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O poeta da canção Orestes Barbosa

Publicado na “Folha de S.Paulo” (“Mais!”), em 9/5/1993, sob o título “Orestes leva para canção os sinais do moderno”

Orestes Barbosa figura no primeiro time do elenco de compositores que atuaram naqueles anos douradíssimos da MPB, os anos 30 (do século vinte). É certo que suas composições não são tão populares quanto as de contemporâneos seus como Noel Rosa, Ary Barroso, Lamartine Babo. Embora de inspiração popular, seus versos têm um quê de aristocráticos no balanceamento entre um coloquia¬lismo menos comum e o uso de termos mais poéticos. Mesmo assim, bastaria citar uma criação sua para lhe atestar a importância como letrista e lhe assegurar um lugar no Olimpo dos compositores clássicos do Brasil: “Chão de Estrelas”. A canção, uma de suas parcerias com Sílvio Caldas, é das mais populares de todos os tempos entre nós, e das mais belas em imagens ricas de significado.

Na terceira de suas quatro estrofes, o flagrante fotográfico da favela constitui expressão-síntese de um espírito de época e de um momento histórico. Quantas ideias não podem suscitar aqueles versos que comparam os trapos estendi¬dos no varal a bandeiras agitadas, a um festival no morro onde todo dia e (era) feriado nacional?

Orestes Barbosa é um caso especial de letrista que legou uma obra conhecida por seu nome, independentemente de seus parceiros. Nesse sentido, antecedeu Vinícius de Moraes. Como Vinícius, conferiu prestígio à área da música com a literariedade de suas letras, elogiadas por intelectuais e poetas como Manuel Bandeira e Guilherme de Almeida.

Letrista consciente do fazer poético, poetizou a canção de seu tempo com versos da classe da letra-arte. Duas foram suas marcas registradas como elaborador e manipulador dessa linguagem: a inovação vocabular e a invenção imagética. No rebuscamento frásico, ele se alinha a predecessores como Candido das Neves e Catulo da Paixão – letristas lunares, tristes e enamorados como ele. Mas os suplanta de longe na incorporação de signos novos, com os quais urbanizou e modernizou o lirismo da época.

Motor; abajur, tapete, telefone; veneziana; biombo, apartamento, elevador, arranha-céu; reclames, anúncios luminosos; clichê, manchete; manteau, peignoir. Termos e temas tais foram introduzidos por ele, às vezes em remates deslumbrantes, como no caso dos “delírios nervosos/ Dos anúncios luminosos/ Que são a vida a mentir” , de “Arranha-Céu” .

Último romântico de sua época, em sua obra ele de fato reuniu a Zona Norte à Zona Sul do Rio, cantando casos em subúrbios e em bares, cassinos e cabarés da moda; idílios em barracos de morro e romances em elegantes apartamentos da cidade. Em geral suas letras expõem o sentimento, definido em sua “Torturante Ironia”, de quem “ama e não pode amar”. Paixões secretas, casos acabados, desejos insatisfeitos – o que nos confidenciam suas canções-queixas. Porém, mais que um enredo, o que elas destacam são versos sensorialistas, de forte apelo visual, sobres-saindo em alto-relevo:

“E triste escuto o seu riso/ E sem querer fiscalizo/ Tua vida no apogeu/ Ouço o chuveiro em cascata/ A água em fios de prata / É mais feliz do que eu” – canta ele, em “Bailarina”.

Poeta-pintor, “cenógrafo do samba”, na expressão de Mario Lago, Orestes Barbosa foi um incansável caçador de imagens imprevistas e desconcertantes. Visionário de ilusões fugidias, via a amada em situações insólitas, alucinadas: “E quando bebendo, espio/ Uma taça que esvazio/ Vejo uma visão qualquer/ Não distingo bem o vulto / Mas deve ser do meu culto / O vulto dessa mulher” (“A Mulher Que Ficou na Taça”); “Hoje ver o relógio me tortura / Os ponteiros são braços de mulher” (“Nestas Noites de Amor”). Ou, exagerado, jogado aos seus pés, em cenas de amor servil: “Mas eu sufocarei o meu soluço/ Se consen¬tires, boa como és, / Que o meu desejo, como um galgo russo,/ Possa humilde dormir junto a teus pés” (“Galgo Russo”).

