Arquivo da categoria: Fabiana Cozza

As Cotas

O preto, o pardo, o indígena, no final das contas,
O pobre, o excluído, foi levado em conta,
E o colorido das escolas tomou conta,
Num não à colonização e numa afronta
À escravidão e à exclusão escrotas,
Com as cotas.

E de orgulho renovou-se a nossa cota,
E de alegria que revive e não se esgota
E que resgata o sonho, a esperança morta.
E campi renovaram-se com outras
Visões e perspectivas, percepções e óticas,
Com as cotas.

As cotas abrem portas e comportas
Duma represa de potências que brotam,
E mudam mundos, mudam vidas que importam
E que já não hão de passar incógnitas,
E na nação hão de brilhar indômitas,
Com as cotas.

As cotas
Abrem portas…

Pra corrigirmos nosso rumo, nossa rota,
E interrompermos um rosário de derrotas,
E sermos hexa, sermos hepta, sermos octa,
E afirmarmos uma força apoteótica,
E escrevermos uma história de quem opta
Pelas cotas.

As cotas
Abrem portas.

O empenho do cotista dá na vista, isto se nota,
E o desempenho é igual ao que é geral em média e nota.
E é isto que revela cada estudo, cada amostra.
Nas salas, corredores e no campus, tudo mostra
As cores do país do povo de que a gente gosta;
As caras do Brasil que a gente aprova e no que aposta.
E a prova da aprovação das cotas, a resposta
De tal questão, nas universidades tá exposta:
Que racial e socialmente mesmo só se dota
De um corpo discente justo justo se se adotam
As cotas,
As cotas.

As cotas
Abrem portas.

E já que a vil desigualdade nos revolta,
E já se viu que há de vir reviravolta,
E a biodiversidade humana nos exorta,
E um plano de oportunidades mil aporta
E deixa a casa-grande e a branquitude atônitas,
Com as cotas…

E um mero rato de um meritocrata arrota
Seu ideário ideal de ideias rotas,
O deputado que é de fato e que denota
Que é democrático, que não é um hipócrita,
Um bosta, um lambe-botas, não se obsta
E não boicota e não sabota, e vota
Pelas cotas.

As cotas
Abrem portas.

O filho do pedreiro, a filhota
Da faxineira vão ter cota,
E já que nossas cotas são anticaóticas
E antirracistas, dignas de nota,
E antidistópicas porém não são exóticas,
Já que são tópicas e utópicas, são ótimas
Nossas cotas.

As cotas
Abrem portas.

O Relógio do Juízo Final

No mar, no rio, na lagoa, a água clara;
No céu mais limpo, o pôr mais lindo, a imagem rara;
E um ar tão puro que ninguém imaginara.
Por um período breve apenas, anormal,
Na quarentena humana inédita, afinal,
Medrou na cena urbana a vida natural.

E enquanto um índio dono de um saber profundo
Propaga ideias pra adiar o fim do mundo,
Um cara-pálida fascista em potencial,
Negativista violento do real,
Tão virulento quão pandêmico-viral,
Acelera o Relógio do Juízo Final.

Quando é que vamos aprender a diferença
Entre quem quer que a Terra-Gaia lhe pertença
E quem pertence a ela, é dela de nascença?
Somos do mal, o mal da Terra, não o sal.
Matamos a metade do reino animal,
Tamos rapando o vegetal e o mineral.

Se um povo dito primitivo e vagabundo
Trabalha e dança pra adiar o fim do mundo,
A tal da civilização ocidental,
“Desenvolvida, evoluída, racional”,
Queima e arrasa a própria casa, com quintal,
E apressa o Relógio do Juízo Final.

Quando é que vamos nos guiar por uma lógica
Mais ecológica do que mercadológica
Ou econômica, por uma bio-lógica?
Ver que não somos uma espécie central
Na biodiversidade da Terra, da qual
Nós temos sido parasitas, na real.

Enquanto um quilombola de onde é oriundo
Batuca e samba pra adiar o fim do mundo,
O ruralista duma escola colonial,
O pecuarista numa escala industrial,
Monocultura e racismo ambiental,
Adiantam o Relógio do Juízo Final.

E como para o homem vai haver escape se
A emissão de gases atingiu um ápice,
E há previsão de que a Amazônia colapse?
E tá na gênese um “Apocalypse Now”,
Em que a temperatura média mundial
Aumenta igual ou mais que um e meio grau?

Enquanto um cientista de um labor fecundo
Emite alertas pra adiar o fim do mundo,
Negacionistas do aquecimento global,
Negociantes do petróleo, do pré-sal,
Fiéis à fé neoliberal do capital,
Aceleram o Relógio do Juízo Final.

Quando é que vamos acordar em quanto é vão
Um crescimento que produz destruição?
Que não há redenção sem distribuição,
Sem queda na desigualdade social
E na pegada de carbono atual,
E sem um “bem viver” em um “novo normal”?

Enquanto uma ativista foda, que vai fundo,
Protesta e luta pra adiar o fim do mundo,
A companhia múlti, pan, transnacional,
Qual o sinistro antiministro ambiental,
Qual o grileiro, o garimpeiro ilegal,
Acelera o Relógio do Juízo Final.

Pensando nisso tudo, em hora tão dramática,
Temendo nossa sina trágica e errática,
Me assombra a sombra de uma mutação climática
E duma guerra cibernética fatal,
Dum uso mau da inteligência artificial
E dum conflito nuclear final, total.

Se tudo, entanto, pode estar por um segundo,
Eu canto cantos pra adiar o fim do mundo,
Pra me reconectar à mãe original,
Recontactar minha memória ancestral
E ter o júbilo de estar vivo afinal,
Atrasando o Relógio…
Atrasando o Relógio…
Atrasando o Relógio… do Juízo Final.

Oração a Ossain

Orixá que das folhas detém
O segredo que a força repõe,
Ele mesmo um mistério também,
Que se guarda e pouco se expõe;

Me proteja por onde eu caminhe,
Pra que meu coração não definhe,
E me livre daquilo que é ruim
E que tal como um bicho que grunhe
Nos ataca ou nos indispõe;
Que doença comigo nem sonhe.

Na moléstia, me trate, porém,
Com a erva que cura e que vem
Da natura, da mata, da mãe;
Recomponha-me e me acompanhe,
Pois saúde é o bem que se impõe
Mais que ouro, dindim ou bitcoin.

Que meu canto que não se contém
A nenhum outro deus não assanhe,
Pois quem canto, quem chamo e já vem
É Ossain! É Ossain! É Ossain!

Para Onde Vamos?

Para onde vamos? Ah, onde vamos parar?
Nessa encruzilhada, que estrada vamos pegar?
Que perigo de mau tempo, temporal,
De temperatura em alta e de desastre existe pra todos nós afinal?

Que desmatamento ou incêndio ou inundação
Nossos olhos tristes ainda inundarão?
Que geleira tem que ainda derreter,
Pra quebrar a pedra de gelo que tem no peito quem tem um alto e podre poder?

Quanto tempo vamos seguir sem de fato agir
Contra a gana por grana que só faz destruir?
Quantos homens, aos milhares, aos milhões,
Vão morrer de fome e de sede, vítimas de ações de outros homens, de outras nações?

Que será do mundo que vemos, que mundo nós
Deixaremos às gerações que virão após?
Que futuro preparamos, que manhã?
Nosso tino ou desatino hoje define nosso destino aqui amanhã.

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