Todos os posts de Carlos Rennó

Gil aos 70: rimando como sempre – e como nunca

Publicado no jornal “Valor”, em 26/6/2012

Há algumas semanas, no final de uma entrevista com Augusto de Campos dentro de uma série de encontros com poetas na Casa das Rosas, em São Paulo, quando as perguntas se abriram para o público, eu quis saber dele qual a sua visão da rima. Por ser ele um vanguardista, muita gente supõe que esse fenômeno seja de pouca ocorrência em seus poemas, o que não é verdade; de fato, o inventor do concretismo, o mais visual de nossos poetas, rima com bastante freqüência. Além de dizer que em sua poesia a rima participa de um domínio de eventos sonoros de maior abrangência, o das paranomásias, Augusto me respondeu que ela constitui para ele uma oportunidade para promover uma associação inesperada de sentidos a que um poema pode levar.

Imediatamente eu me lembrei do que me disse certa vez Gilberto Gil, a propósito de “Domingo no Parque”, mais exatamente do trecho: “O José como sempre no fim de semana / Guardou a barraca e sumiu / Foi fazer no domingo um passeio no parque / Lá perto da Boca do Rio”. Está registrado no seu comentário sobre a gênese da canção, em “Gilberto Gil – Todas as Letras” (Companhia das Letras; 1996, 2003):

“Algumas pessoas pensam que rima é só ornamento, mas a rima descortina paisagens e universos incríveis; de repente, você se depara no lugar mais absurdo. Eu, que a procuro primeiro na cabeça, no alfabeto interno, […], vejo três fatores simultâneos para a escolha da rima: além do som, o sentido e o necessário deslocamento. Em ´Domingo no Parque´, pra rimar com ´sumiu´, eu cheguei à Boca do Rio (bairro de Salvador). E quando eu pensei na Boca do Rio, me veio um parque de diversões que eu tinha visto, não sei quantos anos antes, instalado lá […]”.

Nada menos que quatro décadas e meia se passaram desde a criação desse grande clássico, que apresentou a primeira grande letra de Gil. Com 25 anos à época, ele apenas começava a aperfeiçoar a sua dicção poética própria, que logo faria dele um grande e genial letrista e, com o tempo, a exemplo de colegas e amigos de profissão e geração da linhagem de Caetano Veloso, Chico Buarque e Jorge Ben Jor, um verdadeiro poeta. Um digno praticante da genuína modalidade de poesia – cantada – que é a letra de música em seus momentos mais especiais, em seus pontos mais altos.

Hoje, ao completar 70 anos de vida e 50 de obra, Gil atesta isto com um imenso conjunto de canções em que pontos luminosos evidenciam o brilhantismo de sua melopeia, a espécie de poesia musical em que a sonoridade e o ritmo orientam os significados das palavras, e na qual a exploração de efeitos sonoros, entre eles a rima, desempenha um papel de enorme relevância. Aproveitando a oportunidade, eu gostaria de chamar a atenção aqui para determinados exemplos (de minha predileção) desses recursos em composições de Gil.

Em matéria de rimário, merecem destaque, ao meu ver, algumas daquelas rimas que são ao mesmo tempo de som e de sentido, e que foram por um certo período a único espécie de rima que Carlos Drummond de Andrade pareceu se permitir praticar. Elas são encontráveis na bela canção que se tornou uma das mais comoventes expressões poético-musicais de compaixão pelas vítimas das desigualdades do mundo, sobretudo as desigualdades sociais no Brasil: “A Novidade” (parceria com os três integrantes dos Paralamas do Sucesso), na qual ocorrem nos pares sereia/baleia e sereia/areia. E se fazem presentes também na canção-jingle “Jurubeba” (jurubeba/beba) e em uma das mais recentes canções de Gil, a forte “Praga” (que eu deixo pra comentar ao fim desse texto).

Gil já praticou igualmente outro tipo formalmente sofisticado de rima, que se dá entre uma palavra e duas ou mais, em “Palco” (cântaro/cantar o), “Metáfora” (metáfora/meta fora) e “O Mar e o Lago” (O Mário Lago/O mar e o lago). E ainda uma outra – cujos termos, homofônicos homógrafos, apresentam contudo sentidos distintos – em grande parte responsável pela graça do refrão de “Punk da Periferia”; aqui, o “Ó” substantivo próprio é imediatamente seguido do “ó” interjeição: um caso, portanto, de rima rica (feita de palavras de classes gramaticais diferentes), tecnicamente falando.

No campo das rimas puras, simples e completas, há também a célebre “Flamengo/Realengo” (poucos substantivos em nossa língua possuem a terminação “engo”), de “Aquele Abraço”, canção de despedida do Rio de Janeiro – e do Brasil, antes da partida para o exílio em Londres, em fins dos anos 60.

