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Radicais MCs

Publicado na revista “Época” em 10/8/1998, sob o título“Radicais MCs – contundentes na forma e na temática”

A radicalização da violência social no Brasil não poderia deixar de ter sua expressão igualmente violenta e radical na música brasileira: os Ra¬cionais MC’s. Já vão longe os tempos em que Chico Buarque, nos anos 60, começou a obra que lhe renderia o epíteto de “poeta social” da MPB. Nos anos 90, os mais novos poetas so-ciais de nossa música atendem pelos nomes de Mano Brown e Edy Rock.

Comum a um e outros, há a ideolo¬gia, de esquerda. Em Chico, porém, existe um componente utópico que seria pouco provável num jovem de hoje – menos ainda em um da perife¬ria paulistana. De origem abastada, ele interpreta magistralmente uma tragédia a que assiste com envolvi¬mento e humanidade. Já os Racionais não apenas narram, mas são perso¬nagens reais desse filme de horro¬res que é o processo de miserabilização num país com um índice de desi¬gualdade quase sem igual no mun¬do. Mais importante: a par das signi¬ficações políticas e intenções de cons-cientização, suas letras são de alta qualidade artística.

Versos simples mas elaborados; ima¬gens claras e fortes; histórias bem desenvolvidas, personagens bem carac¬terizados. Uma poesia-vida usando a linguagem agressiva dos jovens ne¬gros de regiões pobres de São Paulo, entrecortada de gírias e palavrões, em raps de duração incomum. Sem concessões. Em processo de absorção, mas sem perder a contundência de seu dis¬curso político, poético. Éticos, os Ra¬cionais indicam a existência de digni¬dade em meio à vergonha nacional; ao descalabro. Não fosse tanta treva e tan¬ta sem-razão, talvez não houvesse Racionais. Se há Racionais, há luz.

Esteticar (Estética do Plágio)


de “Defeito de Fabricação”, de Tom Zé

1998_Tom_Ze_Com_defeito_de_fabricacao_1024

Pensa que eu sou um caboclo tolo, boboca,
Um tipo de mico cabeça-oca,
Raquítico típico jeca jacu , (*)
Um mero número zero, um zé à esquerda,
Pateta patético, lesma lerda,
Autômato pato, panaca tatu? (**)

Pensa que eu sou um andróide candango doido,
Algum mamulengo molenga mongo,
Mero mameluco da cuca lelé,
Trapo de tripa da tribo dos pele-e-osso,
Fiapo de carne, farrapo grosso,
Da trupe da reles e rala ralé?

Pensa? Dispenso a mula da sua ótica;
Ora vá me lamber, tradução inter-semiótica.
Se segura milord aí, que o mulato baião
(Tá se blacktaiando)
Smoka-se todo na estética do arrastão.

Ca esteti ca estetu
Ca esteti ca estetu
Ca esteti ca estetu
Ca esteti ca estetu
Ca estética do plágio-iê

_____ __________ _____________________
Variantes:

(*) Raquítico típico jeca-tatu,
(**) Autômato pato, panaca tatu?

Letra com Tom Zé (Refrão)

Canções do Divino Mestre

1998_Carlos_Renno_Cancoes_do_divino_mestre_1024

“Canções do Divino Mestre” (Companhia das Letras, 1998) – CD com concepção e produção artística de Carlos Rennó, encartado no livro “Canção do Divino Mestre”, de Rogério Duarte, com as participações de Alberto Marsicano, Ana Amélia, Arnaldo Antunes, Arrigo Barnabé, Belchior, Cássia Eller, Chico César, Cid Campos, Elba Ramalho, Gal Costa, Geraldo Azevedo, Gilberto Gil, Gilberto Mendes, João Duarte, Jussara Silveira, Lenine, Luiz Brasil, Maharaj, Moreno Veloso, Oliveira de Panelas, Péricles Cavalcanti, Roberto Mendes, Rogério Duarte, Siba, Tomáz Lima, Tom Zé, Tuzé de Abreu, Walter Franco e Waly Salomão. Produção musical de Cid Campos.

