Preguiça qualitativamente produtiva

Publicado na “Folha de S.Paulo” (“Ilustrada Especial”), em 17/8/2008, sob o título “´Preguiça criadora´ gerou o mais original compositor brasileiro”

O que chama a atenção na obra de Dorival Caymmi, se comparada às de outros compositores brasileiros, é a sua relativamente pequena produção e o seu grande percentual de “standards”, isto é: de canções-modelo. Nesse aspecto, nem nosso maior compositor, Tom Jobim, o superou. À luz da informação estética, seria o mais original, pois o menos redundante.

Qualidade muita, quantidade pouca. Foram pouco mais de cem canções em cerca de 60 anos de atividade como compositor. Pudera. Uma (“João Valentão”) levou nove para ser acabada, outra (“Saudade da Bahia”) passou 12 na gaveta. Perfeccionista sem obsessão e sem esforço, Caymmi compunha “devagarinho” e “aos pedacinhos”, como chegou a dizer.

A esse método correspondeu uma atitude de descompromisso com o mercado e comprometimento só com o público. Caymmi raramente compôs por encomenda e sempre cantou menos pelas circunstanciais avaliações comerciais de sua arte do que pela sua disposição. Quis e ganhou o bastante para poder curtir o “dolce far niente” de uma “vida de artista” (ou o ócio do ofício…).

Aliás, foi para tirá-lo da vadiagem que seu pai, o funcionário público Durval, neto de italiano, lhe arranjou seu primeiro emprego no jornal “O Imparcial”, de Salvador, como auxiliar de escritório, aos 16. Mas a convivência com a música começava já em casa – onde o pai tocava piano, violão e bandolim, e a mãe cantava – e prosseguia na rua, nos festejos do povo baiano. Desse modo, da primeira composição, uma toada sentimental intitulada “No Sertão”, de 1930, às primeiras apresentações em rádio, em 1935, foi um passo. O salto ele daria em 1939, já no Rio e com uma coleção de canções sobre a Bahia na bagagem.

Com a sua “O que É que a Baiana Tem?” na voz de Carmen Miranda, Caymmi entrou em cena para não mais sair. A associação, se foi determinante para a projeção nacional dele, também o foi para a construção da imagem internacional dela – Caymmi lhe ensinou os trejeitos que se tornaram inseparáveis da sua interpretação. Em 40, saía o seu primeiro disco, com “O que É que a Baiana Tem?” e “A Preta do Acarajé”, em duo com Carmen.

Data do mesmo ano, e com outra cantora, Stella Maris, o início de uma parceria que duraria de fato até que a morte os separasse, e da qual resultaria a outra parte da sua herança musical: os filhos Nana, Dori e Danilo Caymmi.

Costuma-se dividir a obra de Caymmi em duas fases/faces principais. Na primeira, tendo como referente uma Bahia pré-industrial e idealizada, sobressaem as canções praieiras – obras-primas como “O Mar” e “O Vento”. A segunda, “carioca” e urbana, põe em relevo os sambas-canções em cujas harmonias se viu um prenúncio da bossa nova – jóias tipo “Marina”, “Só Louco”, “Nem Eu” etc.

Há quem acrescente uma terceira, definida pelo predomínio de canções com forte acento afro-religioso. É quando ele intensifica sua relação com o candomblé, assumindo obrigações sócio-administrativas como Obá de Xangô do terreiro Axé Ôpô Afonjá, em Salvador, em 1969. Ele e seus grandes amigos Jorge Amado e Carybé.

Na verdade, todas constituem expressões distintas de uma mesma e sempre presente baianidade. Até a chamada fase carioca. Nesta, os casos – e descasos – amorosos são tratados com uma doçura que quase não se nota num compositor do Rio. Quanto às dissonâncias harmônicas, elas já estavam lá, no violão do período marinho-soteropolitano; à época, diziam que ele tocava errado: “Mas eu sempre achei que havia beleza fora do acorde perfeito”.

