Todos os posts de Carlos Rennó

Vivo


de “Onda Tropicale”, de Fiorella Manoia

Precario, provvisorio, dispersivo,
Erroneo, transitorio, transitivo,
Effimero, fugace e passegero:

Ecco qui un vivo.

Impuro, imperfetto, impermanente,
Incerto, incompleto, incostante,
Instabile, variabile, emotivo:

Ecco qui un vivo.

E affrontando,
Il traffico, del traffico equivoco;
Il tossico, del transito nocivo;
La droga e l’indigesto digestivo;
Il male che minaccia il corpo vivo,
La mente, il mal dell’ente collettivo;
Il sangue, il mal del sieropositivo;
E affrontando queste realtà,
Il vivo afferma, fermo, affermativo:

“Quel che vale davvero è restar vivo”.

Sospeso, non perfetto, non completo,
Non soddisfatto mai, ne mai contento,
Così incompiuto e non definitivo:

Ecco qui un vivo.
Eccomi!

__________________________________________________________

Precário, provisório, perecível,
Falível, transitório, transitivo,
Efêmero, fugaz e passageiro:

Eis aqui um vivo.

Impuro, imperfeito, impermanente,
Incerto, incompleto, inconstante,
Instável, variável, defectivo:

Eis aqui um vivo.

E apesar
Do tráfico, do tráfego equívoco,
Do tóxico do trânsito nocivo;
Da droga do indigesto digestivo;
De o câncer vir do cerne do ser vivo;
Da mente, o mal do ente coletivo;
Do sangue, o mal do soropositivo;
E apesar dessas e outras,
O vivo afirma, firme, afirmativo:

“O que mais vale a pena é estar vivo!”

Não feito, não perfeito, não completo,
Não satisfeito nunca, não contente,
Não acabado, não definitivo:

Eis aqui um vivo.

Eis-me aqui.

Letra de Carlos Rennó, 2004

“Uma Vez, Uma Canção”

“Uma Vez, Uma Canção” – Série de 16 programas roteirizados e apresentados por Carlos Rennó, produzidos e exibidos pela TV Cultura, de São Paulo, em 2006. CR entrevistou compositores acerca da gênese e da feitura de alguns clássicos da música popular brasileira. Os convidados contaram a história e o processo envolvido na criação de suas canções, principalmente as mais populares. Ao final da conversa sobre cada uma, as interpretaram ao violão ou ao piano. Um pouco antes, era dado um espaço para perguntas da plateia, formada por jovens estudantes.

As 16 edições do programa foram com os artistas:

Adriana Calcanhotto
Arnaldo Antunes
Carlos Lyra
Chico César
Dominguinhos
Eduardo Gudim
Elton Medeiros
Gilberto Gil
Hermínio Bello de Carvalho
Ivan Lins
Johnny Alf
Jorge Aragão
Lô e Márcio Borges
Marcelo Camelo
Moraes Moreira e Luiz Galvão
Moraes Moreira

Lupicínio sempre!

Publicado na exposição “Lupicínio – O Poeta da Dor de Cotovelo”, no Sesc Vila Mariana, de São Paulo, em julho de 2005

Lupicínio Rodrigues pertence àquela raça rara de compositores possuidores de um timbre único, pessoal, inconfundível. Não à toa, seu nome acabou associado à criação e cristalização de um estilo novo dentro da música brasileira. A chamada “dor-de-cotovelo”, como ficou conhecida, se caracterizou por um notável conjunto de canções – principalmente sambas-canções – de amor marcadas por uma nudez, uma crueza e uma verdade sem paralelo no panorama musical nacional de sua época (fim dos anos 30 em diante).

Com uma qualidade poética invulgar, as peças de LR nos surpreendem com rasgos verbais inesperados, sensacionais; com metáforas e lances de imagens imprevisíveis na exploração do tema das relações amorosas, passíveis de associação até com a Segunda Guerra Mundial: “Onde a dona Divergência com o seu archote/ Espalha os raios da morte/ A destruir os casais;/ E eu, combatente atingido,/ Sou qual um país vencido/ Que não se organiza mais” (“Dona Divergência”, de 1939). Quem senão um poeta cantaria: “Eu não sei se o que trago no peito/ É ciúme, despeito, amizade ou horror;/ Eu só sei é que quando eu a vejo,/ Me dá um desejo de morte ou de dor” (“Nervos de Aço”)? Que ninguém duvide: Lupicínio foi um verdadeiro poeta da canção – dos maiores de nossa música, ao lado de Orestes, Noel, Caetano, Chico.

