve, a pele, o plexo, o amplexo,
A perna, o esperma, o pasmo, o espasmo,
Os órgãos, a gosma, o orgasmo, o cosmo

Mirante


de “Luar – Canções de Arrigo Barnabé”, de Tuca Fernandes

2004__Tuca_Fernandes_Luar_Cancoes_de_Arrigo_Barnabe_1024

Que eco e em que século?
Qual onda de som, qual sonda?
E que sinal de sim afinal
Fará chegar a mensagem do homem ao Cosmos
De não querer
Ser só um ser
A sós?

Daqui desse grande grão de
Areia azul, mirante,
Poeira do estouro estelar,
Veja agora aquilo que era a milhares
De anos-luz
E Vênus-luz
Brilhar. (*)

________________________

Variante:
(*) Lilás.

Geraldo Pereira

Escrito em 2002 para a série de sites “Os Inventores da Música Brasileira”, do portal UOL

O criador do samba sincopado

Geraldo Pereira ocupa um lugar de destaque entre os compositores de música brasileira dos anos quarenta e da primeira metade dos anos cinquenta, como o criador maior de uma forma de samba chamado de sincopado. Seus sambas, muito inventivos, apresentavam divisões rítmicas inéditas em seu tempo, sendo considerados predecessores da bossa nova.

Neles, o ritmo é acentuado pelo uso – ou melhor, pelo abuso – das síncopes. As notas são abreviadas ou alongadas, retendo-se ou estendendo-se a respiração; dessa forma, a melodia adianta ou atrasa, facilitando a subdivisão tônica da frase musical. Para o pesquisador Jairo Severiano, o sambista tem um papel relevante “no processo de evolução do samba através da valorização das síncopes e do emprego de determinadas resoluções harmônicas inusitadas nas composições da época”.

Há quem encontre as origens da revolucionária divisão rítmica de João Gilberto nas síncopes de Geraldo Pereira. “O samba dele era leve e cheio de divisões rítmicas: isto sempre me chamou atenção. Ele não tinha consciência disso, mas foi um inovador na música popular brasileira na década de quarenta”, disse, certa vez, o próprio João. O papa da bossa nova, em pleno florescer e vigência do movimento, chegou a gravar “Bolinha de Papel”, de Geraldo.

Realmente, era preciso um compositor muito bom para inventar algo de fato novo e original, frente ao que já haviam feito Noel Rosa, Ismael Silva, Ary Barroso e outros criadores do primeiro time do samba carioca, nos anos trinta. Foi quando entrou em cena Geraldo Pereira, com seu samba sincopado, uma espécie de derivação do samba telecoteco (este, situado ritmicamente entre o choro o samba do Estácio, e também um samba de morro).

De acordo com o pensamento de Cyro de Souza (emitido para os autores de “Um Certo Geraldo Pereira”, biografia do compositor), Geraldo partiu do samba telecoteco, que encheu de nuances, para fazer uma bossa nova…

Sambista intuitivo, sambas elaborados

Geraldo Pereira foi um dos três grandes compositores que Minas Gerais deu à música popular brasileira pré-bossa nova. Como ele, nascido em Juiz de Fora, também eram mineiros Ari Barroso, natural de Ubá, e Ataulfo Alves, de Miraí. Como esses, ou até mais, ele também se carioquizou. Sua formação musical, cultural e existencial se deu na privilegiada região do morro de Mangueira, no Rio de Janeiro.

Apesar da marca de artista intuitivo e espontâneo, seus sambas eram muito elaborados. As síncopes constituem a sua principal singularidade, mas não a única. Conjugando letras e músicas de maneira peculiaríssima, neles palavras e sons parecem gingar e rodopiar, equilibrando-se elegantemente com um pé no chão e outro no ar, como num lance de capoeira.

A esmagadora maioria de suas músicas fala de amor, ou seja, de mulheres – também o tema principal de sua vida particular. Ele teve muitas; a principal foi Isabel, inspiradora de alguns grandes – e inspirados – sambas.

Alto, forte e brigador, suas histórias de valentia fizeram fama. O sambista se tornou personagem lendária. Dizem – a frase é do cantor Jorge de Castro – que ele “caminhava gingando, andar de malandro”. Malandro, sim, mas não vagabundo. Pelo contrário, era um grande batalhador, ciente de que essa era a única saída para a sua difícil condição de preto pobre – mais exatamente, mulato puxado para negro.

Fazia sucesso, mas não ganhava dinheiro – samba não dava grana naqueles tempos. Morreu pobre. E novo: com apenas 37 anos, em consequência de um soco que levou numa briga com outro valente do Rio da sua época, o também malandro Madame Satã – um negro homossexual, mas muito forte e brigão. O machão Geraldo Pereira acabou sendo morto por um homem afeminado.

Clássicos, intérpretes e parceiros

Geraldo Pereira desenvolveu toda a sua obra compositória em não mais que dezessete anos (morreu com apenas 37 anos, em 1955). Nesse espaço de tempo, deixou editadas 77 músicas, sambas na sua quase totalidade, e praticamente todos gravados.

Ciro Monteiro – o maior cantor de samba de todos os tempos, na opinião respeitabilíssima de Paulinho da Viola – foi o seu principal intérprete. O próprio estilo de cantar de Ciro se situa nas origens da invenção do samba sincopado. Alguns dizem mesmo que Geraldo se inspirava em sua interpretação para compor. Ciro foi quem lançou seus dois sambas de maior sucesso (coincidentemente, o primeiro e o último hit de sua carreira): “Falsa Baiana”, seu maior clássico, e “Escurinho”. Além de “Acabou a Sopa”, “Até Hoje Não Voltou”, “Pisei num Despacho” e “Você Está Sumindo”.

Quem mais gravou músicas de Geraldo não foi, no entanto, Ciro, mas o próprio compositor – que também investiu na carreira de cantor: quinze vezes (para doze de Ciro). Geraldo não possuía muita voz, mas esbanjava ginga vocal, como atestam as auto-gravações de clássicos como “Escurinha”, “Cabritada Mal-sucedida”, “Pedro do Pedregulho” e “Ministério da Economia”.

Em número de registros, os outros principais intérpretes do sambista foram Roberto Paiva (que o lançou, com “Se Você Sair Chorando”), Déo e Moreira da Silva. Blecaute (que gravou “Chegou a Bonitona” e “Que Samba Bom”) e Roberto Silva também estão entre os mais importantes.

A grande maioria das músicas de Geraldo Pereira leva também a assinatura de algum parceiro. Arnaldo Passos foi o mais frequente. Elpídio Viana, Ary Monteiro, José Batista e Augusto Garcez também são creditados. Consta que nessas parcerias Geraldo costumava fazer as primeiras partes, ou a maior parte dos sambas, deixando para o parceiro completá-los.

Novos intérpretes

Aqui, a cronologia do resgate de uma obra, cuja importância somente passou a ser melhor avaliada após a morte de seu autor, ocorrida em 1955.