01. Observando os Exércitos – Rogério Duarte e Alberto Marsicano – 0:00:00
02. Leitura de Rogério Duarte – 0:02:12
03. O Lamento de Árjuna – Chico César e Rogério Duarte – 0:02:34
04. A eternidade da Alma – Gilberto Gil – 0:05:07
05. Leitura de Rogério Duarte e Waly Salomão – 0:08:30
06. Exortação à luta – Siba – 0:09:32
07. A espada do poder transcendental – Belchior – 0:13:30
08. Quem parte na luz, quem parte nas trevas – Tom Zé – 0:16:32
09. Oferenda a mim – Gal Costa – 0:19:42
10. A base do Supremo – Moreno Veloso – 0:22:38
11. A pessoa Suprema – Péricles Cavalcante – 0:24:55
12. Leitura de Walter Silveira – 0:27:07
13. As qualidades das pessoas de natureza divina – Arnaldo Antunes – 0:27:18
14. O homem demoníaco – Arrigo Barnabé – 0:31:26
15. Leitura de Walter Silveira – 0:32:48
16. O comedor de cachorro – Cássia Eller e Luiz Brasil – 0:32:57
17. Deve-se pensar em Deus – Maharaj – 0:36:02
18. A pessoa transcendental – Jussara Silveira – 0:39:03
19. A visão do Yogui sincero – Ana Amélia e Rogério Duarte – 0:40:50
20. Maha Mantra – Tomaz Lima – 0:42:32
21. Leitura de Tainá Guedes – 0:49:25
22. Leitura de Lenine – 0:49:30
23. A refulgência de Deus na forma universal – Rogério Duarte – 0:49:44
24. A visão de Krishna na forma universal – Lenine – 0:51:03
25. Leitura de Lenine – 0:54:03
26. Leitura de Tainá Guedes – 0:54:20
27. A semente original – Geraldo Azevedo – 0:54:25
28. Quem é muito querido a mim – Elba Ramalho – 0:56:55
29. A louvação de Krishna por Árjuna – Walter Franco – 0:59:37
30. A opulência do Absoluto – Oliveira de Panelas – 1:03:55
31. O pai do Universo – João Duarte – 1:07:24
32. Final (a conclusão de Sânjaya) – Rogério Duarte e Alberto Marsicano – 1:10:35
Um projeto de Carlos Renno sobre a obra Bhagavad Gita Traduzido por Rogério Duarte

Vocalização de Antunes coisifica sua poesia

Publicado na “Folha de S.Paulo” (“Ilustrada”), em 26/9/1997, sob o título “Antunes une forma e som”

O CD “Dois ou + Corpos no Mesmo Espaço”, acoplado ao livro homônimo, é mais uma pequena amostra do complexo conjunto de visões e vivências poéticas muito particulares em que consiste o instigante trabalho de Arnaldo Antunes, agora numa bem-sucedida transposição sonora.

Nele reencontramos, apropriadamente (isto é: estruturalmente) materializados no plano vocal, os mesmos elementos presentes na poesia de marcada caracterização visual de Antunes, como seus sugestivos jogos linguísticos e suas sintaxes rebeldes, de leituras simultâneas.

Assim, por exemplo, na peça-título, à medida que cada fonema é recortado, a pronúncia promove paradoxalmente a multiplicação de corpos-sílabas no espaço do som a que parece aludir a máxima do poema (“Dois ou mais corpos no mesmo espaço se multiplicam…”).

Do mesmo modo, na voz de Arnaldo soa, ou pressente-se, o ritmo irregular das ondas em “O Mar”. E o agá gagueja, quase silencia ou quase ecoa em “Agá”. Isomorfismo em poesia falada, correspondência íntima entre forma, sentido e som. No CD, os treze poemas viram palavras-coisas, como Sartre sugeriu que a poesia é.

Sob tais aspectos, o disco constitui mais uma experiência importante, depois do divisor de águas “Poesia é Risco”, de Augusto de Campos e Cid Campos. Só que, diferentemente deste, “Dois…” não emprega outro instrumento que não a voz.

Nesse sentido, eis, enfim, entre nós, um poeta com voz – clara, bela, firme, forte (melhor dizendo, um poeta com vozes, pois são várias as que usa). Quero dizer: um experto na oralização da palavra poética em suas dimensões cantada, falada, gravada, sampleada e editada.

O Brasil não possui uma tradição de leitura de poesia. Ezra Pound ou Dylan Thomas recitando seus poemas é algo maravilhoso, envolvente, impactante, não dando para dizer o mesmo de imensos poetas nossos como Drummond ou Cabral em suas próprias vozes. E se eles são “interpretados” por atores, aí podemos muitas vezes esperar pelo pior, estes pecando pelo excesso, aqueles, pela escassez.