Mas não se pense que o valor de suas canções se limita ao texto. Em certos momentos, como um Tom Jobim, ele apresenta aquela equivalência sempre conscientemente buscada pelos mais musicalmente qualificados criadores da arte que conjuga palavras e sons: o casamento entre as suas partes. Nesse sentido, constituem-se modelos de isomorfismo poético-musical obras-primas como “Vingança” e “Torre de Babel”, em que Lupi faz letras e músicas falarem a mesma linguagem. E sem usar outro artifício que não o da sua intuição; sem formação musical, ele não tocava instrumento algum, nem sequer um violão para compor.

Poucos recriaram tão particularmente bem o seu repertório quanto ele próprio, nos seus raros registros discográficos, nos quais se mostra um cantor moderno, interpretando com surpreendente serenidade os temas do ressentimento amoroso que povoam suas canções.

Gaúcho que nunca deixou sua Porto Alegre, o compositor entrou na cena musical brasileira em 1938 com “Se Acaso Você Chegasse”, que foi lançada por – e que lançou – um cantor genial de samba: Cyro Monteiro. Dali em diante, sua história não cessou de se pautar por grandes sucessos nas vozes de grandes intérpretes. Alguns exemplos. Com Francisco Alves, estouraram “Nervos de Aço” em 1947 e “Esses Moços” em 1948. Com a paulista Linda Batista, “Vingança”, no início dos anos 50, década que perto de seu final inaugurou a série de gravações de canções de sua autoria que viria a fazer o seu mais assíduo intérprete: Jamelão. Em 1960, “Se Acaso Você Chegasse” virou hit de novo, consagrando outro ícone como sambista: Elza Soares.

Após um breve ostracismo, a geração MPBística dos 60 recuperou LR nos 70, sobretudo com Caetano Veloso (“Felicidade”), Gal Costa (“Volta”) e Paulinho da Viola (“Nervos de Aço”). Nos 80, “Loucura” se popularizou com Maria Bethânia, e “Nunca”, com Zizi Possi. E até hoje, Lupi não deixou de ser reverenciado e revisitado pelas gerações seguintes, como atestam gravações de Arrigo Barnabé e Tetê Espíndolla a Arnaldo Antunes e Adriana Calcanhotto. Lupi, que morreu em 1974, com problemas do coração (poderia ter sido diferente?…), não tem fim.

“Mais Provençais”

Publicado na “Folha de S.Paulo” (“Mais!”), em 7/8/2005, na coluna “Biblioteca básica”

Sou um leitor sobretudo de livros de ou sobre poesia. Além disso, escrevo letras de música, ofício que conjuga as artes das palavras e dos sons. Por isso, a obra do maior poeta brasileiro vivo, e o mais músico de nossos poetas, Augusto de Campos, teve um papel exponencial na minha formação. Por isso, um de seus livros de tradução, “Mais Provençais”, destacando as 18 canções do trovador Arnaut Daniel, tem um lugar especial para mim.

Ainda hoje me emociona a primeira publicação, artesanal, da obra, em folhas soltas, feita por um pequeno editor catarinense (Cleber Teixeira). Que poesia! Uma poesia libertária e transgressora, que colocava a mulher lá no alto, quando a regra era rebaixá-la. E que tradução! Tão brilhante que nos faz pensar que, para traduzir grande poesia, talvez só mesmo grandes poetas.

Grandes poetas escreveram a maioria dos livros mais importantes da minha vida: Pessoa (“Mensagem”), Drummond (“Reunião”), Cabral (“Obra Completa”), Haroldo (“Galáxias”), o próprio Augusto (“Poesia”), entre outros. Aqui, eu destaco “Mais Provençais”, por apresentar peças modelares de uma arte que combinou poesia e música de modo sublime, indelével. Arte de autores que, como sugeriu Augusto, acabaram tendo nos Porters, Dylans, Caetanos, Chicos e Princes os seus legítimos sucessores no tempo.

A obra: “Mais Provençais”, de Augusto de Campos, 160 págs., Companhia das Letras (esgotado).