1961 – O inventor da bossa nova, João Gilberto, grava “Bolinha de Papel”, no auge do movimento.
1969 – “Que Samba Bom” é relançado por Elza Soares, uma das mais talentosas sambistas brasileiras de todos os tempos.
1971 – O modernizador do samba de tradição Paulinho da Viola, num de seus resgates de pérolas da velha guarda, registra “Você Está Sumindo”.
1972 – Gal Costa grava “Falsa Baiana” num dos álbuns mais importantes de sua carreira, “Gal a Todo Vapor”.
1974 – Chico Buarque revive “Sem Compromisso” em seu disco “Sinal Fechado”.
1980 – Jackson do Pandeiro, o rei das divisões rítmicas inventivas na música nordestina, recria “Pisei no Despacho”.
João Nogueira inclui “Escurinha” e “Você está Sumindo” em seu álbum “Wilson, Geraldo e Noel”.
1981 – O selo Eldorado lança o disco “Evocação V”, uma espécie de songbook de Geraldo Pereira com as participações de: João Nogueira, Jackson do Pandeiro, Christina, Roberto Silva, Jards Macalé, Elton Medeiros, Monarco, Nelson Sargento, Vânia Carvalho, Grupo Tarsis, Marçal e Batista de Souza.
1982 – O compositor é homenageado no Carnaval do Rio de Janeiro, no enredo “Geraldo Pereira, Eterna Glória do Samba”, da Escola de Samba Unidos do Jacarezinho.
1984 – Lançamento do livro “Um Certo Geraldo Pereira” (Funarte), biografia do compositor escrita por Alice Duarte Silva de Campos, Dulcinéa Nunes Gomes, Francisco Duarte Silva e Nelson Sargento.
Lançamento do disco “Geraldo Pereira” (Funarte), de Bebel Gilberto e Pedrinho Rodrigues, com interpretações dos maiores sucessos do sambista.
1994 – Luiz Melodia faz um show inteiramente dedicado à obra de Geraldo Pereira, no auditório do MIS (Museu da Imagem e do Som) de São Paulo, dentro da série “Sempre-Novas”.
1997 – Gal Costa regrava “Falsa Baiana” em seu bem-sucedido comercialmente CD “Acústico MTV”.
2000 – O cantor e compositor Nelson Sargento, da Velha Guarda da Mangueira, acompanhado do grupo vocal Arranco de Varsóvia, faz shows no Rio e em São Paulo cantando somente músicas de Geraldo Pereira.

Vaidade


de “Pra Você Me Ouvir”, de Eliana Printes
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Se você não quer se dar pra mim,
Dar pra mim,
Por favor, amor, não faça assim…
Faça assim:

Não me procure, me esqueça,
Me cure, não me enlouqueça,
Não me faça mal.
Não me faça mal.
Não me faça mal.

De que lhe serve esse fruto,
Se você não serve e eu não desfruto,
Afinal?

Meu sofrimento não há-de
Servir de alimento pra sua vaidade
Sem igual.

Vicissitude

Vai afundar
Na onda do mar da imaginação
Quem não surfar
Por cima da prancha da percepção.

Saiba, porém,
Que a onda que sobe desce e cai;
Assim também,
A onda que vem é a onda que vai.

E entre doença e saúde,
Em toda vicissitude
Pense a palavra que mude
A má condição;

Cante-a com entusiasmo,
Tal quando tem um orgasmo,
E então espante o marasmo
Do coração.

Quando Eu Fecho Os Olhos


de “Bossa Tropical”, de Gal Costa
2002_Gal_Bossa_tropical_1024

Aí você surgiu na minha frente,
E eu vi o espaço e o tempo em suspensão.
Senti no ar a força diferente
De um momento eterno desde então.

E aqui dentro de mim você demora;
Já tornou-se parte mesmo do meu ser.
E agora, em qualquer parte, a qualquer hora,
Quando eu fecho os olhos, vejo só você.

E cada um de nós é um a sós,
E uma só pessoa somos nós,
Unos num canto, numa voz.

O amor une os amantes em um ímã,
E num enigma claro se traduz;
Extremos se atraem, se aproximam
E se completam como sombra e luz.

E assim viemos, nos assimilando,
Nos assemelhando, a nos absorver.
E agora, não tem onde, não tem quando:
Quando eu fecho os olhos, vejo só você.

E cada um de nós é um a sós,
E uma só pessoa somos nós,
Unos num canto, numa voz.

Quadro Negro


de “Falange Canibal”, de Lenine

No sub-imundo mundo sub-humano
Aos montes, sob as pontes, sob o sol
Sem ar, sem horizonte, no infortúnio
Sem luz no fim do túnel, sem farol
Sem-terra se transformam em sem-teto
Pivetes logo se tornam pixotes
Meninas, mini-xotas, mini-putas, de pequeninas tetas nos decotes

Quem vai pagar a conta? Quem vai lavar a cruz?
O último a sair do breu, acende a luz

No topo da pirâmide, tirânica
Estúpida, tapada minoria
Cultiva viva como a uma flor
A vespa vesga da mesquinharia
Na civilização eis a barbárie
É a penúria que se pronuncia
Com sua boca oca, sua cárie
Ou sua raiva e sua revelia

Quem vai pagar a conta? Quem vai lavar a cruz?
O último a sair do breu, acende a luz

O que prometeu não cumpriu
O fogo apagou, a luz extinguiu

Nelson Cavaquinho

Escrito com Paquito e publicado em 2001 na série de sites “Os Inventores da Música Brasileira”, do portal UOL

Único, inconfundível, original

A voz negra, rouca e suja. O toque rústico do violão. As cordas graves – a baixaria – conduzindo a harmonia. As melodias tristes de contornos incomuns. Os temas da morte e do sofrimento repetidos obssesivamente. As imagens e resoluções poéticas insólitas. Estas características se combinam na obra de Nelson Cavaquinho, formando um todo único, indissociável, e conferindo ao sambista um lugar especial entre os artistas mais originais da música popular brasileira de todos os tempos.

Nelson Cavaquinho foi contemporâneo dos principais nomes da chamada era de ouro da música popular brasileira, que durou dos anos trinta até o início da década de quarenta. Ao contrário daqueles, porém, ele permaneceu na condição de marginalizado durante a maior parte de sua carreira. O cantor e compositor não se preocupava com a comercialização de suas músicas, preferindo tocar e cantar, como um trovador urbano, nos bares, pelas madrugadas.

Por isso, muitos de seus sambas ficaram longo tempo no ineditismo, até serem gravados – casos de clássicos como “Luz Negra”, “Rugas” e “Palhaço”. Suas músicas foram apenas eventualmente registradas em disco até os anos sessenta. Foi quando ele começou a obter o devido reconhecimento, com a redescoberta dos sambistas de morro pelos bossa-novistas da segunda geração. Naquela década e na seguinte, Nelson viveu finalmente o ponto alto de sua carreira.

No início dos anos setenta, no auge desse processo, ele já era sexagenário.

Guilherme de Brito, o parceiro ideal

Na obra de Nelson Cavaquinho ressaltam, em quantidade e em qualidade, as músicas que ele fez com um de seus vários parceiros, o mais importante deles: Guilherme de Brito. Ao iniciarem seu trabalho, nos anos cinquenta, os dois fizeram um pacto de só comporem juntos, formando uma dupla que bem poderia ser chamada “o Lennon e McCartney do samba”.