Passagem especialmente destacável no rimário gilbertogiliano constitui-se o início de “Pessoa Nefasta”, onde duas sequências de rimas carregadamente aliterativas (uma em efes, esses e tês; outra em bês, esses e tês), algumas internas, como que exprimem, com aspereza, no plano fônico, o sentimento de repulsa e aversão pelo protagonista da canção: “Tu, pessoa nefasta / Vê se afasta teu mal / Teu astral que se arrasta / […]; / Tu, pessoa nefasta / Tens a a aura da besta / Essa alma bissexta…”

Exibindo uma carga mais leve e sutil, mas não menos impressionantes no efeito que causam, há as quase rimas, também aliterativas, que em versos de uma única palavra, sempre seguidos por um longo, estruturam a letra de “Extra”: “Baixa / […] / Acha / […] / Flecha / […] / Puxa / […] / Racha / […]” e “Baixa / […] / Rocha / […] / Bicho / […] / Brecha / […] / Deixa / […]”.

A propósito de aliteração, essa figura de linguagem tão cara a dois outros grandes poetas maiores de nossa música popular – Caetano e Chico – e que contribui notavelmente para a comunicação poética, mais um trecho a ser lembrado é o do delicioso verso de “Marcha da Tietagem”: “Pro mato, pro motel, de moto ou de metrô”. E, com mais virtuosismo ainda, este outro, do rock “Chuck Berry Fields Forever”: “Tambor de tinto timbre tanto tonto tom tocou”. Aqui, como no trecho citado de “Pessoa Nefasta”, a paronomásia adquire funções isomórficas, fazendo sons e sentidos vocabulares corresponderem-se biunivocamente. Ao empregar nada menos que dez tês num verso de catorze sílabas, Gil não teve outro objetivo senão o de mimetizar a sonoridade inebriante dos tambores “trazidos d´África para Américas de Norte a Sul”, do verso imediatamente anterior, que abre a canção.

Por falar em equivalência entre som e sentido (análoga à entre signo e significante), fenômeno que enriquece esteticamente qualquer verso, quando se trata de canção, arte resultante da combinação da música com a poesia, uma correspondência sempre desejável é a que se pode instaurar entre as frases verbais e as musicais: o casamento, enfim, de letra e música. Nesse aspecto, ganham relevo determinados instantes em que uma e outra coisa parecem falar exatamente a mesma linguagem.

Um caso antológico desses acontece em “Beatriz”, de 1982, como apontou o próprio autor da música, Edu Lobo, quando falou o que Chico Buarque fez, ao letrá-la. Colocando a palavra “chão” sobre a nota mais grave, e a palavra “céu” sobre a nota mais aguda da melodia pré-composta por seu parceiro, Chico estabeleceu assim o tão buscado casamento verbo-musical. É claro que tal procedimento colaborou, subconscientemente – isto é: profundamente – para a transmissão da emoção que o poeta quis passar.

Desde a publicação do comentário de Edu, o fato com certeza já foi várias vezes comentado por pessoas ligadas nesses detalhes internos do processo de composição de canções. Mas eu ainda não vi alguém observar que Gil fez a mesma coisa dois anos antes, em “Se Eu Quiser Falar Com Deus”, de 1980. Nessa que também virou um standard da moderna MPB, e em cujas linhas nosso poeta místico-religioso enumera com intensidade de sentimento as posições e atitudes reverentes que ele deve tomar para alcançar o que o título indica, ao final do verso “Tenho que lamber o chão” ele também canta “chão” sobre a nota mais baixa, e do verso “Tenho que subir aos céus”, também a palavra “céus” atinge no canto a nota mais alta da música.

Numa de suas mais recentes canções, “Praga”, feita para sua filha Preta Gil cantar (e para defendê-la de ataques ofensivos feitos covardemente pela internet), Gil escreve: “Que a tua boca suja na internet / Não me alfinete ou canivete nunca mais / Estou pedindo a Deus no meu tablete / Que delete os teus ataques virtuais”. Percebe, leitor, as rimas entre internet, tablete e (internamente) delete? E entre alfinete e canivete? Sim: rimas não só de som, mas também de sentido. Pois é, poesia é (também) isso. Num tempo em que, por força da força de um gênero – o rap – que privilegia o poético, a palavra “rima” se tornou sinônimo de “poesia” (de música), e “rimar”, de “fazer poesia” (cantada ou cantofalada), o poeta-músico Gil, septuagenário, mostra que segue rimando como sempre – e como nunca.