Caymmi viveu em Salvador só até os 24 anos, mas, como disse Vinicius de Moraes, “é difícil encontrar alguém mais baianamente dengoso que ele”. De fato, o Rio, aonde chegou em 1938, foi a sua principal sede. No Rio, Caymmi fez as mais diversas amizades nos meios artístico e jornalístico. Da esquerda à direita; dos padrinhos de casamento Jorge Amado, que o chamava de irmão caçula, e Samuel Wainer, que o chamou para uma coluna sobre rádio no “Última Hora”, nos anos 50, a Carlos Lacerda. De Rubem Braga a Carlinhos Guinle, com quem, segundo outro amigo, Fernando Lobo, a parceria funcionava nessa base: Dorival entrava com a música, e Carlinhos, com o uísque…

Caymmi foi gravado pelos maiores intérpretes da MPB, de Elis Regina e Gal, que lhe dedicou um álbum em 1976; de João Gilberto, que recriou três músicas suas em plena bossa nova, a Gil e Caetano. Nenhuma dessas gravações, contudo, se compara ao próprio Caymmi se interpretando. Ele próprio era convencido disso. Não porque fosse vaidoso – coisa que ele, naturalmente, era. Mas porque tinha plena consciência de si.

Sua famosa e, segundo Amado, “criadora” preguiça inspirou a divulgação de histórias folclóricas e a criação de anedotas gozadas. Durante um tempo, se contou muito esta: existiriam três ritmos na Bahia: o devagar, o muito devagar e o Caymmi. Eu mesmo tive uma prova de sua lentidão.

Em 1994, eu coordenava a área de música do Museu da Imagem e do Som de SP e quis trazê-lo para um depoimento. Conversávamos muito, toda semana, por telefone, mas na hora de decidir vir, ele sempre dava uma desculpa. Numa dessas, chegou a me propor que eu ligasse para ele num dia para marcarmos então o dia em que eu ligaria de novo para marcarmos enfim o dia em que viria…

Não Dá Pé


de “Vida Nova”, de Edu Leal.

2011_Edu_Leal_Vida_Nova_1024

Aqui, sem jacarandá,
Sem cambuci e sem jerivá,
Não dá, não dá;
Sem pau-marfim,
Sem resedá
E sem ipê,
Em SP,
Não dá, não dá,
Não dá pé!
Não dá pé!

Com tipuana e com pitangueira,
Aí dá pé, aí dá pé;
Sibipiruna, jabuticabeira,
Aí dá pé;
Com alfeneiro e com quaresmeira,
Aí dá pé, aí dá pé;
Pau-ferro, ipê-roxo, ipê-amarelo,
Aí dá pé.

Excesso
De cinza e escassez
De verde.
Extensas plantações
De prédios
E quarteirões
Inteiros
Sem uma árvore,
Ali em Santa Cecília e
Lá no Brás, lá na Sé.
Nenhum pé!
E só no mês de abril
Três mil
Já foram para o chão.
Ergueram mais torres altas.
Tal verticalização
Não dá pé!

Porém, com jacarandá,
Com cambuci e com jerivá,
Dá, sim, dá, sim;
Com pau-marfim,
Com resedá
E com ipê,
Em SP,
Dá, sim, dá, sim,
Sim, dá pé!
Assim, dá pé!

Aqui, sem jacarandá,
Sem cambuci e sem jerivá,
Não dá, não dá;
Sem pau-marfim,
Sem resedá
E sem ipê,
Em SP,
Não dá, não dá,
Não dá pé!

Show de Estrelas


de “Feito pra Acabar”, de Marcelo Jeneci

2010_Marcelo_Jeneci_Feito_pra_acabar_1024

Para Tomio Kikuchi

Era uma chuva, era um show de estrelas;
Chovia estrelas a granéu. (*)
Eram milhares de estrelas, uma chuva delas,
Caindo lá no chão do céu.

E
Diante da visão do firmamento,
Um pensamento vem ao coração:
De
Que cada um de nós não é senão uma estrela,
A brilhar no céu do chão.

Todos nós,
A brilhar, a brilhar,
Somos como luas e sóis
A girar, a girar…

E a chuva não cessava a sucessão
De pingos lá no chão do céu.
Era uma chuva de granizo de estrela em grão;
Chovia estrelas a granel.