Tal panorama começa a mudar. Quando o processo se consumar, a atuação de Arnaldo Antunes – com seu ótimo timbre, seu domínio do ritmo, seu ataque irresistível – terá sido decisiva ou, no mínimo, colaborado muito.

Por ora, não deixa de ser significativo que um dos mais promissores sinais dessa mudança parta de um poeta-vocalista, que se move na área da música popular. É também compreensível. O próprio “Poesia é Risco” é obra do mais músico dos poetas brasileiros das gerações anteriores.

Arte e Ciência

na arte a técnica na ciência a mágica
o conceito o mistério
o controle o enigma
o rigor o sonho
a lógica a visão
a matemática a poesia
a análise a síntese
a estatística a metáfora
a medida o paradoxo
a fórmula o acaso
a regra o caos
o sistema o vazio
a solução a incerteza
o método o delírio
o processo a graça
o objeto o sujeito
o experimento o repente
a pesquisa o instinto
a busca o impulso
a descoberta a criação
   
na arte a arte na ciência a ciência

Um senhor letrista

Publicado na “Folha de S.Paulo”(“Mais!”), em 1/12/1996, sob o título “A letra culta (e elegante) de Mr. Words”

Perto do centésimo aniversário de seu nascimento, no próximo dia 6, torna-se oportuno lançar aqui um olhar mais detido, ainda que rápido e algo digressivo, ao trabalho de Ira Gershwin (1896-1983), o letrista e parceiro de George Gershwin (1898-1937), no momento em que já se inicia nos Estados Unidos a série de comemorações que por dois anos celebrarão, até a data do centenário do nascimento de George, a imensa e valiosa herança prematuramente deixada por ele.

Se Cole Porter é sinônimo de sofisticação por tudo que, juntas, sua obra e sua figura, arte e vida, significaram, no plano mais estrito dos versos não seria fácil apontar quem supera quem em engenhosidade: se o autor de “You’re the Top” ou o co-autor de “The Man I Love”, “S’Wonderful”, “A Foggy Day”, “Fascinatin’ Rhythm” e tantos outros clássicos da música americana dos anos 20 aos 40. Ambos estão entre ”i migliori fabbri” da moderna palavra cantada.

Não à toa, Ira era chamado de “Mister Words” (Senhor Palavras), em complementação ao “Mister Music” (Senhor Música), George: é muito raro se encontrar um letrista tão elegante, culto, cônscio e praticante de um sem-número de requintes linguísticos.

Com Porter, Ira partilhou da visão do criar como algo difícil, a requerer esforço e trabalho. Em suas mãos, melodias sofreram um processo palimpséstico, em que várias letras foram escritas até chegar à forma definitiva. Tanto rigor valeu. Em termos de melopeia, a modalidade musical de poesia tão considerada por Ezra Pound, Ira simplesmente cintilou.

Favorecido pela plasticidade do inglês, criou versos de beleza encantatória, para os quais convocou os melhores efeitos aliterativos e paronomásticos. Como: “Music is the magic makes a gloomy day sunshiny”, na abertura de “I Can’t Be Bothered Now”. Ou este, anagramaticamente enriquecido: “I must win some winsome miss”, de “Oh, Lady, Be Good” – aliás, citada por Pound em seus “Cantos Pisanos”.

Munido de um conhecimento largo e um domínio pleno dos artifícios poéticos aplicáveis à música, Ira os empregava sempre para um maior refinamento de suas letras. Criando compostos e trocadilhos, verbalizando substantivos (“Ding dang it!”), empregando metásteses (“nosy cook/cosy nook”), ele as injetava de inventividade.

Por outro lado, em seu expressivo rimário impera e exubera, aqui e ali, a imprevisibilidade (“passion’ll/national”, “Napoli/happily”, “when you/menu”), sobretudo no uso de rimas leoninas, polissilábicas (“free’n’easy/Viennesey”). Neste campo, é raro, em se tratando de uma balada sentimental de grande popularidade, o caso de “Embraceable You”, quase inteiramente composta de rimas de quatro sílabas (entre elas a modelar “glorify love / ‘Encore’ if I love”).