Enquanto Nelson era um boêmio de passar dias e noites seguidas nos bares, Guilherme, opostamente, trabalhou na Casa Edson (antiga fábrica de discos) durante trinta anos. Mas a afinidade estética superou as diferenças de comportamento, e eles produziram uma série de sambas antológicos – um deles, o famoso “A Flor e o Espinho”, que possui um dos inícios mais fortes e surpreendentes dentre as canções já escritas em língua portuguesa: “Tire o seu sorriso do caminho/ Que eu quero passar com a minha dor”.

Da dupla nasceram ainda, entre outros: “Folhas Secas”, “Pranto de Poeta”, “O Bem e o Mal” e “Quando Eu Me Chamar Saudade”. No trabalho da dupla, não havia rigidez na divisão de papéis. Ambos faziam letra e música e, segundo depoimento de Guilherme de Brito, “no final ele passou a fazer a melodia, e eu a letra”. Em “A Flor e o Espinho”, por exemplo, a primeira parte é de Guilherme, e a segunda, de Nelson.

Os outros parceiros de Nelson, anteriores a Guilherme, foram ocasionais, e muitos entraram na parceria em troca de favores, como era costume na época. Algumas exceções foram Jair do Cavaquinho, da escola de samba Portela, com quem ele compôs “Eu e as Flores”, e Cartola, companheiro de boemia e de Mangueira, co-autor de “Devia Ser Condenada”.
A parceria com Zé Kéti é curiosa: como pertenciam a sociedades arrecadadoras diferentes, não podiam assinar conjuntamente uma composição, segundo uma regra vigente na época. Por isso, a Nelson (e a dois outros, José Alcides e José Ribeiro de Souza) foi creditado o samba “Nome Sagrado”, também de Zé; e a este, sozinho, “Meu Pecado” (gravado por Paulinho da Viola), composto pelos dois.

O tema da morte

A morte é obsessão na obra de Nelson Cavaquinho. Eis um dos maiores fatores de originalidade em sua arte: não se encontra, entre os compositores brasileiros, um outro que tenha feito desse – um assunto difícil por excelência – o tema principal de suas obras, sendo isso raro também na música popular de qualquer país.

Em Nelson, a angústia da morte e a efemeridade da vida incidem, às vezes inesperadamente, em canções falando de amor ou da escola de samba do compositor (“Folhas Secas”, por exemplo). Mesmo um símbolo poético como a flor – comumente associado à feminilidade, à mulher, à delicadeza – pode se apresentar na sua conotação funérea. Como em “Eu e as Flores”: “Quando eu passo perto das flores/ Quase elas dizem assim:/ ‘Vai, que amanhã enfeitaremos o seu fim’”.

A que poeta ocorreria a inspiração – levada à ousadia – de fazer um samba revelando ter dado enfim o beijo há tanto tempo esperado em sua amada, agora que ela está morta, no caixão? Pois foi o que Nelson Cavaquinho – e Guilherme de Brito – fizeram, em “Depois da Vida” (gravada por Paulinho da Viola, em 1971).

O conflito básico presente nas letras dos seus sambas pode ser sintetizado no paradoxo final de “Rugas”: “Feliz daquele que sabe sofrer”. A consciência de que ser feliz consiste apenas em administrar o sofrimento e a tristeza leva à crença num cristianismo popular e pessimista, no qual a caridade é uma virtude. A todos só restaria levar a vida tendo compaixão uns dos outros; afinal existir é sofrer, e viver bem é sofrer sem demonstrar. A única saída, portanto, se torna o descanso final, a morte, paradoxalmente também fonte de sofrimento, pois implica perda.

Abordando a morte ou não, Nelson transforma o lugar-comum em incomum. O imprevisto caracteriza também várias outras imagens lançadas nas letras curtas e fortes, ao mesmo tempo simples e surpreendentes, de seus sambas: “A luz negra de um destino cruel/ Ilumina o teatro sem cor/ Onde estou desempenhando o papel/ De palhaço do amor”, canta ele, em “Luz Negra”. Letras despojadas na construção, mas ricas nas novas realidades que cria.

O significado de Mangueira

Nelson Cavaquinho começou sua história musical como um chorão – provavelmente vem do choro a imprevisibilidade de suas melodias. Nessa fase, seu instrumento era o cavaquinho: daí o apelido com que ficou conhecido.

Foi num segundo momento que ele conheceu o morro de Mangueira, devido a seu emprego como soldado da cavalaria da Polícia Militar do Rio de Janeiro. O contato com Cartola, Carlos Cachaça e outros bambas mangueirenses o transformou definitivamente num sambista.

Só então seu instrumento passou a ser o violão. Nelson o tocava de uma maneira muito especial: beliscando as cordas com o indicador e o polegar, tirando assim um som único – uma das principais peculiaridades de seu personalíssimo trabalho.

Mesmo tendo residido em Mangueira por apenas um ano e meio, a ela o compositor dedicou vários sambas, entre eles “Sempre Mangueira”, “Pranto de Poeta”, “Folhas Secas” e “A Mangueira Me Chama”. A Mangueira está para Nelson Cavaquinho assim como a Vila Isabel está para Noel Rosa, e a velha cidade de Salvador para Dorival Caymmi: trata-se de pátria utópica, motivo de canção e morada ideal do poeta.

Os principais intérpretes

Ciro Monteiro foi o primeiro grande intérprete da obra de Nelson Cavaquinho, responsável pelo seu primeiro sucesso como compositor, com a gravação de “Rugas”, em 1946. Dentre os cantores da mesma geração, Dalva de Oliveira (“Palhaço”) e Roberto Silva (“Notícia”) também lançaram importantes composições do sambista.

Nos anos sessenta, Nara Leão (“Luz Negra” e “Pranto de Poeta”) e, em seguida, Elizeth Cardoso (“A Flor e o Espinho” e “Luz Negra”) deram início a uma onda de descoberta e gravação de seus sambas. Esse processo veio a se realizar de fato na década seguinte.

Um número crescente de cantores da MPB passou então a incorporá-lo a seus repertórios. Entre eles, tornaram-se grandes divulgadores de sua obra os sambistas Paulinho da Viola (“Depois da Vida”, “Duas Horas da Manhã”), Clara Nunes (“Minha Festa”, “O Bem e o Mal”) e Beth Carvalho (“Folhas Secas”, “Miragem”). Elis Regina fez de “Folhas Secas” um grande sucesso, e Chico Buarque lançou “Cuidado com a Outra”.

Nos anos noventa, a jazzista Leny Andrade lhe dedicou um songbook, “Luz Negra – Nelson Cavaquinho por Leny Andrade”. Em 2000, a musa das novas gerações Marisa Monte registrou em CD um de seus sambas com Guilherme de Brito: “Gotas de Luar”.

O próprio Nelson só passou a gravar discos individuais nos anos setenta. E, no entanto, é ele, acompanhado apenas do seu violão, “sempre colado ao peito tão amargurado”, o melhor intérprete de si mesmo.

É impressionante a organicidade que se estabelece entre canto, acompanhamento, música e letra, quando ele interpreta seus sambas. O tema da morte e o tom de amargura que caracterizam os textos têm a sua correspondência no timbre da voz desafinada e na crueza do som do violão. Tudo – palavras e sons – parece falar a mesma coisa. Não é comum se observar isso com tanta densidade e intensidade.