E
Diante da visão do firmamento,
Na mente um sentimento se produz:
De
Que cada um de nós não é senão uma estrela,
Cada um, um ser de luz.

Todos nós,
A brilhar, a brilhar,
Somos sete bilhões de faróis,
A girar, a girar,
Tal como luas e sóis
A brilhar, a brilhar,
Como sete bilhões de faróis,
Todos nós, todos nós.

________________________

Variante:

(*) Chovia estrela pra dedéu.

O Pássaro Pênsil


de “O Pássaro Pênsil”, de Flávio Henrique

2008_Flavio_Henrique_Passaro_Pensil_1024

Parar
Pra não pensar,
Pra compensar,
Pra valer.
Parar
Pra não pirar,
Pra respirar,
Pra viver.
Parar
Pra não se atar,
Pra não se ater
Só ao ter.
Parar
Para se ater
Só ao ser.

Parar
Sem o fazer,
Sem afazer,
Sem dever.
Sem ver
Mais que horas são,
Mas que oração
Se dizer.
Orar
De cor, ação
De coração
E saber
Entrar-
Se, concentrar-
Se no ser.

Pense o espaço e o pássaro lá,
Pênsil, parado no ar;
Pense-o pairando, parando pra continuar…

Parar
Pra se calar,
Pra se falar,
Sem dizer.
Parar
Para zerar,
Para rezar,
Bendizer.
Parar
Pra desplugar-
Se desligar-
Se do ter.
Parar
Pra religar-
Se no ser.

Pense o espaço e o pássaro lá,
Pênsil, parado no ar;
Pense-o pairando, parando pra continuar…

PAIS E FILHOS

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show_SESC_20070213_Beto_Gabriel_e_Ian_Guedes_1024

show_SESC_20070601_Wandi_Doratiotto_e_Danilo_Moraes_Mario_Manga_e_Mariana_Aydar_1024

show_SESC_20060914_Caetano_Veloso_e_Moreno_Veloso_1024

show_SESC_20070331_Baby_do_Brasil_Nana_Shara_e_Zabele_1024

show_SESC_20070502_Ivan_e_Claudio_Lins_1024

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show_SESC_2006_Moraes_Moreira_e_Davi_Moraes_1024

Série de espetáculos com concepção e direção artística de Carlos Rennó, realizada em diferentes unidades do Sesc de São Paulo em 2006-7, reunindo em cada edição integrantes cantores e/ou compositores de duas gerações de uma mesma família musical. A série teve as seguintes apresentações:

Caetano e Moreno Veloso;
Moraes Moreira e Davi Moraes;
Edu e Bena Lobo;
Ivan e Claudio Lins;
Beto, Gabriel e Ian Guedes;
Baby do Brasil, Nãna Shara e Zabelê;
Luiz Melodia e Mahal;
Mário Manga e Mariana Aydar, Wandi Doratiotto e Danilo Moraes;
Joyce, Tutty Moreno, Nelson Ângelo, Clara Moreno e Ana Martins.

Coragem, Coração


de “Inclassificáveis”, de Ney Matogrosso

2008_Ney_Matogrosso_Inclassificaveis_1024

Ó meu querido amigo,
Conte comigo
E com a minha força.
Pra que cê finalize
A sua crise,
Como eu não há quem torça.

No meio dessa bruma,
É cada uma
Que a gente às vezes engole…
Mesmo com essa porra,
Cara, não corra;
Eu sei que não tá mole.

Tá duro, mas enfrente,
E siga em frente,
Que do seu lado eu sigo.
E antes que um vento assopre-o,
Diga a si próprio,
Meu amigo:

“Coragem, coração, se joga!”
Como corações se jogam.
Então, se liga só no slogan:
Coragem, coração, se joga!,
Que eu te dou a minha mão.
Enquanto alguém no chão se droga,
Coragem, meu irmão, se joga!

Respire fundo como um yogue;
Saia pro mundo, caia do blog;
Na batida da vida se jogue.

Na falta de esperança,
Auto-confiança
E de auto-controle,
Vou ser o solidário
Ser que o ampare, o ser
Que vai comparecer.