Por tais características, o virtuosístico estilo ira-gershwiniano guarda parentesco com trabalhos de autores que na época exerceram, em sua vertente mais leve, a chamada ”light poetry”, entre os quais destacou-se por exemplo o nome de Ogden Nash. Uma diferenciação essencial, contudo, se impõe: os jogos verbais de Ira foram criados sobre melodias preexistentes, sendo assim a sua uma arte muito mais complexa, qual seja a de sobrepor, conjugando-os, palavras a sons.

Canção é o nome que se dá a essa arte, em que Ira é um mestre, alinhando-se, numa visão aberta, remotamente aos trovadores medievais, em particular os provençais, e aos cancionistas ingleses da era elisabetana; contemporaneamente a Porter e a Lorenz Hart (parceiro de Richard Rodgers); e posteriormente aos Dylans, Caetanos e Princes da música pop/popular de nosso tempo.

Quanto aos últimos e penúltimos: acaso seus trabalhos não seriam “sérios” só porque de entretenimento? Arnold Schoenberg, num texto sobre Gershwin, diz que, “sério ou não, ele é um compositor”. Para o inventor do dodecafonismo, o que caracterizava a seriedade de alguns compositores ditos “sérios” era apenas “uma perfeita falta de humor e de alma”. Gershwin, para ele, foi “um inovador”.

George foi vitimado por um tumor cerebral aos 38 anos, numa das mortes mais trágicas da história da música moderna. O que ele e Ira tinham até então criado, no entanto, bastou para configurar uma das grandes obras do século (obliquamente evocada na letra de “Love Is Here to Stay”, feita pouco depois que George morreu, e na qual Ira, a pretexto de fazer uma canção de amor permanente, parece aludir, homenageando o irmão, ao que os dois haviam construído juntos). O tímido e retraído Ira, que sempre cuidara dos negócios do irmão galante, extrovertido e namorador para que este levasse plenamente sua “vida de artista”, tornou-se então o guardião da sua obra. Ao mesmo tempo, seguiu compondo, com parceiros da estirpe de Kurt Weill, Jerome Kern e Aaron Copland.

A letra aqui apresentada não prima pelo artesanato elaborado predominante em Ira. De todo modo, constitui uma de suas vertentes mais inventivas, uma de suas “canções-invenções” mesmo, como o poeta Augusto de Campos a denominou em “Cole Porter – Canções, Versões” (de Carlos Rennó, Paulicéia, 1991), assinalando que ela poderia ter sido escrita por Oswald de Andrade – e quem sabe cantada por João Gilberto, o bissexto compositor de “Bim-Bom” e ”Hô-ba-la-lá”, eu acrescentaria.

Datada de 1931, “Blah, Blah, Blah” faz (com humor) uma crítica ao tema das canções-temas (de amor) dos filmes de Hollywood. Canção-piada, portanto; em cima dos clichês das ”love songs”. Aqui, na língua e na linguagem do poeta de “amor/humor”, num tributo ao espirituoso letrista americano. Afinal, ele também usou de humor – sutil, inteligente, irresistível – para falar de amor, tendo dito, em “Love Is Sweeping The Country”: “All the sexes/ From Maine to Texas/ Have never known such love before”… (Todos os sexos/ De Maine ao Texas/ Nunca conheceram um amor assim antes).

Blah, Blah, Blah
(George e Ira Gershwin)

I´ve written you a song,
A beautiful routine;
(I hope you like it.)
My technique can´t be wrong:
I learned it from the screen.
(I hope you like it.)
I studied all the rhymes that all the lovers sing;
Then just for you I wrote this little thing.

Blah, blah, blah, blah, moon,
Blah, blah, blah, above;
Blah, blah, blah, blah, croon,
Blah, blah, blah, blah, love.

Tra la la la, merry month of May;
Tra la la la, ‘neath the clouds of gray.

Blah, blah, blah, your hair,
Blah, blah, blah, your eyes;
Blah, blah, blah, blah, care,
Blah, blah, blah, blah, skies.

Tra la la la, tra la la la, cottage for two –
Blah, blah, blah, blah, blah, darling with you!

Blablablá
(versão de Carlos Rennó)

Eu fiz só pra você
Uma canção que é
Tão bonitinha;
A técnica aprendi
Nas músicas que ouvi
Lá na telinha.
As rimas todas das canções eu estudei;
E eis a coisinha linda que eu criei:

Blablablá, canção;
Blablablá, luar;
Blablablá, paixão;
Blablablá, no ar.