Aqui, merecem lembrança os nomes de Dorival Caymmi, na música brasileira, e Robert Johnson, o grande criador do blues rural, na música norte-americana (ao qual, aliás, o poeta Augusto de Campos associou Nelson Cavaquinho). São dois outros exemplos dessa classe rara de compositores-cantores que interpretam suas criações com uma inteireza, uma integridade e uma expressividade tais, que ninguém mais – por melhor que seja o cantor – pode fazê-lo.

Orlando Silva

Publicado em 2001 na série de sites “Os Inventores da Música Brasileira”, do portal UOL

“O maior de todos os tempos”

Orlando Silva, o grande modernizador do canto brasileiro, foi para muitos o maior cantor que a música popular do Brasil produziu nos anos 30 e 40 – e para alguns, simplesmente o maior de todos os tempos já surgido no país.

Suas interpretações se tornaram famosas pelo fraseado flexível, pela emissão macia e pela dicção cristalina. Combinando perfeitamente beleza e potência vocal, seu canto, de uma suavidade natural, era sóbrio e viril, por um lado, ao mesmo tempo que ornado, delicado e sutil, por outro.

Orlando Silva possuía uma notável capacidade de controle e de modulação da voz. Numa mesma canção, podia variá-la de agudos com falsestes a tons bastante graves. Mas não tinha apenas afinação: exibia também muita bossa. Seu sentido rítmico era admirável, e ele não repetia a mesma divisão ao retornar à primeira parte, introduzindo-lhe sempre alterações.

O cantor emprestava sentimento e emoção à interpretação de cada música, sem contudo deixar que seu canto se transformasse em algo derramado. A par disso, deu uma nova dimensão ao microfone, demonstrando uma noção exata no seu uso – um fator importante numa época sem sofisticação tecnológica aplicada ao som.

Para tudo isso, Orlando Silva mostrou ter uma sensibilidade naturalmente moderna. Por tudo isso, transformou a arte de cantar entre nós, lançando um estilo único e original que se firmou como uma escola, servindo de modelo e referência para as gerações subsequentes de cantores brasileiros. A de João Gilberto, por exemplo.

“O Cantor das Multidões”

Orlando Silva foi o primeiro grande ídolo de massas que apareceu no Brasil. Nos anos do auge de sua trajetória, nenhum outro artista obteve tanta popularidade quanto ele no país. Suas apresentações ao ar livre atraíam então imensas concentrações de pessoas, daí ele ter recebido o epíteto de “O Cantor das Multidões”.

Seu sucesso nessa fase – segunda metade da década de 30, primeira da seguinte – já foi comparado ao que Frank Sinatra teve, mas somente alguns anos depois, nos Estados Unidos. Moças e mulheres gritavam e desmaiavam à sua aparição, correndo atrás dele para agarrá-lo ou rasgar-lhe a roupa. Nesse sentido, no contexto nacional, ele precedeu também, em quase trinta anos, a Roberto Carlos.

Mesmo com tanto êxito, Orlando Silva nunca abriu mão da qualidade do trabalho, a começar do repertório que gravou e cantou.

O ponto alto da sua carreira e da sua voz coincidiu com o tempo de contratado pela RCA Victor (hoje BMG), de 1935 a 1942. Mais ou menos a partir de 1945, porém, a voz começou a dar mostras de um problema que afetou a sua sonoridade cristalina, seu timbre perfeito e os seus agudos suavíssimos.

Orlando Silva se tornou o primeiro nome consagrado da música brasileira que sucumbiu ao uso de drogas pesadas. A sua ascensão meteórica teve um relativo ostracismo subsequente; da glória, consolidada pela paixão das massas, ele quase conheceu a obscuridade. Foi portanto uma trajetória tormentosa – e uma existência atribulada – a sua.

Apesar do problema vocal, sua interpretação se manteve a mesma até o fim de sua carreira, nos anos 70: excelente. Embora alguns (jornalistas sobretudo) considerem vertiginoso o declínio de sua voz, para outros (artistas principalmente), nenhum outro cantor do passado se comparou a ele mesmo em sua fase decadente. Entre estes se contam os cantores e compositores Caetano Veloso e Paulinho da Viola.

Modelo para a bossa nova e o Tropicalismo

Orlando Silva serviu de modelo e referência para dois dos mais importantes e prestigiados movimentos de modernização da música, da arte e da cultura brasileira no século 20: a bossa nova e o Tropicalismo.

Dentre os elementos da tradição brasileira, o cantor e violonista João Gilberto o escolheu como uma das bases a partir das quais construiu o edifício da bossa nova. Na origem da invenção joãogilbertiana, Orlando adquiriu uma importância capital, ao lado do compositor Dorival Caymmi e do cantor Ciro Monteiro, entre outros.

O estilo de João vem de Orlando, para ele “o maior cantor do mundo”. A contenção e a economia sem perda do colorido melódico do velhaguardista levaram o bossanovista a se influenciar por ele e a elegê-lo mestre. Não à toa, João desde sempre visitou clássicos de Orlando, como “A Primeira Vez”, “Preconceito”, “Curare” e “Aos Pés da Cruz”. Este samba chegou a ser gravado por Miles Davis, por causa de João – e, indiretamente, por causa de Orlando.

A maciez na emissão macia e a flexibilidade no fraseado foram o que o carioca legou ao baiano, segundo Caetano Veloso, co-autor de outra revolução estética e musical que também viu no “Cantor das Multidões” uma espécie de farol. Para o líder tropicalista, Orlando representou particular e especial interesse por ter sido ao mesmo tempo “um fenômeno de massa e um artista do maior refinamento”.

Mais do que isso, Caetano, assim como um companheiro de geração, Paulinho da Viola, se deixou influenciar pelas interpretações de Orlando e tomou seus principais valores como cantor como critério de avaliação de canto. Em referência a ele, acabou gravando outro de seus clássicos, “Lábios que Beijei”.

Ainda Caetano, sobre Orlando (em seu livro de reminiscências tropicalistas, “Verdade Tropical”): “Tinha uma voz bela e poderosa, mas não impunha exibicionisticamente sua potência vocal, antes amaciando a emissão nos agudos, o que, combinado com seu senso do fraseado, suas divisões rítmicas inventivas e a clareza da dicção, fazia dele um músico da canção”.

Esta última característica é de certa forma sublinhada também em outro livro, “Orlando Silva – O Cantor das Multidões”. Nele, o biógrafo Jonas Vieira advoga uma tese para a origem do estilo orlandiano, associando-a ao choro carioca, em cujo berço o artista nasceu, “constituindo-se no único cantor fruto desse gênero de música”. Um gênero de música popular elaborada, melodicamente sofisticada, cultuada pelos melhores músicos. Segundo o autor, Orlando “transportou toda a magia instrumental do choro para o canto, emprestando-lhe voz e poesia”.

O jornalista Ruy Castro também vincula as interpretações de Orlando ao choro, apontando ainda, especialmente nos foxes e nas valsas que ele gravou, uma influência do cantor Bing Crosby, o grande inovador, nos anos 20 e 30, do canto norte-americano. “É Crosby à brasileira, com fabulações de choro e uma exclusiva bossa sestrosa e carioca”,escreveu.

Belo repertório, belos arranjos

Um dos segredos para o nível da arte de Orlando Silva está na fina sensibilidade demonstrada pelo intérprete na seleção e promoção de um repertório de alta qualidade. Assinado por muitos dos melhores compositores da época, nele se alinham algumas dezenas de clássicos da música brasileira (ver Uma seleção de clássicos do intérprete).