Fogo e Gasolina


de “Que Belo Estranho Dia Pra Se Ter Alegria”, de Roberta Sá

2007_Roberta_Sa_Que_Belo_Estranho_Dia_Pra_Se_Ter_Alegria_1024

Você é um avião – eu sou um edifício
Eu sou um abrigo – você é um míssil
Eu sou a mata – você a moto-serra
Eu sou um terremoto – e você a terra

O nosso jogo é perigoso, menina
Nós somos fogo, nós somos fogo
Nós somos fogo e gasolina

Você é o fósforo – eu sou o pavio
Você é um torpedo – eu sou o navio
Você é o trem – e eu sou o trilho
Eu sou o dedo – e você é o meu gatilho

O nosso jogo é perigoso, menina
Nós somos fogo, nós somos fogo
Nós somos fogo e gasolina

Eu sou a veia – você é a agulha
Eu sou o gás – você é a fagulha
Eu sou o fogo – e você a gasolina
Eu sou a pólvora – e você a mina

O nosso jogo perigoso combina
Nós somos fogo, nós somos fogo
Nós somos fogo e gasolina

Te Adorar


de “Hoje”, de Gal Costa

2005_Gal_Costa_Hoje_1024

Nada mais me atrai
Que tua tez morena, ai, ai.
Talvez por eu ser o teu servo,
Com certa obsessão a observo.

Nada faz brilhar
E agrada mais ao meu olhar;
Pois se eu te vejo, meu buquê,
Vejo o que eu mais desejo ver.

A te adorar, parado em ser teu par,
A te adorar, dourar, dourar…
Te ver me dar tudo que és,
Da cabeça até os pés.

Nada mais me traz
Felicidade e paz
Do que ver-te, ver-te sorrir.
É como sorver um elixir.

Fico a te focar;
Mergulho fundo no teu olhar.
Mesmo quando o gozo já vem,
Eu me afundo bem ali e além.

A te adorar, parado em ser teu par,
A te adorar, dourar, dourar…
Te ter, me dar a tudo que és,
Da cabeça até os pés.

Te adorar…
Te adorar, dourar, dourar…
Te ver me dar tudo que és,
Da cabeça até os pés.

Te adorar…
Te adorar, dourar, dourar…
Te ver me dar tudo que és,
Dez mil vezes, mil vezes dez!

Sexo e Luz


de “Hoje”

2005_Gal_Costa_Hoje_1024

Quando o sol
Abaixou
Num dia tão monótono,
A paixão
Me deixou
Atônito.

Me tirou
Da rotina,
E num momento único,
Alterou
Meu destino
De súbito.

Aí,
Saí do vale do meu tormento,
E fui
Cair no lago do teu amor;
Ali,
Aliviei todo o meu sofrimento,
E ui,
Me vi gemendo de prazer que nem de dor.

Enfim, lancei de mim um grito;
E em ti, fui um com o infinito.

E no céu
Do meu eu,
No íntimo, no âmago,
Acendeu
Um límpido
Relâmpago.

No ápice,
Em átimos
Que pareceram séculos,
Eu me banhei
E me lavei
Em sexo e luz.

Então,
Além do monte, além do horizonte,
Ah sim,
Além do mundo, além da razão,
Oh não,
Bebi do poço sem fundo, da fonte
Sem fim,
O poço do desejo, a fonte da paixão.

Enfim, lancei de mim um grito;
E em ti, fui um com o infinito.

Mar e Sol


de “Hoje”, de Gal Costa

2005_Gal_Costa_Hoje_1024

Um sol
Eu sou
Para o seu mar, ó meu amor;
Você
O mar é
Para o meu sol, para eu me pôr;

Me pôr
Em você,
Me espelhar, me espalhar;
Meu sol
De arrebol
Deitar no leito de seu mar;

E entrar em você,
Em você queimar, arder;
Em você tremer, em você,
Em você morrer, morrer.

Um só,
Um nó
De fogo e água, terra e céu,
A sós,
Somos nós,
De corpo e alma, você e eu;

E eu
A descer,
A desnascer, desvanecer;
A ser
Em você
Um sol a se dissolver,

Ao entrar em você,
Em você queimar, arder;
Em você tremer, em você,
Em você morrer, morrer.

Depois,
Nós dois,
Olhos nos olhos, vis-à-vis,
Nos seus
Olhos meus,
Me vejo no que vejo ali.

Ali,
Eu-você,
Olho no olho a se espelhar,
Amor,
Sem temor,
Olho o que eu olho me olhar –

Ao entrar em você,
Em você queimar, arder;
Em você tremer, em você,
Com você morrer, morrer.

Paixão de fogo de paixão
De fogo de paixão
De fogo de paixão

Em que me afogo de paixão
Me afogo de paixão
Me afogo de paixão.

Lud


de “Sol a Girar”, de Flávio Henrique

2006_Flavio_Henrique_Sol_a_girar_1024

SP,
Aqui só nesse ap.,
Eu penso em vc,
Aí em BH.
Ah, por que
Vc não vem pra cá?
Tô com saudade, pô,
Tô de dá dó…

Minha rainha-sinhá,
Será que existirá você?