E antes que um vento assopre-o,
Diga a si próprio,
Meu amigo:

“Coragem, coração, se joga!”
Como corações se jogam.
Então, se liga só no slogan:
Coragem, coração, se joga!,
Que eu te dou a minha mão.
Enquanto alguém no chão se droga,
Coragem, meu irmão, se joga!

Enquanto alguém no chão se droga
Coragem, coração!

Lema


de “Inclassificáveis”, de Ney Matogrosso

2008_Ney_Matogrosso_Inclassificaveis_1024

Não vou lamentar
A mudança que o tempo traz, não,
O que já ficou para trás
E o tempo a passar sem parar jamais.

Já fui novo, sim; de novo, não…
Ser novo pra mim é algo velho.
Quero crescer,
Quero viver o que é novo: sim,
O que eu quero, assim,
É ser velho.

Envelhecer,
Certamente com a mente sã,
Me renovando,
Dia a dia, a cada manhã,
Tendo prazer,
Me mantendo com o corpo são –
Eis o meu lema,
Meu emblema, eis o meu refrão.

Mas não vou dar fim
Jamais ao menino em mim,
Nem dar de não mais me maravilhar
Diante do mar e do céu da vida.

E ser todo ser, e reviver,
A cada clamor de amor e sexo,
Perto de ser
Um deus e certo de ser mortal,
De ser animal
E ser homem,

E envelhecer,
Certamente com a mente sã,
Me renovando,
Dia a dia, a cada manhã,
Tendo prazer,
Me mantendo com o corpo são:
Eis o meu lema,
Meu emblema, eis o meu refrão.

Eis o meu lema,
Meu emblema, eis minha oração.

Esse Rio


de “Vicente”, de Vicente Barreto

2008_Vicente_Barreto_Vicente_1024

Veja só esse rio,
Que lentamente flui,
E o fio
Que se dilui
Nesse rio
E o polui.

Eu já tomei banho aqui,
Antes o meu pai tomou;
Água que daqui bebi,
Ih, sujou…
Era linda e límpida;
Hoje nela se espalhou
Uma espuma química;
Oh que horror…

Um saco plástico
Flutua à sua flor,
E ao redor
Turva o ar
Um fedor
De amargar.

E eu já tomei banho aqui,
Antes o meu pai tomou;
Um lugar sagrado se
Degradou.
Ói só o que o homem fez!
Era necessário? Não.
Ói só que insensatez!
Sem-razão!

Carcaça de automóvel, peça de museu:
É pau, calhau, metal, papel;
É tanto objeto;
É tão abjeto:
É dejeto,
É pneu,
É garrafa pet…
Água igual tapete
Mal reflete
O alto céu.

E eu já tomei banho aqui.
Antes o meu pai tomou.
Um lugar sagrado se
Degradou…
Hoje é um depósito
De lixo aquele rio;
É um despropósito,
-ta que pariu!

É Fogo


de “Labiata”, de Lenine

2008_Lenine_Labiata_1024

Éramos uma pá de “apocalípticos”,
De meros “hippies”, com um “falso” alarme…
Economistas, médicos, políticos
Apenas nos tratavam com escárnio.

Nossas visões se revelaram válidas,
E eles se calaram – mas é tarde.
As noites ’tão ficando meio cálidas…
E um mato grosso em chamas longe arde:

O verde em cinzas se converte logo, logo…

É fogo! É fogo!

Éramos “uns poetas loucos, místicos”…
Éramos tudo o que não era são;
Agora são – com dados estatísticos –
Os cientistas que nos dão razão.

De que valeu, em suma, a suma lógica
Do máximo consumo de hoje em dia,
Duma bárbara marcha tecnológica
E da fé cega na tecnologia?

Há só um sentimento que é de dó e de malogro…

É fogo… é fogo…

Doce morada bela, rica e única,
Dilapidada – só – como se fôsseis
A mina da fortuna econômica,
A fonte eterna de energias fósseis,

O que será, com mais alguns graus Celsius,
De um rio, uma baía ou um recife,
Ou um ilhéu ao léu clamando aos céus, se os
Mares subirem muito, em Tenerife?