Caetano, em forma e com estilo

Publicado no jornal “Valor”, em 3-4-5/8/2012, sob o título “Caetano Veloso em forma e com estilo”

Se um jovem potencial poeta, para decidir-se pelo ofício ou arte da poesia cantada, precisasse da confirmação de que é possível se fazer poesia de verdade a partir da conjugação de letras e músicas, bastaria a ele ser apresentado à obra de Caetano Veloso. Assim como Bob Dylan, o seu “irmão” contemporâneo norteamericano, Caetano se tornou um grande poeta de nosso tempo, expressando-se no campo da canção popular, como compositor-letrista.

Que, sob o aspecto do fundo, do tema e do conteúdo, a amplitude e a profundidade poética de suas letras sejam facilmente comprováveis, parece não haver dúvida. Ao longo das últimas quase cinco décadas de obra (de suas sete de vida, que se comemoram agora), ele vem demonstrando constantemente ser o cantor libertário por excelência do Brasil moderno. Aquele por cujas canções passam, em visões agudas e interpretações finas, as transformações, os anseios e os problemas centrais de nossa sociedade nos campos social, político, estético, individual e comportamental.

No entanto, simultaneamente ao que ocorre no terreno dos significados, também nos domínios da forma e do estilo – no plano concreto da linguagem poética – evidencia-se e se confirma tal alto grau de qualidade poética aplicada à música. Cabem aqui alguns exemplos disso.

É notável a destreza com que ele maneja, exibindo um rigor espontâneo, formas poético-literárias há muito estabelecidas e praticadas, para além das redondilhas maiores de “Alegria Alegria” e menores de “Lua de São Jorge”. Assim, duas canções lindíssimas como “O Quereres” e “Cajuína” são feitas de versos metrificados de medidas mais longos e eloqüentes; a primeira, letra de longo fôlego, de oito estrofes de seis decassílabos cada, e a segunda, de uma única estrofe de oito dodecassílabos.

Ao mesmo tempo Caetano é capaz de incursionar com igual naturalidade em terreno mais movediço, o da vanguarda, escrevendo letras no limite entre a canção e o poema concreto, como “Julia/Moreno” e “De Palavra em Palavra”, ambas faixas de um disco deliberadamente experimental, “Araçá Azul”, de 1972 (a segunda, não à toa, dedicada ao poeta e amigo de sempre Augusto de Campos). E outras marcadas pela presença de palavras-valise, de inspiração joyceana, como a tropicalista “Acrilírico” (onde cintilam termos como “colírico”, “telástico”, “grandicidade”, “Santo Amargo da Putrificação”) e “Outras Palavras”, de 1981.

Nesta, em mais um texto de fatura extensa, reponta a última estrofe, toda ela construída com esses vocábulos compostos, inventados (usados pioneiramente por Lewis Carroll e posteriormente por James Joyce em seu livro formalmente mais radical, Finnegans Wake). De modo sugestivamente libertário, empregando termos de conotação sexual, Caetano a finaliza com essas – “outras” – palavras: “Lambetelho frúturo orgasmaravalha-me, Logun / Homenina nel paraís de felicidadania”.

Pelas referências eruditas que fazem, explícita ou implicitamente, várias letras suas correspondem ao que, no contexto literário, é chamado de cult poetry. Assim, numa simples e graciosa canção de amor como “Lindeza”, podemos nos deparar surpreendentemente com duas definições de beleza, uma dada pelo poeta romântico inglês John Keats (“Uma alegria pra sempre”, citação do célebre verso “A thing of beauty is a joy forever”), a outra pelo romancista realista francês Stendhal (“Promessa de felicidade”, da frase “La beauté n´est que la promesse du bonheur”).

O procedimento constitui um elemento do estilo de Caetano desde os tempos de tropicalismo, quando o refrão de “Os Argonautas” (“Navegar é preciso, viver não é preciso”) citou Fernando Pessoa – o “ele mesmo”, o de “Mensagem”. Outro escritor de língua portuguesa, o poeta maranhense Sousândrade, que na época do Romantismo viveu em Nova York e escreveu um espantoso poema épico mesclando índios sulamericanos e Wall Street, “O Guesa”, também é apropriadamente referido em “Manhatã”, na qual o cantor-compositor baiano rima “cunhã” com “Manhattan”.

De Sousândrade, poeta por longo tempo marginalizado e resgatado a partir dos anos 1960 pelos irmãos Augusto e Haroldo de Campos num importante trabalho de caráter revisionista, Caetano musicou um enigmático verso – “Gil-engendra em gil rouxinol…” – que dessa forma se transformou na canção “Gil Misterioso”. Outra musicalização de sua autoria foi feita para “O Pulsar”, de Augusto. É significativo que o trabalho – uma transposição, para a linguagem sonora, de um poema visual, empregando uma solução simples e perfeita – tenha sido elogiado por ninguém menos que o compositor norte-americano John Cage, ícone da música de vanguarda do século 20, e se tornado ainda por cima um hit (para os padrões da poesia experimental).