Porque em você tem um não-sei-quê,
Que não tem lógica nem se vê;
Será que é mágica, ilude e me iludirá?

Que doce, suave leveza, nó!,
Força da delicadeza, ó,
Gema da mina de minas que Minas nos dá.

Com você,
Eu danço um pas-de-deux,
Eu faço até balé,
Eu por você, ói só:

Vou até
A pé até Belô;
Retomo o café-
Com-leite, sô…

Minha rainhazinha,
Será que existirá você?

Por seus “inhos” tão carinhosos, só,
Por seu jeitinho charmoso, só,
Saio daqui d’“onqotô”, vou praí “oncetá”.

Agora só quero que aponte a ponte
São Paulo-Belo Horizonte
E eu pinte em Santa Tereza, de Vila Madá.

Samba de Amor e Ódio

de “Que Belo Estranho Dia Pra Se Ter Alegria”, de Roberta Sá

2007_Roberta_Sa_Que_Belo_Estranho_Dia_Pra_Se_Ter_Alegria_1024

Não há abrigo contra o mal,
Nem sequer
A ilha idílica na qual
A mulher
E o homem vivam afinal
Qual
Se quer,
Tão-só de amor num canto qual-
Quer.

Erra
Quem sonha com a paz mas sem a guerra.
O céu existe, pois existe a terra.
Assim também, nessa vida real,
Não há o bem sem o mal,

Nem há
Amor sem que uma hora o ódio venha;
Bendito ódio, o ódio que mantém a
Intensidade do amor, seu ardor;
A densidade do amor, seu vigor;
E a outra face do amor vem à flor,
Na flor que nasce do amor.

Porém, há que saber fazer,
Sem opor,
O bem ao mal prevalecer,
E o amor
Ao ódio inserto em nosso ser
Se impor,
E à dor, que é certa, o prazer
Sobrepor,
E ao frio que nos faz sofrer,
O calor,
E à guerra enfim a paz vencer.

Erra
Quem sonha com a paz mas sem a guerra…

Repúdio


de “Ponto Enredo”, de Pedro Luis

São tantos que lotavam um estádio
Os presos espremidos nesse prédio.
São bestas-feras, vocifera o rádio,
De quem não vê saída nem remédio.

Um homem pode ali morrer de tédio;
Viver ali já é um genocídio.
A calma de repente só precede o
Momento de revolta no presídio.

Então em tiros, gritos de homicídio
E lágrimas de sangue, explode o ódio;
E a cena má invade a vida, o vídeo.

Que pena, que sistema, que episódio!
Que horror, que dor… que triste, que tripúdio!
Que dó… mas ó: nos resta esse repúdio!

Texto de Braulio Tavares sobre “Todas Elas Juntas Num Só Ser”

“Todas elas juntas num só ser”

O Prêmio Tim de música popular indicou como a Melhor Canção de 2004 uma parceria de Lenine e Carlos Rennó, “Todas Elas Juntas Num Só Ser”. É uma notável canção, com letra quilométrica, e faz um recenseamento das musas da música popular, brasileira ou estrangeira, comparando-as com a “destinatária” da canção, e julgando-as inferiores a ela. Uma amostra: “Não canto mais Bebete nem Domingas / Nem Xica nem Tereza, de Ben Jor; / Nem Drão nem Flora, do baiano Gil; / Tereza nem Luiza, do maior; / Já não homenageio Januária, / Joana, Ana, Bárbara, de Chico; / Nem Yoko, a nipônica de Lennon; / Nem a cabocla, de Tinoco e de Tonico… Só você! / Eu hoje canto mesmo só você! / Só você, que é todas elas juntas num só ser”. E basta, porque são dezenas de estrofes.

Eu conhecia essa letra antes de ser musicada (e consideravelmente reduzida, compactada) por Lenine, e sempre a achei um “tour de force”, uma idéia simples e forte, executada com imensa erudição e impecável competência. Porque é um Poema Enumerativo, um dos gêneros aparentemente mais fáceis e sutilmente mais difíceis da poesia. Cantador de viola adora fazer essas intermináveis estrofes com nomes de cidades, de peixes, de rios; nomes de personagens da Mitologia Grega, nomes de outros cantadores. O propósito mais visível de tais poemas é mostrar erudição (no sentido de “muita informação sobre assunto específico”); mas o poema enumerativo acaba se transformando num jogo de palavras onde nome se sucede a nome, com efeito puramente de melodia, de uma musicalidade abstracionista, que até na leitura silenciosa se impõe.

