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O Relógio do Juízo Final

No mar, no rio, na lagoa, a água clara;
No céu mais limpo, o pôr mais lindo, a imagem rara;
E um ar tão puro que ninguém imaginara.
Por um período breve apenas, anormal,
Na quarentena humana inédita, afinal,
Medrou na cena urbana a vida natural.

E enquanto um índio dono de um saber profundo
Propaga ideias pra adiar o fim do mundo,
Um cara-pálida fascista em potencial,
Negativista violento do real,
Tão virulento quão pandêmico-viral,
Acelera o Relógio do Juízo Final.

Quando é que vamos aprender a diferença
Entre quem quer que a Terra-Gaia lhe pertença
E quem pertence a ela, é dela de nascença?
Somos do mal, o mal da Terra, não o sal.
Matamos a metade do reino animal,
Tamos rapando o vegetal e o mineral.

Se um povo dito primitivo e vagabundo
Trabalha e dança pra adiar o fim do mundo,
A tal da civilização ocidental,
“Desenvolvida, evoluída, racional”,
Queima e arrasa a própria casa, com quintal,
E apressa o Relógio do Juízo Final.

Quando é que vamos nos guiar por uma lógica
Mais ecológica do que mercadológica
Ou econômica, por uma bio-lógica?
Ver que não somos uma espécie central
Na biodiversidade da Terra, da qual
Nós temos sido parasitas, na real.

Enquanto um quilombola de onde é oriundo
Batuca e samba pra adiar o fim do mundo,
O ruralista duma escola colonial,
O pecuarista numa escala industrial,
Monocultura e racismo ambiental,
Adiantam o Relógio do Juízo Final.

E como para o homem vai haver escape se
A emissão de gases atingiu um ápice,
E há previsão de que a Amazônia colapse?
E tá na gênese um “Apocalypse Now”,
Em que a temperatura média mundial
Aumenta igual ou mais que um e meio grau?

Enquanto um cientista de um labor fecundo
Emite alertas pra adiar o fim do mundo,
Negacionistas do aquecimento global,
Negociantes do petróleo, do pré-sal,
Fiéis à fé neoliberal do capital,
Aceleram o Relógio do Juízo Final.

Quando é que vamos acordar em quanto é vão
Um crescimento que produz destruição?
Que não há redenção sem distribuição,
Sem queda na desigualdade social
E na pegada de carbono atual,
E sem um “bem viver” em um “novo normal”?

Enquanto uma ativista foda, que vai fundo,
Protesta e luta pra adiar o fim do mundo,
A companhia múlti, pan, transnacional,
Qual o sinistro antiministro ambiental,
Qual o grileiro, o garimpeiro ilegal,
Acelera o Relógio do Juízo Final.

Pensando nisso tudo, em hora tão dramática,
Temendo nossa sina trágica e errática,
Me assombra a sombra de uma mutação climática
E duma guerra cibernética fatal,
Dum uso mau da inteligência artificial
E dum conflito nuclear final, total.

Se tudo, entanto, pode estar por um segundo,
Eu canto cantos pra adiar o fim do mundo,
Pra me reconectar à mãe original,
Recontactar minha memória ancestral
E ter o júbilo de estar vivo afinal,
Atrasando o Relógio…
Atrasando o Relógio…
Atrasando o Relógio… do Juízo Final.

Para Onde Vamos?

Para onde vamos? Ah, onde vamos parar?
Nessa encruzilhada, que estrada vamos pegar?
Que perigo de mau tempo, temporal,
De temperatura em alta e de desastre existe pra todos nós afinal?

Que desmatamento ou incêndio ou inundação
Nossos olhos tristes ainda inundarão?
Que geleira tem que ainda derreter,
Pra quebrar a pedra de gelo que tem no peito quem tem um alto e podre poder?

Quanto tempo vamos seguir sem de fato agir
Contra a gana por grana que só faz destruir?
Quantos homens, aos milhares, aos milhões,
Vão morrer de fome e de sede, vítimas de ações de outros homens, de outras nações?

Que será do mundo que vemos, que mundo nós
Deixaremos às gerações que virão após?
Que futuro preparamos, que manhã?
Nosso tino ou desatino hoje define nosso destino aqui amanhã.