E como não pensar que o verso final da letra de “A Rã”, feita sobre música de João Donato, mais do que uma oblíqua alusão, seja uma espécie de tradução, para o plano musical, do superclássico haikai do sapo na água, de Bashô? É o que podemos depreender da observação feita pelo compositor, cantor, escritor e professor de Literatura Brasileira José Miguel Wisnik, que na frase “A rama, o sapo, o salto de uma rã” destacou a relação isomórfica, verbo-musical, que se estabelece quando a sílaba “sal”, de “salto”, é cantada uma nota acima daquela em que são cantadas as sílabas das demais palavras do verso. Tipo da correspondência existente na transcrição original do poema, em cujo desenho o salto é sugerido, numa relação de afinidade entre signo e significado própria da natureza do ideograma.

Aqui, que tal lançarmos um olhar um pouco mais fundo para o refrão de “A Luz de Tieta”? “Eta, eta, eta, eta / É a lua, é o sol, é a luz de Tieta / Eta, eta!”? Não bastasse o fato de que a rima, além de agradável aos ouvidos, é rica por se dar entre termos de classes gramaticais distintas (sendo uma delas uma interjeição, o que a torna ainda menos comum), há o fato de que, na escrita chinesa, o ideograma de luz é formado pela sobreposição dos ideogramas de lua e de sol… Não nos enganemos: Caetano é profundo mesmo quando não parece ser. Eis por que, quando ele não nos parece ser, exige de nosso olhar que assim seja: profundo.

É natural que, por essas e muitas outras, sua poesiamúsica seja objeto da observação e da admiração de poetas. Décio Pignatari, num pequeno livro chamado “Comunicação Poética”, chama a atenção, no verso “Acho que a chuva ajuda a gente a se ver”, para a aliteração de consoantes fricativas (ch, j, g), cujo som, chiado, parece sugerir o da chuva. Esses fonemas aparecem ao longo da maior parte da letra (como em seus versos-chave: “A gente se olha, se beija, se molha/ De chuva, suor e cerveja”), num frevo que afinal de contas trata do que diz seu título: “Chuva, Suor e Cerveja”.

Em “Sampa”, rebrilha a sonoridade das aliterações da linha: “Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas”. As em vês e efes, particularmente, como que acentuam a expressão do sentido do verso – que lembra os problemas da parcela da população com menos recursos –, já que seu modo de articulação em série representa certa dificuldade de pronúncia, por exigirem que a passagem do ar se dê por um espaço estreito do buraco da boca.

“Sampa”, diga-se, constitui uma síntese do que se está querendo dizer aqui. Como se não bastasse a intrincada construção de trechos como “E à mente apavora o que ainda não é mesmo velho / Nada do que não era antes quando não somos mutantes” (e o que dizer de “Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso”?), há ainda o caráter carregadamente alusivo de certos versos que os vincularia mais a uma poesia literária, erudita: “Tuas oficinas de florestas, teus deuses da chuva / Pan-Américas de Áfricas utópicas, túmulo do samba / Mas possível novo quilombo de Zumbi”.

É quase inacreditável que uma canção assim tenha se tornado tão popular como é. Deve ser motivo de orgulho para São Paulo que ela o seja. Da mesma forma que um poeta como Caetano tenha, entre nós, brasileiros, a popularidade que tem.

Paixão


de “Alta Fidelidade”, de Wilson Simoninha

2013_Simoninha_Alta_Fidelidade_1024

Que maravilha é meu time
Que entorna o céu aqui no chão
Pois não há nada mais sublime
Que ver meu time campeão

Em meio aos fogos e ao frisson
Eu grito com
entusiasmo
Os grandes jogos são um show
E cada gol
é um orgasmo

É campeão! – E eu vou com tudo
Com o escudo bem no coração
Um coração que ri e chora
E comemora cheio de paixão

Uma paixão assim absurda
Ninguém exprime numa frase, não
Devo dizer, sem o meu time
Eu não concebo a vida, meu irmão

Meu time agora me eletriza
E o seu hino eu vou cantar
Com a bandeira e a camisa
E mil buzinas pelo ar

Somente Nela

Estar apaixonado é uma coisa louca,
Que alguém lhe causa e você mal dorme.
Se perto desse alguém a eternidade é pouca,
Distante, cada instante é um tempo enorme.
Estar apaixonado é mesmo uma doença,
Que alguém lhe passa e aí você mal come.
Tão-só nessa pessoa você pensa,
Enquanto a outra fome o consome.

´Tava tremendo, com febre e com frio,
A estremecer de amor por causa dela.
Corria a minha espinha um arrepio,
E eu nem pensava em mim, somente nela.