Mas o poema é para uma Musa, comparando-a com todas as Musas da canção. E me lembro de um trecho do conto de Jorge Luís Borges, “O Zahir”. O narrador, o próprio Borges, confessa ter sido apaixonado por uma socialite de Buenos Aires, vaidosa e fútil. Depois que ela morre, ele toma uma bebida num botequim e recebe de troco uma moeda de vinte centavos. Essa moeda se transforma num “zahir”, um objeto inesquecível. Desse momento em diante, ele não consegue parar de pensar na moeda, e de fazer associação com moedas famosas da História: as 30 moedas de Judas, o óbolo que se colocava na boca dos mortos para que pagassem a Caronte, o barqueiro do Rio das Sombras…

Borges sugere que para apaixonar-se por uma moeda de vinte centavos basta pensar que ela encarna em si todas as moedas míticas da História. Jung dizia que a “Anima” é a imagem-plasma de todas as mulheres, o arquétipo feminino que todo homem traz em seu inconsciente; e que a paixão ocorre quando ele acha uma mulher que, para ele, é todas as outras (o que o dispensa de continuar procurando). Trazendo esse conceito para o domínio da letra de música, e forjando a partir dele um poema enumerativo cheio de achados de aliteração, Carlos Rennó criou um Zahir feminino e metalingüístico: a mulher que contém em si todas as mulheres, e a canção de amor que contém em si todas as canções.

(publicado no “Jornal da Paraíba”, em 17 de julho de 2005)

*

Seis grandes vozes brasileiras

Para uma edição do programa de TV “Saia Justa” (do GNT), de 2004

A voz de Elza Soares é uma força e uma beleza da natureza. Eis a mais exuberante de nossas vozes femininas. Elza é um caso espantoso de cantora de jazz de morro não formada por nenhuma escola de jazz, um caso impressionante de uma cantora inata de jazz auto-formada no morro carioca. Aliás, Elza Soares é o produto mais sofisticado de todas as favelas do mundo.

A voz de Caetano é a demonstração do que a inteligência pode fazer pelo canto. Aplicando a inteligência a suas interpretações, ele nos traduz como poucos um grande número de canções dos mais diversos gêneros, autores e períodos. Na bela voz de Caetano ele põe a bater o coração do pensamento mágico dele. É um caso de auto-educação vocal que levou a uma notável evolução, a ponto de ele se tornar o cantor maravilhoso que ele é hoje.

Elis Regina é a nossa Sarah Vaughan. Nenhuma outra, dentre nossas cantoras, a supera em matéria de aperfeiçoamento técnico. E técnica é algo muito importante para um cantor: para um artista. Mas Elis não é, naturalmente, apenas técnica. É mais, é também expressividade. Uma expressividade, aliás, que às vezes chega ao expressionismo mesmo. É nesse sentido que ela não constitui uma cantora de bossa-nova.

A voz de Gal Costa é como o próprio nome verdadeiro dela diz: uma graça, uma gracinha. Gal nos encanta cantando porque sua voz possui uma graça natural. Eis o segredo do encanto do canto dela. Ela é a principal discípula de João Gilberto, mas seu canto assimilou também elementos de outros gêneros e escolas: do rock, sobretudo. É que, mais do que uma bossa-novista, Gal é uma cantora tropicalista.

João Gilberto é o mais revolucionário dos cantores modernos. É quem reinventou o canto de nosso tempo, quem alterou nossos critérios de avaliação do que seja cantar bem, afinado e bonito. Pouca coisa é tão bonita e tão afinada quanto o canto de João. E tão significativa também. Sua voz é tão rica de sugestões que nela podemos sentir um Brasil do passado, do presente e até do futuro. Na verdade, o que a voz dele nos passa é a sugestão de um Brasil melhor, a sugestão e a lição do melhor do Brasil.

São necessários milhões e milhões e milhões de nascimentos de seres humanos – e até de aves canoras – para dentre os milhões e milhões de vozes desses seres todos surgir uma com a beleza e a capacidade de comoção da voz de Milton Nascimento, especialmente do seu falsete. Quase nada no mundo é tão bonito e emocionante quanto a voz de Milton. Milton, Ray Charles, Bola de Nieve, todas essas são comoventes vozes raras de uma mesma grande família.