E dos sem-água o que será de cada súplica, de cada rogo?

É fogo… é fogo…

Enquanto a emissão de gás carbônico
Sobe na América do Norte e na China,
No coração da selva amazônica
Desmatam uma Holanda: uma chacina!

Ó assassinos bárbaros frenéticos!
Ó gente má, ignara, vil, ignóbil!
Ó cínicos com máscara de céticos!
Ó antiéticos da ExxonMobil!

O estrago vai ser pago pela gente pobre toda;

É foda! É foda…

Em tanta parte, do Ártico à Antártida,
Deixamos nossa marca no planeta:
Aliviemos já a pior parte da
Tragédia anunciada com trombeta.

Mais que bilhões de vidas, é a vida em jogo.

É fogo.

O Pássaro Pênsil


de “Da Maior Importância”, de Elisa Paraíso
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Parar
Pra não pensar,
Pra compensar,
Pra valer.
Parar
Pra não pirar,
Pra respirar,
Pra viver.
Parar
Pra não se atar,
Pra não se ater
Só ao ter.
Parar
Para se ater
Só ao ser.

Parar
Sem o fazer,
Sem afazer,
Sem dever.
Sem ver
Mais que horas são,
Mas que oração
Se dizer.
Orar
De cor, ação
De coração
E saber
Entrar-
Se, concentrar-
Se no ser.

Pense o espaço e o pássaro lá,
Pênsil, parado no ar;
Pense-o pairando, parando pra continuar…

Parar
Pra se calar,
Pra se falar,
Sem dizer.
Parar
Para zerar,
Para rezar,
Bendizer.
Parar
Pra desplugar-
Se desligar-
Se do ter.
Parar
Pra religar-
Se no ser.

Pense o espaço e o pássaro lá,
Pênsil, parado no ar;
Pense-o pairando, parando pra continuar…

Vivo


de “Onda Tropicale”, de Fiorella Manoia

Precario, provvisorio, dispersivo,
Erroneo, transitorio, transitivo,
Effimero, fugace e passegero:

Ecco qui un vivo.

Impuro, imperfetto, impermanente,
Incerto, incompleto, incostante,
Instabile, variabile, emotivo:

Ecco qui un vivo.

E affrontando,
Il traffico, del traffico equivoco;
Il tossico, del transito nocivo;
La droga e l’indigesto digestivo;
Il male che minaccia il corpo vivo,
La mente, il mal dell’ente collettivo;
Il sangue, il mal del sieropositivo;
E affrontando queste realtà,
Il vivo afferma, fermo, affermativo:

“Quel che vale davvero è restar vivo”.

Sospeso, non perfetto, non completo,
Non soddisfatto mai, ne mai contento,
Così incompiuto e non definitivo:

Ecco qui un vivo.
Eccomi!

__________________________________________________________

Precário, provisório, perecível,
Falível, transitório, transitivo,
Efêmero, fugaz e passageiro:

Eis aqui um vivo.

Impuro, imperfeito, impermanente,
Incerto, incompleto, inconstante,
Instável, variável, defectivo:

Eis aqui um vivo.

E apesar
Do tráfico, do tráfego equívoco,
Do tóxico do trânsito nocivo;
Da droga do indigesto digestivo;
De o câncer vir do cerne do ser vivo;
Da mente, o mal do ente coletivo;
Do sangue, o mal do soropositivo;
E apesar dessas e outras,
O vivo afirma, firme, afirmativo:

“O que mais vale a pena é estar vivo!”

Não feito, não perfeito, não completo,
Não satisfeito nunca, não contente,
Não acabado, não definitivo:

Eis aqui um vivo.

Eis-me aqui.

Letra de Carlos Rennó, 2004

“Uma Vez, Uma Canção”

“Uma Vez, Uma Canção” – Série de 16 programas roteirizados e apresentados por Carlos Rennó, produzidos e exibidos pela TV Cultura, de São Paulo, em 2006. CR entrevistou compositores acerca da gênese e da feitura de alguns clássicos da música popular brasileira. Os convidados contaram a história e o processo envolvido na criação de suas canções, principalmente as mais populares. Ao final da conversa sobre cada uma, as interpretaram ao violão ou ao piano. Um pouco antes, era dado um espaço para perguntas da plateia, formada por jovens estudantes.