Em canções mais felizes, a mulher era mirada e admirada em linhas delicadas: “Oh minha avenca nervosa/ De unhas pintadas de rosa/ E olheiras de tanto amar/ Olheiras de violetas/ Tarjando essas borboletas/ Noturnas do teu olhar”; seus lábios (“de doçuras”), comparados a “tâmaras maduras”, a boca, a “morango do meu jantar”.

Às vezes suas equiparaçõs tomavam feições simbolistas. À Lua, termo recorrente em suas letras, ele aplicou as mais diversas corporificações e simbolizaçõs. De “clichê dourado impresso em papel azul” a “gema do ovo no copo azul do céu”; de “lâmpada acesa da tristeza” a “mentira branca dos espaços”. Além destas – “hóstia de mágoa” e “freira do céu” – que poderiam até figurar em “Litanias dos Quatro Crescentes da Lua”, do genial Jules Laforgue.

Raramente no âmbito da palavra cantada o sentido plástico impregnou tanto o conjunto de uma obra.

Nos anos 60, estiveram na moda as canções psicodélicas, das quais “Voodooo Chile”, de Jimi Hendrix, constitui um caso exemplar de fanopeia pop. Influenciado pelo cinematografismo bíblico, Bob Dylan se tornou mestre nessa modalidade poética. Há pouco tempo, Prince, o mais fecundo e interessante letrista surgido de 80 para cá, nos brindou com essa deliciosa sequência de movimentos contrastantes: “When 2 are in love/ Falling leaves will appear to them like slow motion rain/ When 2 are in love/ The speed of their hips can be faster than a runaway train” .

Na estrofe final de “Chão de Estrelas”, a construção das imagens, passando pelo “salpicar estrelas” e culminando na frase “tu pisavas os astros distraída”, é precisa, perfeita: um dos pontos mais altos e luminosos já atingidos na poesia de canção. Em meu “Cole Porter – Canções, Versões”, depois de lembrar os usos renascentista e barroco de “pisar estrelas”, Augusto de Campos dá vantagem ao verso do “grande Orestes” ao cotejá-lo com outros, similares, escritos por Camões e Gongora. Alguns podem achar exdrúxula a comparação, já que Orestes não foi um poeta “propriamente dito”. Será?

“Muitos músicos não consideram George Gershwin um compositor sério. Mas eles deveriam entender que, sério ou não, ele é um compositor. Há um número de compositores, sérios (como eles acreditam) ou não (como eu sei), que aprenderam a juntar notas. Mas eles são sérios apenas em função de uma perfeita falta de humor e alma” – escreveu Arnold Schoenberg, para quem Gershwin foi um inovador.

Com alma e ténica, Orestes Barbosa foi um poeta da canção, porque mostrou que esta era sua linguagem natural, e porque nela expressou ideias originais, com simplicidade e singeleza. Mas sem levar em conta essas qualidades, não é possível reconhecer o seu valor, nem compreender a natu¬reza da arte da canção popular.

O letrista de música e o poeta de livro

“O poeta Orestes que eu mais aprecio não é o dos versos proclamados admiráveis por Hermes Fontes, Medeiros e Albuquerque e Agripino Grieco, mas o letrista de sambas e canções”, escreveu, com razão, Manuel Bandeira.

Aplaudidos no ambiente intelectualmente provinciano do Rio dos anos 10 e 20, pouco representaram para a literatura os livros de poemas de Orestes Barbosa, que trocou o mundo das Letras pelo das letras – de música – e aíse tornou realmente maiúsculo.

Seus versos são tão melodiosos e cantantes que às vezes tendem a nem ser cantados. Num dos programas da série que comemorou seus 50 anos, ano passado, Caetano Veloso cantava trechos de música de compositores antigos, cujos nomes lhe eram indicados na hora pelo jornalista Matinas Suzuki. Quando este disse “Orestes Barbosa”, Caetano não cantou, mas declamou a estrofe inicial de “Arranha-Céu”.