A Pauliceia em 25 canções

Publicado na “Folha de S.Paulo” (“Revista da Folha”), em 25/1/2004, sob o título “25 músicas inspiradoras”

  1.  “Sampa” (Caetano Veloso) – É quase miraculoso que uma canção com tantas referências cultas tenha se popularizado a ponto se tornar o hino contemporâneo de São Paulo. Que este tenha sido composto (em 78) por um baiano (genial) é também muito significativo.
  2. “Trem das Onze” (Adoniran Barbosa) – Filho único, o sujeito tem de deixar a mulher porque a mãe o espera, em Jaçanã. O hino tradicional da cidade, do mais original dos sambistas paulistas. De 63.
  3. “Saudosa Maloca” (Adoniran Barbosa) – Nenhuma canção expressou como essa, de 55, os efeitos de uma violenta urbanização. Exemplo de uma inventiva linguagem macarrônica.
  4. “Ronda” (Paulo Vanzolini) – Canção de amor obsessivo (de 51) em que o eu-lírico feminino vislumbra no final uma “cena de sangue num bar da avenida São João”. Um dos sambas-símbolos da cidade, de outro criador maior no gênero em SP.
  5. “São São Paulo” (Tom Zé) – O tropicalismo, que só pôde mesmo acontecer aqui, teria que dar, em tons e cores típicas (e no calor da hora, 68), um hino de um outro baiano à cidade.
  6. “Augusta, Angélica e Consolação” (Tom Zé) – Radicado na concreta “cidade-city-cité”, o mesmo baiano nos deu ainda esse belo clássico de 73, em que trata as famosas vias como amantes.
  7. “Orra Meu” (Rita Lee) – O cara só larga da guitarra quando todo o bairro da Pompéia grita. O hino do roqueiro brasileiro, de 80, é coisa nossa; prova-o a expressão-título: tipicamente paulistana.
  8. “Fim de Semana no Parque” (Mano Brown) – O parque em questão é o Ipê, o Regina, o Santo Antônio, bairros da periferia que têm sua tragédia flagrada neste contundente rap de 93 dos Racionais.
  9. “Lampião de Gás” (Zica Bergami) – A graciosa e hoje clássica valsinha já surgiu, em 58, saudosa de uma São Paulo anterior, “calma e serena, que era pequena”.
  10. “Perfil de São Paulo” (Francisco de Assis Bezerra de Menezes) – Samba-exaltação de versos bem-construídos, igualmente nostálgico, datado de 53.
  11. “Samba do Arnesto” (Adoniran Barbosa) – Outro exemplo do humor e da singular linguagem adoniraniana. A história, de 55, se passa no Brás.
  12. “Tradição” (Geraldo Filme) – Samba (provavelmente sessentista) e sambista (negro) históricos de SP, cantando com muita força o Bexiga, o próprio samba e aludindo à Vai-Vai.
  13. “Sinfonia Paulistana” (Billy Blanco) – Conjunto de cançonetas, uma delas com uma melodia das mais identificadas com a cidade. Obra de longo fôlego de um paraense bossa-novista, de 74.
  14. “Lá Vou Eu” (Rita Lee e Luiz Sérgio) – Balada setentista locada “num apartamento perdido na cidade” de Sampa. Outra da “sua mais completa tradução”.
  15. “Sonora Garoa” (Passoca) – Tivesse sido lançada por Elis Regina (figurava no repertório do LP da cantora que não saiu), essa canção urbano-caipira de 81 talvez fosse um clássico hoje. A ser (re)descoberta.
  16. “Venha Até São Paulo” (Itamar Assumpção) – Irresistível convite feito em 93 por quem, nascido às margens do Tietê – em Tietê –, tinha mesmo que vir integrar a vanguarda paulistana.
  17. “São Paulo, São Paulo” (Wandy, Oswaldo, Marcelo, Claus e Biafra) – Declaração de amor e humor (perto do sarcástico) do Premê à metrópole, com uma pertinente paródia a “New York, New York”. Década de 80.
  18. “Pobre Paulista” (Edgard Scandurra) – Rock adolescente do Ira, de 85. Os versos são obscuros, mas o refrão é curto e grosso: “Pobre São Paulo!/ Pobre Paulista!”.
  19. “Pânico em SP” (Antonio Clemente) – Crônica dos Inocentes emblemática do espírito do punk bandeirante então (86) vigente.
  20. “Punk da Periferia” (Gilberto Gil) – Em 83, o grande mestre baiano vestiu a máscara poética do punkeiro nativo da Freguesia do Ó; não foi entendido (por punks da periferia).
  21. “Praça Clóvis” (Paulo Vanzolini) – Amor, ironia e um roubo de carteira no logradouro são os componentes de mais um complexo samba (de 67) do autor.
  22. “A Briga do Edifício Itália com o Hilton Hotel” (Tom Zé) – O título sinaliza o que está de novo em jogo: a imaginação tom-zeana. Safra de 72.
  23. “Paulista” (Eduardo Gudim e Costa Netto) – Samba de amor (de 88) tendo como pano de fundo a avenida e os Jardins.
  24. “Inverno (Anhangabaú da Felicidade)” (Zé Miguel Wisnik) – A mais poética e tocante composição relacionada com a cidade – e seus cidadãos sem cidadania – dos últimos anos (é de 2000).
  25. “São Paulo Gigante (25 de Janeiro)” (Tonico e Ariston Oliveira) – Não poderia faltar uma música caipira para ela e seu aniversário: ei-la, com Tonico e Tinoco.