As 16 edições do programa foram com os artistas:

Adriana Calcanhotto
Arnaldo Antunes
Carlos Lyra
Chico César
Dominguinhos
Eduardo Gudim
Elton Medeiros
Gilberto Gil
Hermínio Bello de Carvalho
Ivan Lins
Johnny Alf
Jorge Aragão
Lô e Márcio Borges
Marcelo Camelo
Moraes Moreira e Luiz Galvão
Moraes Moreira

Lupicínio sempre!

Publicado na exposição “Lupicínio – O Poeta da Dor de Cotovelo”, no Sesc Vila Mariana, de São Paulo, em julho de 2005

Lupicínio Rodrigues pertence àquela raça rara de compositores possuidores de um timbre único, pessoal, inconfundível. Não à toa, seu nome acabou associado à criação e cristalização de um estilo novo dentro da música brasileira. A chamada “dor-de-cotovelo”, como ficou conhecida, se caracterizou por um notável conjunto de canções – principalmente sambas-canções – de amor marcadas por uma nudez, uma crueza e uma verdade sem paralelo no panorama musical nacional de sua época (fim dos anos 30 em diante).

Com uma qualidade poética invulgar, as peças de LR nos surpreendem com rasgos verbais inesperados, sensacionais; com metáforas e lances de imagens imprevisíveis na exploração do tema das relações amorosas, passíveis de associação até com a Segunda Guerra Mundial: “Onde a dona Divergência com o seu archote/ Espalha os raios da morte/ A destruir os casais;/ E eu, combatente atingido,/ Sou qual um país vencido/ Que não se organiza mais” (“Dona Divergência”, de 1939). Quem senão um poeta cantaria: “Eu não sei se o que trago no peito/ É ciúme, despeito, amizade ou horror;/ Eu só sei é que quando eu a vejo,/ Me dá um desejo de morte ou de dor” (“Nervos de Aço”)? Que ninguém duvide: Lupicínio foi um verdadeiro poeta da canção – dos maiores de nossa música, ao lado de Orestes, Noel, Caetano, Chico.

Mas não se pense que o valor de suas canções se limita ao texto. Em certos momentos, como um Tom Jobim, ele apresenta aquela equivalência sempre conscientemente buscada pelos mais musicalmente qualificados criadores da arte que conjuga palavras e sons: o casamento entre as suas partes. Nesse sentido, constituem-se modelos de isomorfismo poético-musical obras-primas como “Vingança” e “Torre de Babel”, em que Lupi faz letras e músicas falarem a mesma linguagem. E sem usar outro artifício que não o da sua intuição; sem formação musical, ele não tocava instrumento algum, nem sequer um violão para compor.

Poucos recriaram tão particularmente bem o seu repertório quanto ele próprio, nos seus raros registros discográficos, nos quais se mostra um cantor moderno, interpretando com surpreendente serenidade os temas do ressentimento amoroso que povoam suas canções.

Gaúcho que nunca deixou sua Porto Alegre, o compositor entrou na cena musical brasileira em 1938 com “Se Acaso Você Chegasse”, que foi lançada por – e que lançou – um cantor genial de samba: Cyro Monteiro. Dali em diante, sua história não cessou de se pautar por grandes sucessos nas vozes de grandes intérpretes. Alguns exemplos. Com Francisco Alves, estouraram “Nervos de Aço” em 1947 e “Esses Moços” em 1948. Com a paulista Linda Batista, “Vingança”, no início dos anos 50, década que perto de seu final inaugurou a série de gravações de canções de sua autoria que viria a fazer o seu mais assíduo intérprete: Jamelão. Em 1960, “Se Acaso Você Chegasse” virou hit de novo, consagrando outro ícone como sambista: Elza Soares.