Excelente como cantor de sambas, Orlando se mostrou, no entanto, insuperável nas canções lentas – sambas-canções e valsas, além de foxes. Esta parte do seu repertório constituía na mais adequada para o tipo de cantor, romântico, que era.

De sensibilidade ele também deu mostras na escolha dos criadores dos arranjos e do acompanhamento das suas gravações. O cantor estabeleceu uma relação perfeita, entrosada, com o maestro Radamés Gnatalli, que “arranjou” vários de seus sucessos e que se revelou um grande modernizador das orquestrações. Outro importante arranjador com que Orlando contou foi Pixinguinha.

Uma seleção de clássicos do intérprete

  • De Pixinguinha: “Carinhoso” (com João de Barro), “Rosa” (com Otávio de Souza) e “Página de Dor” (com Cândido das Neves).
  • De J. Cascata e Leonel Azevedo: “Lábios que Beijei”, “Juramento Falso” e “Meu Romance” (este, só de J. Cascata).
  • De Custódio Mesquita e Mário Lago: “Nada Além” e “Enquanto Houver Saudade”.
  • De Pedro Caetano e Claudionor Cruz: “Caprichos do Destino”.
  • De Assis Valente: “Alegria” (com Durval Maia).
  • De Noel Rosa: “Dama do Cabaré”.
  • De Benedito Lacerda e Humberto Porto: “A Jardineira”.
  • De Bororó: “Curare”.
  • De Wilson Batista e Marino Pinto: “Preconceito”.
  • De Zé da Zilda e Marino Pinto: “Aos Pés da Cruz”.
  • De Joubert de Carvalho: “Por Quanto Tempo Ainda”.
  • De Octavio Mendes, José Marcílio e Déo: “Súplica”.
  • De Ary Barroso: “Faixa de Cetim”.
  • De Ataulfo Alves e Mário Lago: “Atire a Primeira Pedra”.
  • De Lupicínio Rodrigues: “Brasa”.

O ato de cantar, segundo o cantor

“Um momento de extrema tensão vivida tanto pelo cantor como pelo ouvinte. E que precisa ser tratado com o máximo de suavidade e o máximo de impacto, num estado de concentração absoluta.
“O som transmitido pelo intérprete não pode ser muito forte nem muito fraco, mas modulado de forma que não gere desconforto. Não deve haver excesso de ruído nem escassez de som, isto é, não se deve gritar nem baixar a voz a ponto de o ouvinte perturbar-se ou sentir-se incomodado pela palavra mal emitida pelo intérprete.
“Trata-se de um ato difícil de realizar. Porque no momento em que se está cantando, as tensões são fortíssimas. A mínima falha pode ser fatal, derrubando o encanto geral do espetáculo.
“Deve-se também ser esperto e dosar a voz a fim de aproveitá-la com o máximo de precisão, tirando partido dos momentos em que a música pede elevação ou diminuição da voz, ou seja, nos agudos com falsetes e nos tons graves muito baixos – nas modulações.
“E explorar ao máximo as vantagens do potencial de voz, como a elevação de um tom para outro numa única emissão.”

Poucos nomes do canto brasileiro demonstraram tal clareza de consciência técnica da linguagem que dominava.

Na descrição da criação de seu estilo, Orlando Silva o comparou ao dos dois mais importantes nomes do canto brasileiro na época em que surgiu. Segundo afirmou, ele quis reunir o que Francisco Alves possuía em termos de voz e o que Sílvio Caldas possuía em termos de intepretação. Tinha-se, em um, o cantor, e em outro, o intérprete. Orlando buscou – e logrou – ser a síntese de ambos, cantor e intérprete.

O cantor também disse certa vez ter uma dívida com “O Rei da Voz”, pelos toques que recebeu deste no início de carreira. “A noção de aproximação e distanciamento do microfone, ou então o seu uso mais ou menos de lado para provocar um efeito de voz, constituía-se num jogo discreto mas importantíssimo entre o cantor e o seu público. Muito cedo aprendi isso – que com o rádio moderno se tornou mais fácil –, orientado pelo Chico Alves.”

João de Barro

Publicado em 2001 na série de sites “Os Inventores da Música Brasileira”, do portal UOL

Um compositor realmente popular

“Yes! Nós Temos Bananas”, “Touradas em Madri”, “Pastorinhas”, “Carinhoso”, “Pirata da Perna de Pau”, “Chiquita Bacana”, “Balancê”, “Cantores do Rádio”. Peças estabelecidas na nossa memória coletiva, essas músicas se mantêm populares até hoje, mesmo tendo sido compostas, na maior parte, há mais de 60 anos. De comum entre elas, uma única coisa: o nome do compositor carioca João de Barro.

Também chamado de Braguinha, ele é uma das figuras de vida e arte mais longas da história da música popular brasileira. Com mais de 400 criações (aí incluídas suas versões para canções estrangeiras), JB assina uma das maiores obras já produzidas por um compositor nacional. No início do século 21, é o remanescente mais longínquo e importante de uma época realmente de ouro de nossa canção: os anos 30, era fundante de – e fundamental para – tudo o que veio depois dela, da bossa-nova e do tropicalismo à MPB contemporânea.

O rei das marchas de carnaval

João de Barro, Braguinha, se especializou em marchas carnavalescas que fizeram enorme sucesso até perto do final dos anos 50. Alguns de seus clássicos nesse gênero chegaram a obter projeção internacional, como “Touradas em Madri” e “Chiquita Bacana” (além do samba-canção “Copacabana”).

Diferentemente do samba carnavalesco, uma criação tipicamente negra saída das classes humildes da população do Rio de Janeiro, a marchinha foi inventada e desenvolvida por compositores da classe média carioca. É o que conta Jairo Severiano em sua biografia de João de Barro, “Yes, Nós Temos Braguinha”. O pesquisador aponta também as principais características do gênero: “O ritmo alegre, saltitante; a melodia simples, fácil de cantar; a letra leve, satírica e bem-humorada”.

Dois compositores serviram para consolidar o prestígio da marcha carnavalesca: Lamartine Babo e João de Barro. Um fino senso de humor e um raro poder de observação foram decisivos para o sucesso de ambos.

Em Braguinha, Severiano destaca, como objetos fundamentais explorados por suas marchas, “a exaltação da mulher e a crônica do cotidiano. Esses temas, ele os desenvolveu num estilo que combina simplicidade, bom gosto e senso crítico, com doses certas de lirismo, humor e malícia”.

Parceiros e intérpretes

João de Barro se tornou o sucessor de outro grão-mestre do carnaval brasileiro, Lamartine Babo. Braguinha começou a compor tentando copiar Lalá, no início da década de 30. Da imitação passou à paródia, com “Linda Lourinha” (em resposta a “Linda Morena”, de Babo, do carnaval de 1933), chegando por fim à co-autoria, em “Uma Andorinha Não Faz Verão” e “Cantores do Rádio” (esta, uma “triceria” de JB, Lamartine e Alberto Ribeiro).