Eu ria e chorava um rio;
Nunca uma dor foi tão bela.
Por dias, noites e horas a fio
Eu nem pensava em mim, somente nela.

Estar apaixonado é parecer um ser ridículo
E não estar com isso nem aí.
Você se sente livre e solto mesmo num cubículo,
Tal como eu me sentia então ali.

Em sons e sentidos, Caetano não tem fim

Publicado na revista “L’Officiel Brasil”, em agosto de 2012, sob o título “Outras palavras”

Existe uma coisa fundamental para a comunicação da beleza numa letra de música: a sonoridade das palavras. Além do sentido, é o som delas, cantadas, que faz uma canção nos arrebatar com um poder de sedução tal, que às vezes nem temos consciência do que fez com que nos encantássemos e nos persuadíssemos.

Entre dezenas de compositores muito bons nisso, há alguns, raros e caros, que já deixaram a sua marca indelével na história dessa arte. Cole Porter foi um deles. Um outro é Caetano Veloso. Esse velho sempre novo, agora com setenta anos, não se cansa de nos brindar com exemplos da mais aperfeiçoada combinação de palavras e sons em poesia de música. Em suas letras, a força e a graça poéticas não provém apenas do que é dito, mas também de como é dito. O que elas são deve muito ao como elas soam.

Inventivo por excelência, Caetano já começou desarvorando: foi dos primeiros a usar uma rima que até então nem era considerada rima em MPB, a toante (em que só as vogais rimam, não as consoantes). Rima de origem pop, empregada no rock´n´roll desde os anos 50 e no blues desde os anos 20 do século passado, nos Estados Unidos. E ao mesmo tempo erudita, introduzida em nossa literatura pelo poeta João Cabral de Melo Neto, que a assimilou da poesia de língua inglesa modernista.

“Alegria Alegria” está cheia delas: guerrilhas / bonitas, nome / telefone, preguiça /notícia. Nesse sentido, porém, uma outra canção do período tropicalista, a belíssima “A Tua Presença”, é paradigmática: as quinze palavras que nela rimam terminam em e-a, na maioria das vezes como toantes: cabeça, orelhas, presença, pernas, amarela, negra, janelas, motocicletas, reza, sangrenta… Mais tarde, ele forjaria outro clássico somente com rimas com a terminação i-o, quase todas toantes, “Oração ao Tempo” (“És um senhor tão bonito / Quanto a cara do meu filho / Tempo tempo tempo tempo / Vou te fazer um pedido”).

E o que dizer de rimas raras, novas, imprevistas, como mãe / champagne (em “Meu Bem, Meu Mal”)? Ou como rapte-me, adapte-me e capte-me ressoando, simplesmente, em up to me (em “Rapte-me, Camaleoa”)?

Ou então, mais sofisticadas ainda, aquelas que se dão entre uma palavra e duas ou mais, muito mais facilmente encontráveis em poesia inglesa e norteamericana por causa da estrutura do idioma, cheio de monossílabos. Em “Trilhos Urbanos” há a célebre rima interna dos versos “Pena de pavão de Krishna / Maravilha, vixe Ma-/ria mãe de Deus”. E, menos conhecidas, mas até mais abusadas, as de “Escândalo”, canção feita para Ângela Rô Rô cantar: sândalo / sã da lo(ucura), vândalo e escândalo / irmã-luz, manhã da luz e maçã da lux(úria) /escândalo.

Um fator a mais a chamar a atenção nessas rimas é o fato de a coincidência fônica não se dar entre os finais das palavras, mas entre o fim de uma e o começo de outra. Em matéria de rimário, Caetano é, sim, um luxo, um escândalo.

Melopeia é o nome que se dá para a modalidade poética na qual as palavras estão impregnadas de propriedade musical. As rimas desempenham um papel muito importante aqui, mas, além delas, há as aliterações – as sequências de fonemas caracterizados pela repetição de consoantes de espécies similares, que contribuem para a criação de um efeito sonoro esteticamente interessante. Também aqui Caetano exubera.

Lembremo-nos de um verso de “London London”, feita no exílio. Não bastasse o vigor da imagem que lança na imaginação do receptor – de notável força de síntese de um lugar e de um tempo, colaborando para a transmissão da emoção de um sentimento de profunda melancolia passada pela canção –, a sucessão das sílabas é de um poder encantatório: “Green grass, blue eyes, grey Sky, God bless [Silent pain…]”. Por quê? Por causa da sequência de três grs (além de um quarto gê) e de dois bls, além da proximidade de três ditongos, dois em ai e um em ei.