O fato, também, é que seus versos chegam a superar as melodias. Sem o concurso delas, eles perderiam muito de sua função e de seu poder de fixação, mas com certeza foram as letras, não as músicas, que conduziram o processo de composição das canções. Às vezes, as melodias parecem servir de moldura para os quadros que os versos pintam. Dois fatores concorrem para isso.

Um: as letras de Orestes são dispostas em formas fixas, definidas por quadras ou sextilhas (seguindo sempre um esquema de rimas AABCCB) divididas em decassílabos ou redondilhas maiores.

Dois: seus principais parceiros – e intérpretes – eram mais cantores que compositores: Sílvio Caldas e Francisco Alves.

Com o “Caboclinho Querido” (um dos inspiradores do verso “Eu vi muitos cabelos brancos na fronte do artista”, de “Força Estranha”, de Caetano), Orestes consolidou o gênero da seresta.

Mas ele trabalhou também com vários outros parceiros, alguns deles compositores de primeira linha. Como Ataulfo Alves e Wilson Batista, em sambas tematizando a negritude – “O Negro e o Café” e “Abolição”, respectivamente. E Custódio Mesquita, “darling” dos músicos, com quem fez “Flauta, Cavaquinho e Violão” (samba-choro que foi sucesso com Aracy de Almeida), “Gato Escondido” (marcha, com as Irmãs Pagãs) e “Nestas Horas de Amor” (valsa).

Com Noel Rosa, criou “Positivismo”, onde prevalece a veia irônica do poeta de Vila Isabel, que gravou o samba e, ao que tudo indica, influenciou também a feitura de “Caixa Econômica”, o mais noelino e bem-humorado dos sambas de Orestes, composto com Nássara e gravado por Luiz Barbosa.

Outros parceiros: Benedito La¬cerda (“Manchete de Estrelas”), Vicente Celestino (“Altar de La¬ma”), J.Tomas (“Verde e Amarelo”), Oswaldo Santiago (“Bangalô”), Newton Teixeira (“Tens Razão”), Valzinho (“Óculos Escuros” e “Imagens”).

Na década de 70, estas duas últimas músicas foram magnificamente recriadas, a primeira por Paulinho da Viola, a segunda por Jards Macalé – numa notável in-terpretação registrada no LP “Aprender a Nadar” (1974), momento excepcional de sua carreira, quando lançou com Waly Salomão a onda da “morbeza romântica”, que alguma coisa deveu a Orestes.

Os Mutantes já tinham realizado uma versão irreverente de “Chão de Estrelas”, em 1970. E Caetano a havia reverenciado, citando-a em “Como Dois e Dois” (“A mesma porta sem trinco/ O mesmo teto/ E a mesma lua a furar nosso zinco”). Anos mais tarde, Augus¬to de Campos reutilizaria os termos “barraco”, “trinco” e “zinco” tirados da canção, ao verter um poema do livro “Hugh Selwyn Mauberley”, de Ezra Pound. A tradução acabou sendo musicalizada com muita sensibilidade por Passoca, em 1984 – três anos depois de Arrigo Barnabé ter entoado o trecho inicial de “Arranha-Céu”, em “Diversões Eletrônicas” (do histórico disco “Clara Crocodilo”).

Ajoelha e Reza

E aí, ele disse pra mim
Como vai?
E aí, eu me disse taí
Minha chance
Respondi
Tudo bem e você onde vai?
Foi daí
Que saímos dali prum romance

E de repente na nossa história
De amor e de glória
Ele vem e me agarra,
eu me amarro
ele ajoelha e reza
E então me confessa

Que tá na maior paixão
e nunca esteve assim
Nem sente seus pés no chão
E até se realça por causa de mim

E assim, o que ele me faz
Pode ser
Pode sim, pode até parecer uma cena
Mas pra mim, é uma cena real
Radical!
Tão real, que parece igual no cinema

E nesse filme de amor e ventura
Verdade e mentira
um pornô com ternura
Ele vem e se atira,
eu morro
E depois me comovo
quando me diz de novo

Que tá na maior paixão
e nunca esteve assim
Nem sente seus pés no chão
E até se realça por causa de mim

E assim, o que ele me faz
Pode ser
Pode sim, pode até parecer uma cena
Mas pra mim, é uma cena real
Radical!
Tão real, que parece igual no cinema