Tralalalá, tralalalalá, seu olhar em mim;
Tralalalá, tralalalalá, tudo, tudo enfim.

Blablablá, o céu;
Blablablá, a flor;
Blablablá, o mel;
Blablablá, o amor.

Tralalalá, tralalalalá, casa de sapê;
Blablablablablá, eu e você.

Experiência


de “Respeitem meus Cabelos Brancos”, de Chico César
2002_Chico_Cesar_Respeitem_meus_cabelos__brancos_1024

Era uma luz, um clarão
Era uma luz, um clarãoum insight num blecaute.
Éramos nós sem ação,
Éramos nós sem ação,como quem vai a nocaute.
Era uma revelação
Era uma revelaçãoe era também um segredo;
Era sem explicação,
Era sem explicação,sem palavras e sem medo.

Era uma contemplação
Era uma contemplaçãocomo com lente que aumenta;
Era o espaço em expansão
Era o espaço em expansãoe o tempo em câmara lenta.
Era uma tal comunhão
Era uma tal comunhãocom o um e tudo à solta;
Era uma outra visão
Era uma outra visãodas coisas à nossa volta.

E as coisas eram as coisas:
E as coisas eram as coisas:a folha, a flor e o grão,
O sol no azul e depois as
O sol no azul e depois asestrelas no preto vão.
E as coisas eram as coisas
E as coisas eram as coisascom intensificação,
Que as coisas eram as coisas
Que as coisas eram as coisasporém em ampliação.

Era como se as víssemos,
Era como se as víssemos,entrando nelas então,
Com sentidos agudíssimos
Com sentidos agudíssimosdesvelando seu desvão,
Indo por entre, por dentro,
Indo por entre, por dentro,aprendendo a apreensão
De tudo bem dês do centro,
De tudo bem dês do centro,do fundo, do coração.

Era qual uma lição
Era qual uma liçãodel viejo brujo don Juan;
Uma complexa questão
Uma complexa questãosem nexo qual um koan;
Um signo sem tradução
Um signo sem traduçãono plano léxico-semântico;
Enigma, contradição
Enigma, contradiçãono nível de um campo quântico.

Era qual uma visão
Era qual uma visãode um milagre microscópico,
Do infinito num botão,
Do infinito num botão,e em ritmo caleidoscópico
Ciclos de aniquilação
Ciclos de aniquilaçãoe criação sucessiva,
Átomos em mutação,
Átomos em mutação,cósmica dança de Shiva.

E as coisas ao nosso ver
E as coisas ao nosso verdavam no fundo a impressão
De ser de ser e não-ser
De ser de ser e não-sera sua composição;
Como a onda tão etérea
Como a onda tão etéreae a partícula não tão
Num ponto tal da matéria
Num ponto tal da matériatanto ‘tão quanto não ‘tão.

Até que ponto resistem
Até que ponto resistema lógica e a razão,
Já que nas coisas existem
Já que nas coisas existemcoisas que existem e não?
O que dizer do indizível,
O que dizer do indizível,se é preciso precisão,
Pra quem crê no que é incrível
Pra quem crê no que é incrívelnão devanear em vão?

Era uma vez num verão,
Era uma vez num verão,num dia claro de luz,
Há muito tempo, um tempão,
Há muito tempo, um tempão,ao som das ondas azuis.

E as coisas aquela vez
E as coisas aquela vezeram qual foram e são,
Só que tínhamos os pés
Só que tínhamos os pésum tanto fora do chão.

Gilberto Gil – Todas as Letras

livro_2003_Gilberto_Gil_Todas_as_letras_1024 livro_1996_Gilberto_Gil-Todas_as_Letras_1024

“Gilberto Gil – Todas as Letras” (Companhia das Letras, 1996; 2003; 2022) – Livro com organização (e “colaboração especial”) de Carlos Rennó, trazendo as letras das canções do compositor, com comentários deste sobre a história e a gênese de suas canções. A presente e terceira edição, atualizada e ampliada, conta com mais de 500 letras e cerca de 350 comentários (resultado de, no total, contando as três edições, mais de cem horas de conversas gravadas).