ESTUDOS

Série com curadoria e direção artística de Carlos Rennó, levada a cabo em 2004, no Museu da Imagem e do Som de São Paulo, na qual cada edição era um misto de palestra e show, dado por artistas contemporâneos da MPB sobre cantores e compositores do passado da música brasileira. Participaram:

Zélia Duncan (em “espetáculo-aula” sobre Aracy de Almeida);
Tom Zé (João Gilberto);
Jorge Mautner (Adoniran Barbosa);
Max de Castro (Ataulfo Alves);
Moreno Veloso (Assis Valente);
Ná Ozzetti (Carmen Miranda);
Luiz Tatit (Dorival Caymmi);
Ruriá Duprat (Radamés Gnatalli);
Carlos Rennó (Lupicínio Rodrigues).

Quadro Negro


de “Pulsar”, de Regina Machado

No sub-imundo mundo sub-humano
Aos montes, sob as pontes, sob o sol
Sem ar, sem horizonte, no infortúnio
Sem luz no fim do túnel, sem farol
Sem-terra se transformam em sem-teto
Pivetes logo se tornam pixotes
Meninas, mini-xotas, mini-putas, de pequeninas tetas nos decotes

Quem vai pagar a conta? Quem vai lavar a cruz?
O último a sair do breu, acende a luz

No topo da pirâmide, tirânica
Estúpida, tapada minoria
Cultiva viva como a uma flor
A vespa vesga da mesquinharia
Na civilização eis a barbárie
É a penúria que se pronuncia
Com sua boca oca, sua cárie
Ou sua raiva e sua revelia

Quem vai pagar a conta? Quem vai lavar a cruz?
O último a sair do breu, acende a luz

O que prometeu não cumpriu
O fogo apagou, a luz extinguiu

Sky Of My Blues


de “Uma Beleza Estranha”, de Daniel Taubkin

2004_Daniel_Taubkin_uma_beleza_estranha_1024

Because you were mine
And love was divine,
So I was in heaven.
What happened
To us I haven´t
Forgotten anymore.

Because love was new,
And I was with you
In your paradise –
Where there were two skies,
Your blue eyes,
And many more.

But I had to lose
The blue of your sky.
Now I have to try
The sky of my blues.

Now I miss your kisses, darling, but even
So, I´m in such and Eden,
Cause ev´rything remains divine
In this pain of mine.

Partas Não

Partas não,
Que tu partes o meu coração.
Se partes daqui,
Se de súbito me apartas de ti,
Oh, meu bem,
Assim me apartas afinal de mim,
Pois também
Parte de mim contigo parte, sim.

Se tu partes,
Tu me partes;
E pra onde fores, onde for,
Pra Paris ou pro Pará,
Para lá irá o meu amor.

Se tu partes,
Tu me partes;
E pra onde fores, onde for,
Pra Paris ou Paraíba,
Para aí irá o meu amor.

Partas não,
Porque tu partes o meu coração
E o meu ser
Em duas partes, meu bem-querer;
Uma aqui,
Aqui onde eu ficarei, sem ti;
Outra lá,
Lá onde fores, minha flor, parar.

Todas Elas Juntas Num Só Ser

de “In Cité: Ao Vivo”, de Lenine
2004_Lenine_Cite_1024

Não canto mais Bebete nem Domingas
Nem Xica nem Tereza, de Ben Jor;
Nem Drão nem Flora, do baiano Gil;
Nem Ana nem Luiza, do maior;
Já não homenageio Januária,
Joana, Ana, Bárbara, de Chico;
Nem Yoko, a nipônica de Lennon;
Nem a cabocla, de Tinoco e de Tonico;

Nem a tigresa, nem a vera gata,
Nem a branquinha, de Caetano;
Nem mesmo a linda flor de Luiz Gonzaga,
Rosinha, do sertão pernambucano;
Nem Risoflora, a flor de Chico Science –
Nenhuma continua nos meus planos.
Nem Kátia Flávia, de Fausto Fawcett;
Nem Anna Júlia, dos Los Hermanos.