*

Segunda Pele


de “Segunda Pele”, de Roberta Sá

2011_Roberta_Sa_Segunda_Pele_1024

À noite eu lhe convido:
“Querido, vem pra cá”
Um som no seu ouvido
Sussurra logo: “Vá!”
Por perto alguma gata
Já grita que nem fã
E logo o amor nos ata
Na noite, nossa irmã

Quando ele vem, faço dele
Minha luva, meu colant
A minha segunda pele
O meu cobertor de lã

São Paulo tá tão frio
Três graus, a sensação
Mas o seu arrepio
Não é de frio, não
Sou eu na sua pele
Que afago com afã
Pra que seu fogo pele
A sua anfitriã

Quando ele vem, faço dele
Minha luva, meu colant
A minha segunda pele
O meu cobertor de lã

Enquanto a noite passa
Aos braços da manhã
A gente ainda passa
Os dentes na maçã
O nosso amor é massa
Pra lá de Amsterdan
O resto é o resto, e passa
O resto é espuma, é spam

Quando ele vem, faço dele
Minha luva, meu colant
A minha segunda pele
O meu cobertor de lã

Quando ele vem, faço dele
Minha luva ou sutiã
A minha segunda pele
O meu cobertor de lã

Agora Sim

Amor assim, não tem, não, quem não queira
Quem me quer bem, é bem quem eu queria
Agora sim me sinto mais inteira
No meu caminho, nessa companhia

Agora sim me sinto mais inteira
No meu caminho, nessa companhia

Agora eu tenho quem come em minha mão
Que antes só, só em sonho eu tinha
Quem me completa mente e coração
E tá completamente sim, na minha

Dona Melancolia já não me detona sem dó
E a senhora Alegria já não me abandona
Pois agora eu não sou só eu só

(2x)

Agora eu tenho e ninguém me tira
Eu tenho amor que não é de mentira
Agora eu tenho quem eu tinha em mira
Eu tenho quem me tem e me admira

Amor assim…

Fogo e Gasolina


de “Que Belo Estranho Dia Pra Se Ter Alegria”, de Roberta Sá

2007_Roberta_Sa_Que_Belo_Estranho_Dia_Pra_Se_Ter_Alegria_1024

Você é um avião – eu sou um edifício
Eu sou um abrigo – você é um míssil
Eu sou a mata – você a moto-serra
Eu sou um terremoto – e você a terra

O nosso jogo é perigoso, menina
Nós somos fogo, nós somos fogo
Nós somos fogo e gasolina

Você é o fósforo – eu sou o pavio
Você é um torpedo – eu sou o navio
Você é o trem – e eu sou o trilho
Eu sou o dedo – e você é o meu gatilho

O nosso jogo é perigoso, menina
Nós somos fogo, nós somos fogo
Nós somos fogo e gasolina

Eu sou a veia – você é a agulha
Eu sou o gás – você é a fagulha
Eu sou o fogo – e você a gasolina
Eu sou a pólvora – e você a mina

O nosso jogo perigoso combina
Nós somos fogo, nós somos fogo
Nós somos fogo e gasolina

Samba de Amor e Ódio

de “Que Belo Estranho Dia Pra Se Ter Alegria”, de Roberta Sá

2007_Roberta_Sa_Que_Belo_Estranho_Dia_Pra_Se_Ter_Alegria_1024

Não há abrigo contra o mal,
Nem sequer
A ilha idílica na qual
A mulher
E o homem vivam afinal
Qual
Se quer,
Tão-só de amor num canto qual-
Quer.

Erra
Quem sonha com a paz mas sem a guerra.
O céu existe, pois existe a terra.
Assim também, nessa vida real,
Não há o bem sem o mal,

Nem há
Amor sem que uma hora o ódio venha;
Bendito ódio, o ódio que mantém a
Intensidade do amor, seu ardor;
A densidade do amor, seu vigor;
E a outra face do amor vem à flor,
Na flor que nasce do amor.

Porém, há que saber fazer,
Sem opor,
O bem ao mal prevalecer,
E o amor
Ao ódio inserto em nosso ser
Se impor,
E à dor, que é certa, o prazer
Sobrepor,
E ao frio que nos faz sofrer,
O calor,
E à guerra enfim a paz vencer.

Erra
Quem sonha com a paz mas sem a guerra…