Após um breve ostracismo, a geração MPBística dos 60 recuperou LR nos 70, sobretudo com Caetano Veloso (“Felicidade”), Gal Costa (“Volta”) e Paulinho da Viola (“Nervos de Aço”). Nos 80, “Loucura” se popularizou com Maria Bethânia, e “Nunca”, com Zizi Possi. E até hoje, Lupi não deixou de ser reverenciado e revisitado pelas gerações seguintes, como atestam gravações de Arrigo Barnabé e Tetê Espíndolla a Arnaldo Antunes e Adriana Calcanhotto. Lupi, que morreu em 1974, com problemas do coração (poderia ter sido diferente?…), não tem fim.

“Mais Provençais”

Publicado na “Folha de S.Paulo” (“Mais!”), em 7/8/2005, na coluna “Biblioteca básica”

Sou um leitor sobretudo de livros de ou sobre poesia. Além disso, escrevo letras de música, ofício que conjuga as artes das palavras e dos sons. Por isso, a obra do maior poeta brasileiro vivo, e o mais músico de nossos poetas, Augusto de Campos, teve um papel exponencial na minha formação. Por isso, um de seus livros de tradução, “Mais Provençais”, destacando as 18 canções do trovador Arnaut Daniel, tem um lugar especial para mim.

Ainda hoje me emociona a primeira publicação, artesanal, da obra, em folhas soltas, feita por um pequeno editor catarinense (Cleber Teixeira). Que poesia! Uma poesia libertária e transgressora, que colocava a mulher lá no alto, quando a regra era rebaixá-la. E que tradução! Tão brilhante que nos faz pensar que, para traduzir grande poesia, talvez só mesmo grandes poetas.

Grandes poetas escreveram a maioria dos livros mais importantes da minha vida: Pessoa (“Mensagem”), Drummond (“Reunião”), Cabral (“Obra Completa”), Haroldo (“Galáxias”), o próprio Augusto (“Poesia”), entre outros. Aqui, eu destaco “Mais Provençais”, por apresentar peças modelares de uma arte que combinou poesia e música de modo sublime, indelével. Arte de autores que, como sugeriu Augusto, acabaram tendo nos Porters, Dylans, Caetanos, Chicos e Princes os seus legítimos sucessores no tempo.

A obra: “Mais Provençais”, de Augusto de Campos, 160 págs., Companhia das Letras (esgotado).

Fogo e Gasolina


de “Que Belo Estranho Dia Pra Se Ter Alegria”, de Roberta Sá

2007_Roberta_Sa_Que_Belo_Estranho_Dia_Pra_Se_Ter_Alegria_1024

Você é um avião – eu sou um edifício
Eu sou um abrigo – você é um míssil
Eu sou a mata – você a moto-serra
Eu sou um terremoto – e você a terra

O nosso jogo é perigoso, menina
Nós somos fogo, nós somos fogo
Nós somos fogo e gasolina

Você é o fósforo – eu sou o pavio
Você é um torpedo – eu sou o navio
Você é o trem – e eu sou o trilho
Eu sou o dedo – e você é o meu gatilho

O nosso jogo é perigoso, menina
Nós somos fogo, nós somos fogo
Nós somos fogo e gasolina

Eu sou a veia – você é a agulha
Eu sou o gás – você é a fagulha
Eu sou o fogo – e você a gasolina
Eu sou a pólvora – e você a mina

O nosso jogo perigoso combina
Nós somos fogo, nós somos fogo
Nós somos fogo e gasolina

Te Adorar


de “Hoje”, de Gal Costa

2005_Gal_Costa_Hoje_1024

Nada mais me atrai
Que tua tez morena, ai, ai.
Talvez por eu ser o teu servo,
Com certa obsessão a observo.

Nada faz brilhar
E agrada mais ao meu olhar;
Pois se eu te vejo, meu buquê,
Vejo o que eu mais desejo ver.

A te adorar, parado em ser teu par,
A te adorar, dourar, dourar…
Te ver me dar tudo que és,
Da cabeça até os pés.

Nada mais me traz
Felicidade e paz
Do que ver-te, ver-te sorrir.
É como sorver um elixir.