E de repente na nossa história
De amor e de glória
Ele vem e me agarra,
eu me amarro
ele ajoelha e reza
E então me confessa

Que tá na maior paixão
e nunca esteve assim
Nem sente seus pés no chão
E até se realça por causa de mim
Tá na maior paixão
e nunca esteve assim
Nem sente seus pés no chão
E até se realça por causa de mim
Tá na maior paixão
e nunca esteve assim
Nem sente seus pés no chão
E até se realça por causa de mim

Tá na maior paixão

Roupa

Tua veste é como o penacho
Que reveste o pássaro macho

Tua roupa é tua plumagem
E plumagem pouca é bobagem

Por isso, meu amor
Te produz
seduz
reluz
na rotina do cotidiano
na retina dos dias medianos

Pois a roupa é tua imagem
Tua linhagem
Tua linguagem
A roupa é tua mensagem

Pois a roupa fala
não cala
E tudo que se pensa e diz
Na roupa se diz e pensa
Por isso é que se dispensa
Cuidado com a aparência

Pois as aparências não enganam
não empanam
As aparências emanam
o que é real e humano

E em cada peça de baixo
E em cada peça de cima
De cima abaixo
De baixo acima
Dos pés à cabeça
Da cabeça aos pés
A roupa é o que te expressa
A roupa é o que és

Por isso, meu amor
Instaura o teu modelo e tua moda
E a aura do que é belo em tua roda

Pois a roupa
é tua outra
pele

Pele
e embalagem da pele
a roupa
é embalagem e conteúdo
Embalagem da beleza
embalagem de tudo

Por isso, não guarda, não poupa
Investe no teu guarda-roupa
Investe no que te veste
Investe no que te despe
Pois ainda mais que vestir
O que a roupa faz é despir

A roupa não cobre
Descobre
A roupa não vela
Revela
A roupa te mostra
De todos os ângulos
De frente, de costas
Nos flancos

Por isso, te desinibe
Pois a roupa te conceitua
A roupa te exibe
A roupa te deixa nua

Mille Baci


de “Rita Lee”, de Rita Lee

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Amami se vuoi,
Tienimi se puoi
Braccia, labbra, faccia, mani, piedi.
Sii benvenuto;
Tutto, baby, tutto,
Baby, ti do tutto se lo chiedi.

Ma dammi dammi dammi mille baci
E cento e mille e cento e mille e cento.
Cosi tra mille baci ed abbracci,
Godiamici la vita e il momento.

Vieni per saziarmi,
Per accarezzarmi
I peli e la pelle più segreta.
Tu, amore mio,
Mi sembri un Dio;
Fammi sentire come il poeta.

Ma dammi dammi dammi mille baci
E cento e mille e cento e mille e cento.
Cosi tra mille baci ed abbracci,
Godiamoci la vita e il momento.

Nossos Momentos


de “Tetê Espíndola”, de Tetê Espíndola

Sozinhos e juntos
Na dor e no prazer,
Nas fases difíceis
E nas fáceis de viver,
Tivemos, dia a dia,
Tristezas e alegrias,
Belezas, fantasias
E tantas outras coisas em comum.

Em busca dos sonhos
De felicidade e dois,
Por vezes estranhos
À realidade a dois,
Nós temos, mais que um dia,
Momentos de poesia
Tão claros e tão raros,
Que neles nós vivemos algo incomum.

Neles tudo mais para;
Nada mais se compara
Ao par, ao casal
Que somos nós dois,
Sem par, sem igual,
Nossos momentos não têm antes nem depois.

Sozinhos e juntos
Na dor e no prazer,
Nas fases difíceis
E nas fáceis de viver,
Tenhamos outras vezes
Momentos como esses,
Instantes transcendentes,
Instantes em que somos como dois em um.

Joyce em John Lennon

Publicado na “Folha de S.Paulo” (“Ilustrada”), em 5/10/1992, sob o título “Bob Dylan levou Lennon à letra-arte”

A presença ostensiva da expres¬são “I love you” nos refrões de “Love Me Do” e “P.S. I Love You”, de Paul McCartney, é somente um dos indicadores do lugar-comum poético dessas canções. Em suas letras, contudo, colocam-se vários outros que também John Lennon escreveria apenas “profissionalmente”, sem ambições artísticas, no período inicial dos Beatles. Um fato, po¬rém, mudaria radicalmente a vi-são de Lennon sobre a importân¬cia do texto na música: o reconhe¬cimento da qualidade poética das canções de Bob Dylan.