Outro verso antológico merece alusão aqui: “Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas”, de outro clássico, “Sampa”, de 1978. A Caetano podem ter ocorrido primeiramente os termos “nas filas, nas vilas”, e ele ter então sentido necessidade de completar a linha com um plus de inventividade, já que fila e vila, aliterando, já haviam sido usadas por Chico Buarque – outro gênio das aliterações – alguns anos antes, na absurdamente linda “Flor da Idade” (“A gente faz hora, faz fila, na vila do meio-dia/ Pra ver Maria”), que o baiano, com toda razão, adora e até já gravou. Nesse sentido, a complementação do seu verso foi genial, pois favelas vem complementar filas e vilas tanto em termos semânticos quanto sônicos, com suas sílabas em efe, vê e ele.

E em “Vaca Profana”, com suas referências a Madri e Barcelona, o que temos? Nada menos que essa marcadíssima sequência de pês (além de duas sílabas em enes e o atrito de ks com cas: “Napoli, Pino, Pi, Pau, punks / Picassos… ”. E em “A Rã”? Essa lindeza, remetendo ao célebre haikai de Bashô: “A rama, o sapo, o salto de uma rã”. Na qual ressalta não apenas a sucessão de ras, mas e sas, mas também os elementos anagramáticos de “rama” e “uma rã”.

Anagramas. Por falar nos tais, todo o refrão de uma composição dos anos 2 mil – “Zera a Reza” – é erguido, barrocamente, com exemplares deles: “Vela leva a seta tesa / Rema na maré / Rima mira a terça certa / E zera a reza”. Uma outra, dos 80, “Itapuã” – bela canção de reminiscências do início da vida amorosa com a primeira mulher do artista – traz o verso “Itapuã, tuas lamas, algas, almas que amalgamas”, em que a última palavra, “amalgamas”, literal, concreta e efetivamente amalgama os termos imediatamente anteriores – “lamas, algas, almas”…

(Em “Gente”, por sinal, ocorre algo semelhante no verso “Gente quer respirar ar pelo nariz”, em que o fonema “ar”, integrante de “respirAR”, entra literalmente – literalmente mesmo – “pelo nariz”, no meio, por dentro da palavra “nARiz”).

Indo mais longe, dos três anagramas do samba “Os Passistas” – cada um ocorrendo precisamente no mesmíssimo ponto de cada uma das estrofes –, dois constituem-se também em palíndromos: Roda / a dor e Roma / amor.

Assim como em termos de sentido, também em matéria de sons, Caetano não tem fim.

Noite e Dia (Night and Day)

Como o beat-beat-beat do tantã,
Quando à selva desce um breu;
Como o tique-tique-taque sem nenhum destaque
De um relógio como o meu;
Como o pingo-pingo-pingo das gotas,
Quando já choveu pra chuchu;
Uma voz em mim repete assim: tu, tu, tu…

Noite e dia, só tu, meu bem,
Sob a Lua e sob o Sol não há mais ninguém.
Longe ou perto, coração,
Não importa onde estejas, não,
Eu penso em ti noite e dia.

Dia e noite, por que será
Que a paixão por ti me segue por onde eu vá?
No rumor das ruas, oh,
No silêncio do meu quarto só,
Eu penso em ti, noite e dia.

Noite e dia, bem fundo, ai de mim,
Uma fome tamanha teima, queima e não sai de mim.
Pra ter fim o meu sofrer,
Deixa te fazer amor enquanto eu viver,
Dia e noite, noite e dia.

____________________________________________________

Night and Day

Like the beat beat beat of the tom-tom
When the jungle shadows fall,
Like the tick tick tock of the stately clock
As it stands against the wall,
Like the drip drip drip of the raindrops
When the summer shower is through,
So a voice within me keeps repeating: you – you – you.

Night and day, you are the one,
Only you beneath the moon and under the sun.
Whether near to me or far,
It´s no matter, darling, where you are,
I think of you day and night.

Night and day, why is it so
That this longing for you follows wherever I go?
In the roaring traffic´s boom,
In the silence of my lonely room,
I think of you night and day.

Night and day, under the hide of me
There´s an, oh, such a hungry yearning burning inside of me.
And its torment won´t be through,
Till you let me spend my life making love to you,
Day and night, night and day.

Música e letra de Cole Porter
1935

Noite e Dia (Night and Day)

Como o beat-beat-beat do tantã,
Quando à selva desce um breu;
Como o tique-tique-taque sem nenhum destaque
De um relógio como o meu;
Como o pingo-pingo-pingo das gotas,
Quando já choveu pra chuchu;
Uma voz em mim repete assim: tu, tu, tu…

Noite e dia, só tu, meu bem,
Sob a Lua e sob o Sol não há mais ninguém.
Longe ou perto, coração,
Não importa onde estejas, não,
Eu penso em ti noite e dia.

Dia e noite, por que será
Que a paixão por ti me segue por onde eu vá?
No rumor das ruas, oh,
No silêncio do meu quarto só,
Eu penso em ti, noite e dia.