Só você,
Hoje eu canto só você;
Só você,
Que eu quero porque quero por querer.

Não canto de Melô pérola negra;
De Brown e Herbert, uma brasileira;
De Ari, nem a baiana nem Maria,
Nem a Iaiá também, nem a faceira;
De Dorival, nem Dora nem Marina
Nem a morena de Itapoã;
De Vina, a garota de Ipanema;
Nem Iracema, de Adoniran.

De Jackson do Pandeiro, nem Cremilda;
De Michael Jackson, nem a Billie Jean;
De Jimi Hendrix, nem a doce Angel;
Nem Ângela nem Lígia, de Jobim;
Nem Lia, Lily Braun nem Beatriz,
Das doze deusas de Edu e Chico;
Até das trinta Leilas de Donato
E da Layla de Clapton eu abdico.

Só você,
Canto e toco só você;
Só você,
Que nem você ninguém mais pode haver.

Nem a namoradinha de um amigo
E nem a amada amante de Roberto;
E nem Michelle-ma-belle, do beatle Paul;
Nem Isabel – Bebel – de João Gilberto;
E nem B.B., la femme de Serge Gainsbourg;
Nem, de Totó, na malafemmena;
Nem a Iaiá de Zeca Pagodinho;
Nem a mulata mulatinha de Lalá;

E nem a carioca de Vinicius
E nem a tropicana de Alceu
E nem a escurinha de Geraldo
E nem a pastorinha de Noel
E nem a namorada de Carlinhos
E nem a superstar do Tremendão
E nem a malaguenha de Lecuona
E nem a popozuda do Tigrão

Só você,
Hoje elejo e elogio só você,
Só você,
Que nem você não há nem quem nem quê.

De Haroldo Lobo com Wilson Batista,
De Mário Lago e Ataulfo Alves,
Não canto nem Emília nem Amélia:
Nenhuma tem meus vivas! e meus salves!
E nem Angie do stone Mick Jagger
E nem Roxanne, de Sting, do Police;
E nem a mina do mamona Dinho
E nem as mina – pá! – do mano Xis!

Loira de Hervê e loira do É O Tchan,
Lôra de Gabriel, o Pensador;
Laura de Mercer, Laura de Braguinha
(L´aura de Daniel, o trovador?);
Ana do Rei e Ana de Djavan,
Ana do outro rei, o do baião:
Nenhuma delas hoje cantarei:
Só outra reina no meu coração.

Só você,
Rainha aqui é só você,
Só você,
A musa dentre as musas de A a Z.

Se um dia me surgisse uma moça
Dessas que, com seus dotes e seus dons,
Inspiram parte dos compositores
Na arte das palavras e dos sons,
Tal como Madelleine, de Jacques Brel,
Ou como Madalena, de Martinho,
Ou Mabellene e a sixteen de Chuck Berry,
Ou a manequim do tímido Paulinho;

Ou como, de Caymmi, a moça pRosa
E a musa inspiradora Doralice;
Se me surgisse uma moça dessas,
Confesso que eu talvez não resistisse;
Mas, veja bem, meu bem, minha querida:
Isso seria só por uma vez,
Uma vez só em toda a minha vida!
Ou talvez duas… mas não mais que três…

Só você…
Mais que tudo é só você;
Só você…
As coisas mais queridas você é:

Você pra mim é o sol da minha noite;
É como a rosa, luz de Pixinguinha;
É como a estrela pura aparecida,
A estrela a refulgir, do Poetinha;
Você, ó flor, é como a nuvem calma
No céu da alma de Luiz Vieira;
Você é como a luz do sol da vida
De Stevie Wonder, ó minha parceira.

Você é para mim e o meu amor,
Crescendo como mato em campos vastos,
Mais que a gatinha para Erasmo Carlos;
Mais que a cigana pra Ronaldo Bastos;
Mais que a divina dama pra Cartola;
Que a domna pra De Ventadorn, Bernart;
Que a honey baby para Waly Salomão
E a funny valentine pra Lorenz Hart.

Só você,
Mais que tudo e todas, só você;
Só você,
Que é todas elas juntas num só ser.