Dylan: desde Cole Porter e Ira Gershwin a poesia popular canta¬da de língua inglesa não alçava voos tão altos, de imaginação e inventividade. À época, Lennon, popstar intelectualizado, já tinha escrito dois livros, num deles incursionando ludicamente pela linguagem chamada de invenção – “Um Atrapalho no Trabalho” (na tra¬dução de Paulo Leminsky). Para ele, porém, a palavra só podia adquirir expressão estética em li¬teratura, não em música pop. Com Dylan, encarnação supermoderna do bardo, gênio indiscu¬tível, Lennon descobriu a letra-ar¬te. E percebeu que uma canção, além de voar, poderia transmitir belezas e verdades (especialmente as próprias) através de sua letra.

Mas, ao contrário do metafóri¬co, profuso e às vezes obscuro Dylan, Lennon definiu-se pelo de¬sign mais nítido, a expressão cla¬ra, direta e objetiva. Fez mais sucesso por isso, mas nem por isso foi mais simples. Sua “enga¬nosa simplicidade” (Glauco Mattoso) pode ser atestada por um exame cuidadoso de, por exem¬plo, “Julia” (atentar para suas sutilezas estruturais e suas ambi¬guidades), em homenagem a sua mãe, mas também em referência a sua mulher, Yoko (“ocean¬child”). Escrevendo na primeira pessoa, Lennon sempre falou dele mesmo em suas letras, de suas experiências. Do drama existen¬cial de “Help” às memórias de “In My Life” e “Strawberry Fields Forever”. Do psicodelismo pioneiro de “Tomorrow Never Knows” até os hinos contracultu¬rais “All You Need Is Love” (antibélico) e “Revolution”.

“A Day In the Life” pode ser considerada, se se pensar em “Ulisses”, a mais joyceana de suas letras. Mas onde ele mais explicita suas referências literá¬rias, radicalizando no experimen¬talismo (pelo surrealismo e pelo uso das palavras-va¬lise inventadas por Lewis Car¬roll – e radicalizadas em Joyce), é em “I Am the Walrus”. Não parou por aí. Em “Across the Universe” traçou uma bela sequência de “lances de imagens sobre o intelecto” (fanopeia), de inspiração cósmico-religiosa, ao mesmo tempo em que refletiu sobre o ato poético-criativo. E em “Come Together”, uma livre-as¬sociação imagética que beira a incomunicabilidade, e onde o sen¬tido importa menos que o som, salvo no refrão, uma ce1ebração ao orgasmo simultâneo.

Paul não foi tão longe, é óbvio – seu negócio era mais música mesmo –, mas deu sua contribuição, especialmente como contador de histórias, na terceira pessoa. Basta dizer que foram dele a ideia e o desenvolvimento da maior parte de “Eleanor Rigby” e “She’s Leaving Home”, para¬digmática da adolescente que foge de casa. E que ele fez sozinho “The Fool On the Hill”, a lindís¬sima “For No One”, “Hey Ju¬de” e “A Little Help From My Friends”(que melodias!).

As palavras das canções de Lennon e McCartney representa¬ram o contraponto verbal à revo¬lução que os Beatles detonaram nos planos musical, comportamental e mental de sua geração. É certo que mesmo as melhores letras do grupo não exibiram a engenhosa sofisticação das que Cole e Ira fizeram nos anos 30: seria uma repetição. Mas enrique¬ceram demais o repertório geral com temas, formas e imagens até então inéditos. E serviram para colocar Lennon, ao lado de Dylan e também de Jim Morrison, entre os maiores músicos-poetas dos 60 e de todos os tempos.

Meu ABC

Hello, my dear
No que posso servir?
Pode me usufruir
So nice to see you here
Qu´est-ce que vous fait plaisir?