Noite e dia, bem fundo, ai de mim,
Uma fome tamanha teima, queima e não sai de mim.
Pra ter fim o meu sofrer,
Deixa te fazer amor enquanto eu viver,
Dia e noite, noite e dia.

Night and Day

Like the beat beat beat of the tom-tom
When the jungle shadows fall,
Like the tick tick tock of the stately clock
As it stands against the wall,
Like the drip drip drip of the raindrops
When the summer shower is through,
So a voice within me keeps repeating: you – you – you.

Night and day, you are the one,
Only you beneath the moon and under the sun.
Whether near to me or far,
It´s no matter, darling, where you are,
I think of you day and night.

Night and day, why is it so
That this longing for you follows wherever I go?
In the roaring traffic´s boom,
In the silence of my lonely room,
I think of you night and day.

Night and day, under the hide of me
There´s an, oh, such a hungry yearning burning inside of me.
And its torment won´t be through,
Till you let me spend my life making love to you,
Day and night, night and day.

Música e letra de Cole Porter
1935

Escrito nas Estrelas

Você pra mim foi o sol
De uma noite sem fim
Que acendeu o que sou,
Pra renascer tudo em mim.
Agora eu sei muito bem
Que eu nasci só pra ser
O seu parceiro, seu bem, (*)
E só morrer de prazer.

Caso do acaso bem marcado em cartas de tarô,
Meu amor, esse amor de cartas claras sobre a mesa
É assim.
Signo do destino, que surpresa ele nos preparou;
Meu amor, nosso amor estava escrito nas estrelas,
Tava, sim.

Você me deu atenção
E tomou conta de mim.
Por isso, minha intenção
É prosseguir sempre assim.
Pois sem você, meu tesão,
Não sei o que eu vou ser;
Agora preste atenção:
Quero casar com você.

_____________________

Variante:
(*) Sua parceira, seu bem,

Soneto de Glauco Mattoso sobre estrelas citando Carlos Rennó

#5024 CRENÇA SUSPENSA [29/12/2011]

Na roça, um céu de estrellas é bonito.
Novella sem estrellas não tem graça.
Bilac, ouvindo estrellas, tempo passa.
Rennó lê nas estrellas algo escripto.

David, pelas estrellas, foi bemdicto.
De esquerda, enchem estrellas uma praça.
Natal exige estrellas: que Elle nasça!
Maldicto, em más estrellas acredito.

Estou cego, não posso mais revel-as,
mas lembro-me das ultimas que vi:
brilhavam, scintillantes, taes estrellas.

Chamadas de “escotomas”, bem aqui,
no fundo do meu olho, as vi: foi, pelas
fugazes, breves luzes, que em Deus cri.

Segunda Pele


de “Segunda Pele”, de Roberta Sá

2011_Roberta_Sa_Segunda_Pele_1024

À noite eu lhe convido:
“Querido, vem pra cá”
Um som no seu ouvido
Sussurra logo: “Vá!”
Por perto alguma gata
Já grita que nem fã
E logo o amor nos ata
Na noite, nossa irmã

Quando ele vem, faço dele
Minha luva, meu colant
A minha segunda pele
O meu cobertor de lã

São Paulo tá tão frio
Três graus, a sensação
Mas o seu arrepio
Não é de frio, não
Sou eu na sua pele
Que afago com afã
Pra que seu fogo pele
A sua anfitriã

Quando ele vem, faço dele
Minha luva, meu colant
A minha segunda pele
O meu cobertor de lã

Enquanto a noite passa
Aos braços da manhã
A gente ainda passa
Os dentes na maçã
O nosso amor é massa
Pra lá de Amsterdan
O resto é o resto, e passa
O resto é espuma, é spam

Quando ele vem, faço dele
Minha luva, meu colant
A minha segunda pele
O meu cobertor de lã

Quando ele vem, faço dele
Minha luva ou sutiã
A minha segunda pele
O meu cobertor de lã

Hasta! *

* Versão Feminina

Que amor é esse…
Mais parece desamor.
Você ama odiar
Aquilo que cê ama, o seu amor.
Você me aborrece,
Corta o meu tesão;
Por qualquer razão, sem razão,
Arma logo um barraco no meu barracão.

Que amor, que nada…
Quem entende o seu humor
E o seu gosto em desgostar
Aquela que cê gosta, o seu amor?!
Isso me enfada;
Foda, meu irmão;
E como reclama, oh não;
Inclusive na cama faz reclamação.

Basta!
Você só me afasta de você.
Pasto
E só me desgasto com você.
Paz!
Disso eu sou capaz,
Vou seguir em paz sem você.
Basta!
Hasta!