Alberto Ribeiro – autor, sozinho, de um clássico da música junina: “Sonho de Papel” – foi o parceiro mais constante de JB. A primeira autoria da dupla, “Deixa a Lua Sossegada”, satirizou o culto da imagem romântica da lua: “É madrugada;/ De longe eu vim./ Deixa a Lua sossegada/ E olha pra mim…” Das aqui citadas até agora, só não são dos dois “Pastorinhas” (com Noel Rosa) e “Carinhoso” (com Pixinguinha), além de “Pirata da Perna de Pau” e “Linda Lourinha”, só de Braguinha.

JB compunha assobiando, pois não “sabia” música. Com Ribeiro, dividia sons e palavras. E geralmente fazia só as letras das músicas compostas com os demais parceiros, entre os quais figuraram nomes como os de Alcir Pires Vermelho (co-autor de “Laura”) e Antonio Almeida (de “Vai com Jeito”).

Desses modos tiveram origem composições que se popularizaram nas vozes de Carmen Miranda, Mário Reis, Silvio Caldas, Orlando Silva, Francisco Alves, Carlos Galhardo, Carmen Barbosa, Emilinha Borba, Jorge Goulart e outros grandes intérpretes que se distinguiram nos anos 30, 40 e 50. Nos 60, ele seria regravado por Caetano Veloso; nos 70, por Chico Buarque, Maria Bethânia e Nara Leão e, especialmente, por Gal Costa, que estourou com “Balancê”; e nos 90, por Djavan.

Pré-bossanovista e pré-tropicalista

Marchas, sobretudo – mas não apenas. João de Barro também excursionou pelos terrenos da valsa, da toada, do samba, do samba-canção. Compostas neste gênero, aliás, se alinham duas músicas já tidas como precursoras da bossa-nova: “Laura” (parceria com A.P. Vermelho) e “Copacabana” (com A. Ribeiro), lançada por Dick Farney, em 1946.

Em matéria de antecipação, no entanto, o caso mais notável é o de “Yes! Nós Temos Bananas”, tropicalista – trinta anos antes! – na essência, na medula e na gênese: a marcha emprega um recurso artístico caro ao Tropicalismo, a paródia, tendo nascida como réplica a um fox americano em moda na época, “Yes! We Have No Bananas”. Não foi à toa, portanto, que Caetano Veloso a regravou em plena vigência do movimento, em 1967, movido talvez pela sua inclusão na revolucionária encenação de “O Rei da Vela”, do diretor Zé Celso Martinez Correa, naquele ano.

A precursora tropicalidade de Braguinha, porém, é evidenciada também por outra criação sua, a versão que fez para “Las Tres Carabelas” (“As Três Caravelas”). E que de novo o próprio Caetano, em dueto com Gilberto Gil, gravaram no álbum coletivo “Tropicália ou Panis etc Circensis”, em 1968.

Algo mais sobre “Yes! Nós Temos Bananas”. A par de suas conotações socio-econômicas, definindo um retrato a um tempo cômico e crítico das condições de nosso país, a música revela um outro componente distintivo do estilo de Braguinha e expressivo da brasilidade: o sexual. De fato, a malícia se faz presente em várias de suas canções, relacionada com o espírito do carnaval e do próprio brasileiro.

Clássicos da música infantil

Se por um lado muitas das canções de João de Barro são maliciosas, por outro, várias são por sua vez perpassadas por uma singeleza que caracteriza de modo especial uma parte significativa da sua vasta produção: a dirigida ao público infantil. Nenhum, dentre os grandes autores da história da MPB, se dedicou tanto a este filão como o criador (com Alberto Ribeiro) de “Capelinha de Melão”.

A popularidade de sua incursão no gênero – que incluiu dezenas de versões de canções americanas – é comparável à dos hinos que Lamartine Babo compôs para os clubes de futebol do Rio, tantas e tão conhecidas são as peças das adaptações de histórias infantis que fez. Alguns exemplos: “Chapeuzinho Vermelho”, “História da Baratinha”, “Pinóquio” e “Branca de Neve e os Sete Anões”.

Seus primeiros trabalhos do tipo coincidiram com o início das suas dublagens e traduções para filmes de Walt Disney no Brasil, em 1940. Desde 1935, JB já vinha trabalhando em cinema, tendo colaborado nos argumentos, roteiros, direção e trilhas dos históricos musicais “Alô, Alô, Brasil”, “Estudantes”, “Alô, Alô, Carnaval” e “Banana da Terra”.

Braguinha foi um polivalente em sua carreira, tendo também exercido a função de diretor artístico em gravadoras como a Columbia e a Continental. Nesta, se distinguiu ainda como produtor de uma coleção de discos infantis muito bem-sucedida comercialmente.

Lamartine Babo

Publicado em 2001 na série de sites “Os Inventores da Música Brasileira”, do portal UOL

O lugar de Lalá

Lamartine Babo foi um dos maiores compositores da época de ouro da história da música popular brasileira, a década de 30. Ao lado de nomes como Noel Rosa, Ary Barroso e Assis Valente, entre outros, ele se alinha no time dos criadores mais inventivos e originais, responsáveis pela formação do que veio a se chamar mais tarde de MPB.

Como Noel, Ary e Assis, da mesma geração, e como Dorival Caymmi, da posterior, LB (1904-1963) fixou rápida e definitivamente um estilo próprio no cenário musical nacional de seu tempo. Autor de marchas e sambas inconfundíveis, ele se distingue perfeitamente de qualquer outro grande marchista ou sambista brasileiro. O compositor, carnavalesco por excelência, se constitui “em um caso à parte, pela apurada sensibilidade e pelo fino humor de suas produções” – como escreveu seu biógrafo, Suetônio Soares Valença, em “Tra-la-lá” (edição Funarte, 1981).

Os clássicos de Lalá

O nome do carioca Lamartine Babo, ou simplesmente Lalá, como era carinhosamente chamado, é sinônimo de carnaval. É que a fase áurea de desenvolvimento de sua obra – de 1931 a 1937 – se pautou principalmente pela produção voltada para esse tipo de música. Naquele período, todo início de ano ele deu o tom do que ia ser cantado no Rio de Janeiro e em outros pontos do Brasil. Suas composições acabaram se consagrando como as mais expressivas no gênero em todos os tempos. Algumas se tornaram autênticos hinos da festa máxima do povo brasileiro.

“O Teu Cabelo Não Nega”, por exemplo, é uma das mais populares, senão a mais popular das marchas de carnaval já compostas. Mas ele compôs outras, num leque de grande variedade estilística. As românticas, como “Linda Morena”; as brejeiras, na linha de “Moleque Indigesto”; as maliciosas, do tipo de “Aí, Hem”. E entre seus clássicos carnavalescos figuram ainda “A Tua Vida É Um Segredo” e “Marchinha do Grande Galo”, além do samba “Rasguei a Minha Fantasia”.

Lalá não se limitou a esse repertório, porém. Investiu também com sucesso na expressão de outros aspectos da alma brasileira. Assim, perpetrou algumas canções sentimentais antológicas do nosso cancioneiro, como a sertaneja “No Rancho Fundo”, feita em parceria com Ary Barroso, e “Serra da Boa Esperança”. Além de valsas de um singelo romantismo, como “Eu Sonhei Que Tu Estavas Tão Linda” e “Mais Uma Valsa, Mais uma Saudade”.