Que tal ma belle
Una luna de miel
Na nossa louca Babel?
Endiabrados no céu
Like two angels from hell

Com você, meu ABC
Je suis enchanté con te
Con te, à coté
Em turnê por você

Mon amour
Baixa a luz do abajur
E beija a espada de Artur
Espalha em mim seu glamour
Minha belle de jour

Pra ser seu rei
Me escravizarei
So, lady, stay, lady, lay
Adesso io direi
Baby, I just want to play

Com você, meu ABC
Je suis enchanté con te, con te à coté
Em turnê por você

Niña
Que canto em la canción
Seja minha
Non, non, non me dire non
Yo te quiero
Con obscena obceción
El dia entero
On and on and on and on

O Anticlichê

Eu corro por dentro, entro pela terra,
Enquanto os outros correm para o mar.
Na contracorrente, saio lá da serra
No rumo do Paraná,
E paro por lá.

Por isso mesmo sei que vou sozinho;
Eu dou as costas ao lugar-comum,
E vou em frente sempre num caminho,
Que não é igual a nenhum.
Assim eu sou um.

Podem me chamar
Marginal,
Porque não corro para o mar,
Contra a lei geral.
Nado contra a maré,
Na contramão vou pro que der e vier.
Sou um antigo anti-heroi, um anticlichê,
Eu, o Tietê, eu, o Tietê,
O anticlichê, eu, o Tietê.

Na serra eu nasço, em São Paulo eu morro.
Depois renasço e vou até o fim.
Por onde eu passo e pra onde eu corro,
Jamais se viu um rio assim;
Eu falo por mim.

Mas assim mesmo sei que estou à margem
De vilas e de vias marginais,
De vales de canaviais, à margem
De zonas e parques rurais
E industriais.

Cole Porter – Canções, Versões

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“Cole Porter – Canções, Versões” (Paulicéia, 1991) – Livro de Carlos Rennó, contendo textos e versões para o português de sua autoria, a partir de canções do compositor. Com textos de Augusto de Campos, Caetano Veloso e Cláudio Leal Ferreira.

Engenho e arte nas letras de um gênio

Publicado na“Folha de S.Paulo” em 12/4/1989, sob o título “Letras reúnem o clássico e o pop”

Na história da música popular desempenha um papel fundamental a produção dos principais compositores de canções norte-americanos dos anos 30 e 40, como George e Ira Gershwin, Rodgers e Hart, Irving Berlin, Cole Porter, Johnny Mercer. São eles os Bachs, os Beethovens, os Mozarts, os clássicos autores dos grandes clássicos do gênero. Nesta constelação, um lugar especial cabe a Cole Porter.

Graças ao seu estilo e à sua técnica de ajustar letras elaboradas a melodias relativamente (embora nem sempre) simples, Porter elevou o nível do texto da canção popular a uma alta potência poética, alcançando ele próprio como letrista um grau de sofisticada criatividade em momentos comparável mesmo ao de poetas da área erudita.

Quem quiser provar isso na prática, pode tentar verter algumas canções suas que impõem desafios que só poemas eruditos impõem. Nelas, sem prejuízo da naturalidade, Porter usa recursos que as tornam ainda mais agradáveis à medida que reouvidas: rimas imprevistas, internas, polifônicas; construções ele¬gantes, trocadilhos, enumerações, ambiguidades, paronomásias requintadas e imagens ricas, em temas amorosos tratados com charme e inteligência.

Da supermoderna obra-prima pop “You’re the Top” (uma das maiores – 135 versos mais a introdução e uma estrofe paródica – e melhores letras já escritas) a uma certa “It Was Written In The Stars”, suas mais de 800 canções configuram uma produção marcada mais pela personalidade que pela pessoalidade (tudo foi feito para trilhas da Broadway e Hollywood) e uma obra que excede em quantidade e qualidade. Cole Porter não tem fim.