Antes Que Amanheça

Passa da uma, tudo emudeceu.
A lua é um CD de luz no céu
E aqui o meu apê é um deserto.
Agora cada um está na sua.
Você sumiu, você que é de lua,
E eu a queria tanto aqui por perto.

Meu bem, meu doce bem, minha senhora,
Eu poderia declarar agora
Meu grande amor, minha paixão ardente.
Em minha mente insone, só seu nome
Ecoa, só não soa o telefone;
E a sua ausência se faz mais presente.

Passa das duas na cidade nua;
Ao longe carros rugem para a lua
E alguma coisa fica mais distante.
Eu sinto a sua falta no meu quarto;
Será que você volta antes das quatro?
É tudo que eu queria nesse instante.

Quando Eu Fecho Os Olhos

de “Respeitem Meus Cabelos Brancos”, de Chico César

Aí você surgiu na minha frente,
E eu vi o espaço e o tempo em suspensão.
Senti no ar a força diferente
De um momento eterno desde então.

E aqui dentro de mim você demora;
Já tornou-se parte mesmo do meu ser.
E agora, em qualquer parte, a qualquer hora,
Quando eu fecho os olhos, vejo só você.

E cada um de nós é um a sós,
E uma só pessoa somos nós,
Unos num canto, numa voz.

O amor une os amantes em um ímã,
E num enigma claro se traduz;
Extremos se atraem, se aproximam
E se completam como sombra e luz.

E assim viemos, nos assimilando,
Nos assemelhando, a nos absorver.
E agora, não tem onde, não tem quando:
Quando eu fecho os olhos, vejo só você.

E cada um de nós é um a sós,
E uma só pessoa somos nós,
Unos num canto, numa voz.

Escrito nas Estrelas

Você pra mim foi o sol
De uma noite sem fim
Que acendeu o que sou,
Pra renascer tudo em mim.
Agora eu sei muito bem
Que eu nasci só pra ser
O seu parceiro, seu bem, (*)
E só morrer de prazer.

Caso do acaso bem marcado em cartas de tarô,
Meu amor, esse amor de cartas claras sobre a mesa
É assim.
Signo do destino, que surpresa ele nos preparou;
Meu amor, nosso amor estava escrito nas estrelas,
Tava, sim.

Você me deu atenção
E tomou conta de mim.
Por isso, minha intenção
É prosseguir sempre assim.
Pois sem você, meu tesão,
Não sei o que eu vou ser;
Agora preste atenção:
Quero casar com você.

_____________________

Variante:
(*) Sua parceira, seu bem,

SEMPRE-NOVAS

Série realizada entre 1994 e 1995, concebida e produzida por Carlos Rennó, no Museu da Imagem e do Som de São Paulo, sobre as obras dos compositores brasileiros do passado. O projeto apresentou catorze shows, com, entre outros, os seguintes artistas:

Luiz Melodia (cantando Geraldo Pereira);
Jorge Mautner (Wilson Batista);
Itamar Assumpção (Ataulfo Alves);
Edgard Scandurra (João de Barro);
Bocato e Orquestra (Pixinguinha);
Carlos Fernando (Ary Barroso);
Péricles Cavalcanti (Luiz Gonzaga);
Jussara Silveira (Paulo Vanzolini);
Neuza Pinheiro (Dolores Duran);
Skowa (Monsueto Menezes).

ENCONTROS COM O SÉCULO 20

Série de concertos sobre obras de compositores eruditos de vanguarda, com produção artística de Carlos Rennó e curadoria de J. Jota de Moraes, realizada entre 1994 e 1995, no Museu da Imagem e do Som de São Paulo; destacando os seguintes artistas e espetáculos correspondentes:

Clara Sverner – O Piano no Século 20;
Martha Herr – Canção: Uma Panorâmica;
John Boudler e Grupo de Percussão da Unesp – O Século da Percussão;
Paulo Álvares – “Piano: Segunda Metade do Século”;
Luiz Eugênio Afonso – O Clarinete no Século 20.

Sem Preconceito


de “Ficar com você”, de Patrícia Marx
1995_Patricia_Marx_Ficar_com_voce_1024

Uma branquinha que nem sal
Um pretinho tal e qual azeviche (hã hã)
Uma gracinha o casal
Só um cara tão careta mete o pau
Dizendo viche!

Uma boneca de cal
Um boneco de piche
Combina tão legal
Mas tem quem piche
E fale mal

Ele que piche
E ele que se lixe

Sem preconceito (Yeah!)