Por outro lado, suas incursões no filão das músicas feitas para festas juninas resultaram em pelo menos duas das melhores composições no estilo: “Chegou a Hora da Fogueira” e “Isto É Lá com Santo Antônio”.

Por fim, dedicou-se à produção dos hinos dos grandes clubes de futebol do Rio, dos mais bonitos e conhecidos, dentre todos os já criados para times brasileiros: do Flamengo, do Fluminense, do Botafogo, do Vasco da Gama, do América – do qual era torcedor – e até do Bangu. Marchas de imensa popularidade entre nós, praticamente não passa uma semana no país sem que sejam executadas e entusiasticamente cantadas.

Canções de invenção

“Lamartine Babo, o verdadeiro artista da graça, do improviso, maravilhava a todos com versos humorísticos e frases cheias de espírito”. A sentença, colhida em um jornal do Rio nos anos 30, falava sobre uma de suas apresentações. Mas se aplica perfeitamente às suas canções, que o colocam entre os compositores-letristas brasileiros de maior inventividade do passado, do presente e do futuro.

Veja-se o caso de “Canção para Inglês Ver”. Obra-prima do nonsense popular brasileiro, é ao mesmo tempo uma sátira à influência americana e à moda da língua inglesa, no momento em que começam a se introduzir entre nós através do cinema falado (nesse sentido, guarda relações com “Não Tem Tradução”, de Noel Rosa, e “Good-bye”, de Assis Valente). Seus versos misturam palavras do português e do inglês deliciosamente rimadas, usando ainda termos franceses.

Outra tirada de bom humor de extração tipicamente lamartiniana é a rancheira “Babo…zeira”. Aqui, seu gosto por trocadilhos – e também sua auto-ironia – já se percebem no título. Numa passagem, chega a dizer: “Rancheira, o nome está dizendo,/ É rã que cheira…”.

Disparates como esse, de um dadaísmo ingênuo, fazem a graça também da sintomaticamente intitulada “Canção do A.B.surdo”, uma de suas parcerias com Noel Rosa. E com Noel ele compôs ainda “A.E.I.O.U.” (sobre a personagem Juju, que “foi pra Ásia e teve azia…”), classificada bem-humoradamente pela dupla como “marcha colegial”.

História do Brasil

Quem foi que inventou o Brasil?
Foi seu Cabral
No dia 21 de abril
Dois meses depois do Carnaval

Depois Ceci amou Peri
Peri beijou Ceci
Ao som do “Guarani”
Do “Guarani” ao guaraná
Surgiu a feijoada
E mais tarde o parati

Pelo espírito e pelo estilo, pelo tema e pela forma, essa composição carnavalesca de LB poderia tranquilamente ter sido criada pelo grande poeta modernista Oswald de Andrade, o autor de “Poesia Pau-Brasil” – não por acaso, um apologista do Carnaval brasileiro, em seu “Manifesto Antropófago”.

Certas bossas criadas por Lalá foram antecipadoras na sua modernidade. Que dizer da enumeração de “Senhorita Carnaval”: “Carioquíssima!/ Animadíssima!/ Renovadíssima!/ Nacionalíssima!/ Amabilíssima!/ Valiosíssima!/ Assanhadíssima!/ Luxuosíssima!”?

Ou então do jogo sonoro-linguístico de “Hino do Carnaval Brasileiro”, em que, pela exploração de um artifício simples mas de ótimo efeito, uma frase emenda na outra, o som da última sílaba de um verso dando início ao seguinte: “Cor do café, a nossa grande produção/ – São, são, são, são quinhentas mil morenas!”.

Mais de trinta anos depois, não seria outro o procedimento que Caetano Veloso empregaria em “Cara a Cara”, justamente na sua fase de maior dedicação à produção de músicas para carnaval, no começo dos 70. Desde o primeiro verso a letra faz a mesma brincadeira de som e sentido, culminando com: “De alegria/ ria, ria, ria, ria,/ Que a luz se irradia/ – Dia, dia, dia, dia,/ Dia de sol na Bahia”.

A musicalidade de Lalá

O talento do compositor LB não se reduziu ao seu desempenho como letrista. Ele foi também, reconhecidamente, de um senso musical admirável na criação de muitas de suas melodias e até na definição de vários arranjos que as vestiram.

“Um dos poucos compositores que sabiam exatamente o que queriam com suas músicas”: eis como o definiu certa vez Radamés Gnatalli, o grande maestro que – assim como Pixinguinha – se responsabilizou pelos mais bonitos acompanhamentos que se fizeram para as músicas de LB. “Ele descrevia todo o arranjo, cantando a introdução, meio e fim, solfejava acordes e sugeria partes instrumentais. A gente só fazia escrever”.

Lalá se notabilizou pela concepção das introduções instrumentais que colaboraram decisivamente para a fixação de canções suas como “Linda Morena”, “Chegou a Hora da Fogueira”, “Menina Oxigenê”, “2 a 2” e, acima de todas, a internacionalmente conhecida introdução de “O Teu Cabelo Não Nega”.

Os intérprete e a permanência da obra

LB foi cantado, gravado e lançado pelos mais significativos cantores do seu círculo no seu tempo. Mas sobretudo por Mário Reis, cuja voz, pequena, e tipo de interpretação, contida, despojada, moderna, combinava à perfeição com o espírito das suas canções. Sozinho ou em dupla com Francisco Alves ou mesmo com Lalá, Mário Reis constituiu-se no principal intérprete de LB, de quem aliás era grande amigo.

O próprio autor também se constitui num ótimo intérprete dele mesmo, principalmente das peças mais engraçadas de seu repertório, que teve ainda em Carmen Miranda outro intérprete importante e funcionalmente adequado. Francisco Alves e Carlos Galhardo completam o grupo de principais cantores da sua obra.

Uma prova da sua durabilidade já foi dada pelas regravações – e suas repercussões públicas – recebidas de artistas de gerações muito posteriores à de LB. Foram particularmente os casos de Erasmo Carlos (com “Eu Sonhei Que Tu Estavas Tão Linda”) nos anos 60, de Chico Buarque, Maria Bethânia e Nara Leão (“Cantores do Rádio”) nos anos 70, e de João Gilberto e Rita Lee (“Joujoux e Balangandãs”), As Frenéticas (“Linda Morena”) e Xitãozinho e Chororó (“No Rancho Fundo”) nos 80. Lalá vive para sempre.

Mais uma armação de Tom Zé

Publicado na “Folha de S.Paulo” (“Mais!”), em 18/3/2001, sob o título “As múltiplas faces do som”

No shopping center de variedades que é o vasto mundo do disco e do showbiz – o comércio de encantos da música popular contemporânea –, o que ele fez é um feito: depois de um grande disco, realizou outro grande disco. Pois é. Nem bem estávamos refeitos dos impactantes efeitos de “Com Defeito de Fabricação” (seu CD anterior) e mais uma vez Tom Zé nos pegou no contrapé: o lançamento de “Jogos de Armar – Faça Você Mesmo” (ambos pela gravadora Trama) constitui uma proeza, mais marcante ainda por ser inédita: trata-se da primeira obra discográfica realmente, literalmente, aberta já realizada por alguém no terreno da música popular produzida até estes dias, no Brasil e no mundo, pode-se dizer. Alguém tem notícia de um caso dessa natureza? É improvável.