Bem-bom


de “Eduardo Gudin e Vânia Bastos”, de Eduardo Gudin e Vânia Bastos

É
Só tem que ser é com você
Porque senão não tem porquê
Porque seu tom é tão pro meu
E eu sou mais você e eu

Vem me cantar, me tentar
Vem me tocar, me pegar
Como uma canção de amor
Que nasce agora no ar
Com o frescor da brisa, o calor
A cor do teu olhar
Que me alisa a pele em plena flor
Pra te dar
Meu amor, meu bem
Vem mais pra cá, está demais
Mais vai ficar pra lá de bom
Em corpo, em cor, em som de vai
E vem que tem, cai no bem-bom

Vem me cantar, me tentar
Vem me tocar, me pegar
Com uma canção de amor
Que nasce agora no ar
Com o frescor da brisa, o calor
A cor do teu olhar
Que me alisa a pele em plena flor
Pra te dar
Meu amor, meu bem

Vem me amar, me chamar
Vem me pegar, me levar
A uma festa a dois
É só o que resta pra nós
Tem tanta gente, a gente nem vê
A hora de ficar
Eu e você, nós dois, como tem que ser
Sem pensar
Em depois, enfim

Só mesmo a gente noite adentro
Dentro e fora, agora sim
O nosso amor vai ser assim
Eu pra você, você pra mim

Flecha

Ela surgiu, total

Foi tão sutil, brutal

O que eu senti

Ela me viu – parou

Depois seguiu – passou

Não esqueci

Uma beleza o que faz

De vê-la se deseja mais

Ela sumiu dali

E no vazio me vi

E não foi só

Ela ficou em mim

Mas só ficou assim

Eu fiquei só

Meninas, tinha até demais

Ela mais linda que as demais

E a sua beleza dança

Na minha cabeça dança

Em vão

Em vão o relance me atravessa

Lança sua flecha

(Em meu coração)

Mas vê-la uma vez

Não é nenhuma vez

Uma, jamais

Desejo tê-la dez

Vezes dez vezes dez

Vezes e mais

De frente, flancos e de trás

De qualquer ângulo apraz

A Minha Lógica

Com
Aqueles bons e velhos dons
De uns joões e outros johns
Juntei palavra, cor e som
Com a cabeça e o coração
E certamente com tesão
Armei no ar uma canção
Harmoniosa de artesão
Da arte que tem bossa

Mas você
Com desdém
Vem com essa prosa
– Num-sei-quê,
Num-sei-quem –
Que já é famosa
Ora, ora, ora
Pouco faz
E desfaz
Muito de quem faz e elabora

É
Que a sua ótica não vê
A minha lógica, nem crê
Na onda mágica, o bom
Da matemática do som
De uma música no ar
Arquitetura a flutuar
No ato puro de tocar
Samba, canção ou rock

Se você
É capaz
Cante, dance, toque
Mas não dê
Nunca mais
Um tão tonto toque
Se o seu palpite
Infeliz
Me maldiz
Me diz bem quão chão é o seu limite

Sim
Que a mim é dado e cabe a mim
O mais sonoro e claro sim
À arte, à vida, à criação
Tudo que eu canto com paixão
E tal clareza que transluz
Com vida própria e traduz
A própria vida e traz à luz
Seus sonhos escondidos

Pra você
Me ouvir
Meu rapaz, se deixe
Envolver
Seduzir
Ou em paz me deixe
Antes não evite
Venha cá
Vamos lá
Ao deleite, aceite o meu convite

Pois
Acima dessas discussões
Só a beleza das canções
É o que ficará depois
De tanto quanto se compôs
Brilhando como essa voz
Voando e ecoando em nós
Em pleno espaçotempo

Nós


de “Eu sou 300”, de Sérgio Britto

2006_Sergio_Britto_Eu_sou_300_1024

Nos miramos nos admiramos
Nos sentimos nos consentimos
Nos tentamos nos contentamos
Nos captamos nos capturamos
Nos rendemos nos desprendemos
Nos colamos nos descolamos
Nos levamos nos revelamos
Nos abrimos nos descobrimos
Nos deitamos nos deleitamos
Nos gostamos nos degustamos
Nos provamos nos aprovamos
Nos comemos nos comovemos
Nos amamos nos amarramos
Nos lançamos nos enlaçamos
Nos cedemos nos excedemos
Nos prendemos nos surpreendemos

Coração Cosmonauta

O Marinheiro da Vanguarda, o neo-Navegador
O Viajante Pioneiro, o Desafiador
Lá no Profundo Espaço fundo vai
Pelo Universo Mundo sai
Com o Espírito da Curiosidade
E do Descobrimento e da Indagação
Da A-Ventura e da Investigação
Numa Procura, numa Empresa, na missão
Pelo Progresso, pela Paz e a União