Quem tem raça e cor
E tem graça também
De que raça que for
Pode ser meu bem
Pode ser confusão
Pode ser meu amor
Porque esse meu coração
Não tem cor

Átimo de Pó


de “Quanta”, de Gilberto Gil

Átimo de Pó

Entre a célula e o céu
O DNA e Deus
O quark e a Via-Láctea
A bactéria e a galáxia

Entre agora e o eon
O íon e Órion
A lua e o magnéton
Entre a estrela e o elétron
Entre o glóbulo e o globo blue

Eu
Um cosmos em mim só
Um átimo de pó
Assim: do yang ao yin

Eu
E o nada, nada não
O vasto, vasto vão
Do espaço até o spin

Do sem-fim além de mim
Ao sem-fim aquém de mim
Den´ de mim

Rapto Rápido


de “Suzana Salles”, de Suzana Salles
1994_Suzana_Salles_Camerati_1024

Você lembra quanto eu te raptei?
(Ei)
Você passava
(Psiu…)
Na calçada
Te achei
Uma graça
E já fui à caça
Você vinha vindo caminhando linda e depressa
Que presa!
Eu previa tudo
Dali de cima do viaduto
Do chá
E você me topou, eu pensei:
– Puxa,
Ganhei!
No ato eu fui muito apto
Achei que era fácil
Chamei logo um táxi
Ao som das buzinas
E foi tão rápido o rapto
Nem deu tempo de dizer não

Mother’s Heart (Coração Materno)

“Say what you want, oh my dearest,”
Said the loving peasant to the one he loved.
“For you I will steal, I will kill,
Though you cause me sorrow and pain, my beloved.
I just want to prove I adore you,
And worship your being, and for you I sigh.
So say what you want, I implore you,
For me it won´t matter to kill or to die.”

And she coyly answered this way:
“If you love me as much as you say,
If you´re madly in love, then depart,
Go and bring to me your mother´s heart.”
But believing in what he was told,
He ran fast as a flash down the road.
And his dear became so stupefied
That she fell on the pathway and cried.

The peasant enters the cabin,
In front of the altar his mother he sees;
Then he, the demon, starts stabbing
The breast of the lady, who prayed on her knees.
He cuts out her heart, that´s bleeding,
The heart that he wanted, all other hearts above,
And shouts with a voice full of pleading:
“Victoria! Victoria! Here´s my proof of love.”

He was coming back running again,
When he tumbled and broke one leg then.
And his poor mother´s heart fell and rolled
Away from his hard hands down the road.
So a voice echoed under the sun:
“Are you hurt, oh my poor darling son?
Come embrace me, darling, I´m still here,
Come embrace me, I´m still yours, my dear.”

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Disse um campônio à sua amada:
“Minha idolatrada, diga o que quer.
Por ti vou matar, vou roubar,
Embora tristezas me causes, mulher.
Provar quero eu que te quero,
Venero teus olhos, teu porte, teu ser.
Mas diga tua ordem, espero,
Por ti não importa matar ou morrer”.

E ela disse ao campônio, a brincar:
“Se é verdade tua louca paixão,
Parte já e pra mim vai buscar
De tua mãe inteiro o coração”.
E a correr o campônio partiu;
Como um raio na estrada sumiu.
E sua amada qual louca ficou,
A chorar na estrada tombou.

Chega à choupana o campônio;
Encontra a mãezinha ajoelhada a rezar.
Rasga-lhe o peito o demônio,
Tombando a velhinha aos pés do altar.
Tira do peito sangrando
Da velha mãezinha o pobre coração,
E volta a correr proclamando:
“Vitória! Vitória! Tem minha paixão”.

Mas em meio da estrada caiu
E na queda uma perna partiu,
E à distância saltou-lhe da mão
Sobre a terra o pobre coração.
Nesse instante uma voz ecoou:
“Magoou-se, pobre filho meu?
Vem buscar-me, filho, aqui estou,
Vem buscar-me que ainda sou teu!”