Senão, vejamos. O artista prova que verdadeiramente preza a sua platéia: incita-a a participar da sua criação, a somar, a produzir também. Uma velha utopia artística dos anos 60 (o consumidor se tornar produtor) se concretiza no fim/começo de século. A tecnologia possibilita a materialização do sonho por meio de um “CD auxiliar”, “Cartilha de Parceiros”, algo antes imaginável, sim, mas quem o fizera?

Convém, no entanto, reconhecer a primazia não só dessa idéia em particular, mas também a inventividade, a originalidade, a simplicidade e a riqueza das idéias em geral. Como a dos instrumentos experimentais (armazenados há anos), os “instromzémentos”, cinco, finalmente fazendo a sua estréia em disco. De aspecto algo futurista, são todos bonitos e esquisitos (aos olhos e aos ouvidos), a começar (1) pela orquestra de herz, ou “hertzé”, um tipo diferente de sampler, de 78, “made in Brazil”: um sampler pré-sampler (o “hertzé”, como seu inventor ele mesmo diz, “é um som e uma sintaxe: funciona sintaxialmente”); (2) o buzinório; (3) o enceroscópio (eletrodomésticos como enceradeiras, aspiradores de pó, liquidificadores; microfones de contato captam não o ruído do motor, mas a vibração do metal); as canetas Lazzari (4); além (5) da serroteria (canos de PVC, madeira e outros materiais; um serrote faz o papel de arco de violino).

Mas afinal o que é tudo isso? Apenas a arte incorporando elementos trazidos pela vida (a mais benéfica das influências). No plano da composição, Tom Zé complexifica, aplicando o método da justaposição ao conceito comum de canção. Por vezes, as peças parecem se mostrar em múltiplas faces, cubista. Em matéria de formatos e gêneros musicais, dessa vez o eclético e inventivo compositor introduz em nosso léxico um novo ritmo-dança, o chamegá (como Luiz Gonzaga, o xaxado, em outra época; e entre outras formas de cruzamento (baião-acalanto, baião-lenda, samba-rap, chameguinho-choro), idiossincráticas e sincréticas, apresenta-nos a “maracapoeira” (maracatu no baixo mais capoeira no cavaquinho).

Ao mesmo tempo não deixa de traduzir uma tradição viva, a que ele se volta e que atualiza. Agora, intervém no Nordeste clássico, revisitando-o com uma versão esfuziante e energética de “Pisa na Fulô”, em que o forró se torna uma farra só e com a, possivelmente, mais diferente de todas (e são muitas) as releituras já forjadas de “Asa Branca”, em que baixo, guitarra e sanfona degeneram o baião, enquanto a zabumba o sustém.

Os arranjos retomam, como é habitual, sonoridades inabituais, instrumentações inusuais, vocalizações inusitadas, isto é: um bonitíssimo vocalise feminino simplesmente extasiante – “um orgasmo lógico-cartesiano-sonoro”, diz o seu fértil criador (em “Passagem do Som”); um deslumbrante som de assobios (em “Peixe Viva”), outra beleza fina nascida do cérebro do músico; cantos (em “Sonho da Criança-Futuro-Bandido da Favela, na Noite de Natal”) e outros acontecimentos sonoros paralelos de matizes e técnicas diversas.

As interpretações, inteligentes, estabelecem isomorfismos entre “motz et son”. Além disso, destacam as teatrais-criativas, funcionais, cômico-dramáticas vozes feitas pelo intérprete. “Last but not least”, há os ruidosos-musicais, bizarros sons dos “instromzémentos”.

A propósito, compósitos tomzeanos (compondo todo um refrão -o de “Desafio”, por exemplo) como “instromzémentos” colaboram para a valorização poética dos textos, instrumentalizados com recursos de várias espécies: aliterações e paronomásias (como os chamados “quebra-línguas” nordestinos, numa aprazível melopéia em “Conto de Fraldas”); “non sense” e trocadilhos (uma dúzia deles na série de “Jimi Renda-Se”); fragmentações vocabulares (“Chamegá”); e uma dezena de novas, cantáveis onomatopeias.

No plano temático, o tratamento mordaz, antipatético, sarcástico, de mazelas e tragédias nacionais, prostituição infantil, FMI, “globarbarização”, miséria… “Se eu pudesse atrasaria/ Esse relógio dois mil/ Pra rezar na primeira missa/ Pelo futuro do Brasil” (“Perisséia”, com Capinan). Aguda contundência. Inquietação. Humor crítico. Estranhezas. Sentido ético (e, contudo, auto-ironicamente, ele batiza tudo de “música do século passado”).

“Ele representa um novo pensamento cujas características talvez ainda não conheçamos; é alguma coisa que está prestes a chegar. Ele desenvolve um estilo muito próprio, algo que funde, pode-se dizer, praticamente todas as características que surgiram ultimamente na música, como a superação de certos dualismos, como consonância e dissonância, belo e feio. É um artista que não tem medo, que vai adiante, que apresenta uma arte capaz de transformar as pessoas que a consomem. Para mim, essa é a função principal do artista”, disse um Hans-Joachim Koellreuter emocionado (profetizou, é mais exato dizer).

Não admira, portanto, a admiração da rapaziada que o descobriu na década passada. Aos 64 anos, poucos permanecem tão novos (dirá talvez Augusto de Campos) como ele se mantém. Ou tão singulares (como provavelmente preferirá, por sua vez, Miguel Wisnik, o outro Zé da cena paulistana de Arrigo e Arnaldo a Tom Zé e Zé Miguel: de A a Z na paulicéia desvairada). De fato, quase ninguém se parece tanto apenas consigo mesmo.

Entre tantos gênios que produzem sob a inspiração que cai do céu, partindo sempre do zero, compondo célula por célula, na escuridão completa, totalmente sozinho, ele é um antigênio total. Mas genial. Com suas imperfeições (felizmente). Com suas contribuições e até com seus “arrastões” (como ele, com desconcertante franqueza, chama os seus empréstimos e apropriações). Com seus requintes e suas singelezas.

Tiremos nosso chapéu e aceitemos o convite que ele gentilmente nos faz com este recém-lançado CD. Arte e vida sorriem juntas, outra vez. O que o disco contém alenta, emociona, informa, sensibiliza, entretém. Esses “Jogos” causam prazer estético. Este, o maior, pode-se dizer, de seus méritos.

P.S.: Se não se trata de “bad boy”, “bom rapaz” também está longe de ser. Apocalíptico, sim, com certeza, é. Tom Zé: um eterno rebelde tropicalista, com Schoenberg, contraponto clássico e serialismo de um lado, Zeca Cachangá, Xanduzinha e “cê-cê de marré-deci” de outro.

Vem, Amor


de “É Isso Aí”, de Paula Lima

Paula_Lima_E_isso_ai_1024

Lembro de cada noite fria
Da insônia insana que eu sofria
Lembro de tantas fantasias
Nas noites longas e nos dias sem fim

E das canções em que eu me via
Dos filmes em que eu me perdia
Até te encontrar sozinho
E me achar no teu caminho enfim

Agora vem pro meu abraço
E me leve em tuas asas aonde for
Me faz sentir em pleno espaço
E esquecer daquelas noites sem amor

Vem, amor
Vem, amor
Vem, amor