O Magalhães Colombo Ulisses, o Empreendedor
O Mensageiro, o Visitante, o Analisador
O Bandeirante, o Desbravador
O Viking, o Explorador
Ante Horizontes Novos e a Oportunidade
De cada nave, sonda, ônibus, robô
De cada jipe, trem, foguete ou o que for
Que lhe desvende e lhe deslinde o lindo véu
De algum mistério do sidéreo, etéreo céu

Meu cosmonauta coração, na casca dessa noz
Eis a questão, o nó dos nós: o que é que somos nós?
Infinitésima espécie que
Reflete a imensidão em si
E o infinito, o grão da grandiosidade?
E além de nós, dos cafundós, o que é que há?
E além do fundo fim do mundo, além de lá?
E aquém do berço do universo, havia o quê?
E além de um verso – um multiverso? – o que há de haver?

1985 / 2013

So Cool

“Suspeito” de Arrigo Barnabé

You´re
So soft
Baby, you´re so cool
Sure
You´re not
Made for such a fool

Oh! The way you walk
The way you talk
The way you smile
Oh! The way you look
I like your look
I like your style

I get so impressed by how you dress
But more impressed when you undress
You´ll always be
One of the best to me

You´re
So soft
Baby, you´re so cool
Sure
You´re not
Made for such a fool

Oh! The way you flirt
The way you hurt
The way you please
Oh! The way you act
And you attract
It is so easy

All I need is such a sweet and fresh
And lovely touch as of your flesh
As you can see
You mean to much to me

So Cool

You´re
So soft
Baby, you´re so cool
Sure
You´re not
Made for such a fool

Oh! The way you walk
The way you talk
The way you smile
Oh! The way you look
I like your look
I like your style

I get so impressed by how you dress
But more impressed when you undress
You´ll always be
One of the best to me

You´re
So soft
Baby, you´re so cool
Sure
You´re not
Made for such a fool

Oh! The way you flirt
The way you hurt
The way you please
Oh! The way you act
And you attract
It is so easy

All I need is such a sweet and fresh
And lovely touch as of your flesh
As you can see
You mean to much to me

Ronda 2


de “Cidade Oculta”, de Arrigo Barnabé

Na noite alta
Na noite alta os ratos rondam,
E no asfalto
E no asfalto os carros roncam.

Bares e clubes luzem.
Bares e clubes luzem. Sinais.
Gangues de punks lúmpens
Gangues de punks lúmpens demais.
E prostitutas passam
E prostitutas passam ao léu.
E viaturas surgem
E viaturas surgem no breu.

Quando nas casas
Quando nas casas os justos dormem,
Quando não matam,
Quando não matam, os brutos morrem.

Os seus olhos
Os seus olhos filtram letras,
Luminosos,
Luminosos, faroletes
Luminosos, faroletes e holofotes;
Nos seus olhos
Nos seus olhos se reflete
Todo o lume
Todo o lume do negrume
Todo o lume do negrume dessa noite.

Cena de bangue-bangue.
Cena de bangue-bangue. Faróis.
Tiras, bandidos, anti-
Tiras, bandidos, anti- -heróis.
Tiros e gritos: cante
Tiros e gritos: cante mortal.
Cena de sangue, lance
Cena de sangue, lance normal.

E pelas ruas,
E pelas ruas, peruas rugem;
Se abrem alas
Se abrem alas e as balas zunem.

De repente
De repente você treme,
E a sirene
E a sirene passa entre
E a sirene passa entre automóveis;
Em suspense
Em suspense você pensa:
O que pode
O que pode com o ódio
O que pode com o ódio desses homens?

Essa Tarde

Essa tarde no alarde do seu lusco-fusco
É a tela mais bela na luz do crepúsculo
Tantas nuvens reluzem num grande lençol
Desmanchando e manchando o azul dos espaços
A terra emudeceu
Diante das cores no céu

O que vemos agora é mesmo um milagre
É a glória fugaz e capaz de uma lágrima
De beleza o olho vermelho do sol
Incendeia tua pele, cabelos e pelos
O céu, a terra, o chão
A nós e à nossa paixão