Letra e música de Vicente Celestino, 1937

The Tragedy of Angelica (O Drama de Angélica)

The tragedy of Angelica – Act One

Here is my canticle
Unsystematical
Which is so typical
When one is not physical
My epic poetry
Rhymed with absurdity
Done with rapidity
And with insanity

I loved Angelica
She was so colorless
Had no salubrity
Only timidity
She was malignant
And her rapacity
Made my esophagus
Laugh very heavily

In a cold evening
In the big theater
We heard the notable
Virtuoso pianist
Outside was Zephyrus
Spoiling the spectacle
Therefore Angelica
Became asthmatical

The tragedy of Angelica – Act Two

I took Angelica
To a good hospital
And found a specialist
With prices moderate
Upon examining
It was so terrible
She had the cholera
And also syphilis

I ran immedi´tely
To buy some medicine
And also strychnine
To help her agony
A stupid pharmacist
Was irresponsible
Confused the formula
Made it illegible

He wasn´t scrupulous
He was ridiculous
Changing the elements
In all recipients
I hurried back speedily
Thirteen kilometers
Riding my bicycle
Faster than lightening

The tragedy of Angelica – Act Three

In a hot afternoon
As she was shivering
I gave Angelica
That drug or medicine
Such an experiment
Brought her no merriment
She drank two chalices
And got paralysis

What a fatality
What a calamity
It was an overdose
To her esophagus
The thing I gave to ´er
Would bring a grave to ´er
She cri-ed terribly
And di-ed instantly

Her dad got serious
Found it mysterious
A man so curious
Became so furious
Got many manias
A miscellanea
Of neurasthenia
And schizophrenia

The tragedy of Angelica – Fourth and Last Act

So died Angelica
And in her tumulus
She was lugubrious
And quite inanimate
After the autopsy
The doctors diagnosed
That my Angelica´s
Ill was inveterate

But in her memory
Made a sarcophagus
Black like the ebony
Near the asparagus
In the green botany
She lives in harmony
In the monotony
Of immortality

And as an epitaph
Poetic dolorous
I wrote an epigraph
Pathetic amorous:
“Here lies Angelica
Who lived in palaces
A girl so glamorous
Died in paralysis”

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O Drama de Angélica – Primeiro Ato

Ouve meu cântico
Quase sem ritmo
Que a voz de um tísico
Magro esquelético
Poesia épica
Em forma esdrúxula
Feita sem métrica
Com rima rápida

Amei Angélica
Mulher anêmica
De cores pálidas
E gestos tímidos
Era maligna
E tinha ímpetos
De fazer cócegas
No meu esôfago

Em noite frígida
Fomos ao lírico
Ouvir o músico
Pianista célebre
Soprava o zéfiro
Ventinho úmido
Então Angélica
Ficou asmática

O Drama de Angélica – Segundo Ato

Fomos ao médico
De muita clínica
Com muita prática
E preço módico
Depois do inquérito
Descobre o clínico
O mal atávico
Mal sifilítico

Mandou-me o célere
Comprar noz vômica
E ácido cítrico
Para o seu fígado
O farmacêutico
Mocinho estúpido
Errou na fórmula
Fez despropósito

Não tendo escrúpulo
Deu-me sem rótulo
Ácido fênico
E ácido prússico
Corri mui lépido
Mais de um quilômetro
Num bonde elétrico
De força múltipla

O Drama de Angélica – Terceiro Ato

O dia cálido
Deixou-me tépido
Achei Angélica
Já toda trêmula
A terapêutica
Dose alopática
Lhe dei em xícara
De ferro ágate

Tomou num fôlego
Triste e bucólica
Esta estrambólica
Droga fatídica
Caiu no esôfago
Deixou-a lívida
Dando-lhe cólica
E morte trágica

O pai de Angélica
Chefe do tráfego
Homem carnívoro
Ficou perplexo
Por ser estrábico
Usava óculos
Um vidro côncavo
Outro convexo

O Drama de Angélica – Quarto e Último Ato

Morreu Angélica
De um modo lúgubre
Moléstia crônica
Levou-a ao túmulo
Foi feita a autópsia
Todos os médicos
Foram unânimes
No diagnóstico

Fiz-lhe um sarcófago
Assaz artístico
Todo de mármore
Da cor do ébano
E sobre o túmulo
Uma estatística
Coisa metódica
Como “Os Lusíadas”

E numa lápide
Paralelepípedo
Pus esse dístico
Terno e simbólico:
“Cá jaz Angélica,
Moça hiperbólica,
Beleza helênica,
Morreu de cólica!”

Música e letra de Alvarenga e M.G. Barreto, 1943