Fico a te focar;
Mergulho fundo no teu olhar.
Mesmo quando o gozo já vem,
Eu me afundo bem ali e além.

A te adorar, parado em ser teu par,
A te adorar, dourar, dourar…
Te ter, me dar a tudo que és,
Da cabeça até os pés.

Te adorar…
Te adorar, dourar, dourar…
Te ver me dar tudo que és,
Da cabeça até os pés.

Te adorar…
Te adorar, dourar, dourar…
Te ver me dar tudo que és,
Dez mil vezes, mil vezes dez!

Sexo e Luz


de “Hoje”

2005_Gal_Costa_Hoje_1024

Quando o sol
Abaixou
Num dia tão monótono,
A paixão
Me deixou
Atônito.

Me tirou
Da rotina,
E num momento único,
Alterou
Meu destino
De súbito.

Aí,
Saí do vale do meu tormento,
E fui
Cair no lago do teu amor;
Ali,
Aliviei todo o meu sofrimento,
E ui,
Me vi gemendo de prazer que nem de dor.

Enfim, lancei de mim um grito;
E em ti, fui um com o infinito.

E no céu
Do meu eu,
No íntimo, no âmago,
Acendeu
Um límpido
Relâmpago.

No ápice,
Em átimos
Que pareceram séculos,
Eu me banhei
E me lavei
Em sexo e luz.

Então,
Além do monte, além do horizonte,
Ah sim,
Além do mundo, além da razão,
Oh não,
Bebi do poço sem fundo, da fonte
Sem fim,
O poço do desejo, a fonte da paixão.

Enfim, lancei de mim um grito;
E em ti, fui um com o infinito.

Mar e Sol


de “Hoje”, de Gal Costa

2005_Gal_Costa_Hoje_1024

Um sol
Eu sou
Para o seu mar, ó meu amor;
Você
O mar é
Para o meu sol, para eu me pôr;

Me pôr
Em você,
Me espelhar, me espalhar;
Meu sol
De arrebol
Deitar no leito de seu mar;

E entrar em você,
Em você queimar, arder;
Em você tremer, em você,
Em você morrer, morrer.

Um só,
Um nó
De fogo e água, terra e céu,
A sós,
Somos nós,
De corpo e alma, você e eu;

E eu
A descer,
A desnascer, desvanecer;
A ser
Em você
Um sol a se dissolver,

Ao entrar em você,
Em você queimar, arder;
Em você tremer, em você,
Em você morrer, morrer.

Depois,
Nós dois,
Olhos nos olhos, vis-à-vis,
Nos seus
Olhos meus,
Me vejo no que vejo ali.

Ali,
Eu-você,
Olho no olho a se espelhar,
Amor,
Sem temor,
Olho o que eu olho me olhar –

Ao entrar em você,
Em você queimar, arder;
Em você tremer, em você,
Com você morrer, morrer.

Paixão de fogo de paixão
De fogo de paixão
De fogo de paixão

Em que me afogo de paixão
Me afogo de paixão
Me afogo de paixão.

Lud


de “Sol a Girar”, de Flávio Henrique

2006_Flavio_Henrique_Sol_a_girar_1024

SP,
Aqui só nesse ap.,
Eu penso em vc,
Aí em BH.
Ah, por que
Vc não vem pra cá?
Tô com saudade, pô,
Tô de dá dó…

Minha rainha-sinhá,
Será que existirá você?

Porque em você tem um não-sei-quê,
Que não tem lógica nem se vê;
Será que é mágica, ilude e me iludirá?

Que doce, suave leveza, nó!,
Força da delicadeza, ó,
Gema da mina de minas que Minas nos dá.

Com você,
Eu danço um pas-de-deux,
Eu faço até balé,
Eu por você, ói só:

Vou até
A pé até Belô;
Retomo o café-
Com-leite, sô…

Minha rainhazinha,
Será que existirá você?

Por seus “inhos” tão carinhosos, só,
Por seu jeitinho charmoso, só,
Saio daqui d’“onqotô”, vou praí “oncetá”.

Agora só quero que aponte a ponte
São Paulo-Belo Horizonte
E eu pinte em Santa Tereza, de Vila Madá.