Desse amor me arranco,
Pra fugir do seu rancor.
Você briga por brigar
Com sua grande amiga, o seu amor.
Você nem é franco;
Homem sem noção.
Eu perco a razão, com razão,
Se você cria caso e causa discussão.

Basta!
Você só me afasta de você.
Pasto
E só me desgasto com você.
Paz!
Disso eu sou capaz,
Vou seguir em paz sem você.
Basta!
Hasta!

Hasta!

Que amor é esse…
Mais parece desamor.
Você ama odiar
Aquilo que cê ama, o seu amor.
Você me aborrece,
Corta o meu tesão;
Por qualquer razão, sem razão,
Arma logo um barraco no meu barracão.

Que amor, que nada…
Quem entende o seu humor?
E o seu gosto em desgostar
Aquele que cê gosta, o seu amor?!
Você me enfada;
Fada, não é não;
Por qualquer razão, sem razão,
Vira logo uma bruxa sem nenhum condão.

Basta!
Você só me afasta de você.
Pasto
E só me desgasto com você.
Paz!
Disso eu sou capaz,
Vou viver em paz sem você.
Basta!
Hasta!

Desse amor de louca
Eu me arranco do rancor.
Você briga por brigar
Com seu maior amigo, o seu amor.
Você me provoca, (*)
Mulher sem noção.
Eu perco a razão, com razão,
Se você cria caso e causa discussão.

_______ ______ ___________
Variante:

(*) Você não se toca,

Envergo, Mas Não Quebro

de “Chão”, de Lenine
2011_Lenine_Chao-2_1024

Se por acaso eu pareço
Que agora já não padeço
De um mau pedaço na vida,
Saiba que minha alegria,
Como é normal, todavia,
Com a dor é dividida.

Eu sofro igual todo mundo,
Eu somente não me afundo
Em um sofrimento infindo;
Eu posso até ir ao fundo
De um poço de dor profundo,
Mas volto depois sorrindo.

Em tempos de tempestades,
Diversas adversidades,
Eu me equilibro e requebro;
É que eu sou tal qual a vara
Bamba de bambu-taquara:
Eu envergo, mas não quebro.

Não é só felicidade
Que tem fim, na realidade
A tristeza também tem.
Tudo acaba se inicia,
Temporal e calmaria,
Noite e dia, vai e vem.

E quando é má a maré,
E quando já não dá pé,
Não me revolto ou me queixo,
E tal qual um barco solto,
Salvo do alto-mar revolto,
Volto firme pro meu eixo.

E em noite assim como esta,
Eu cantando numa festa,
Ergo meu copo e celebro
Os bons momentos da vida –
E nos maus tempos da vida
Eu envergo, mas não quebro.

Terra Desolada

Um silêncio, um vazio,
Quase nem um pio.
Um calor, um calafrio;
Um clarão sombrio.

Vida seca, torta, morta
Pelo fogo mau;
Matagal agora só
É pedra, pó,
Fumaça e tocos…

Homens ocos, homens loucos,
Grandes vândalos!
Longa noite, que demanda luz…

Rastro de destruição,
Resto de tição.
Aves, árvores no chão;
Dor no coração.

Terra desolada
E assolada afinal;
Mata desmatada ao sol,
Queimada ao sol,
Sem vigilância.

Oh ganância, ignorância,
Que nos causa horror,
Indignado ódio, dó e dor!

Isso É Só o Começo


2011_Lenine_Chao-2_1024

Aqui chegamos enfim
A um ponto sem regresso
Ao começo do fim
De um longo e lento processo
Que se apressa a cada ano
Como um progresso insano
Que marcha pro retrocesso

Estranhos dias vivemos
Dias de eventos extremos
E de excessos em excesso
Mas se com tudo que vemos
Os olhos viram do avesso
Outros eventos veremos
Outros, extremos, virão
Prepare seu coração
Que isso é só o começo

Aqui estamos porém
Num evento diferente
Onde a gente se entretém
Um ao outro, frente a frente
Deixando um pouco ao fundo
O ambiente do mundo
Por esse aqui, entre a gente

Assim nesse clima quente
No espaço e tempo presente
Meu canto eu lanço, não meço
Minha rima eu arremesso
Pra que nada fique intacto
E tudo sinta o impacto
Da ação de cada canção
Preparem-se, irmã, irmão
Que isso é só o começo

Todas Elas Juntas Num Só Ser

de “Ensaio de Cores – Ao Vivo”, de Ana Carolina

2011_Ana_Carolina_Ensaio_de_cores_ao_vivo_1024

Não canto mais Bebete nem Domingas
Nem Xica nem Tereza, de Ben Jor;
Nem Drão nem Flora, do baiano Gil;
Nem Ana nem Luiza, do maior;
Já não homenageio Januária,
Joana, Ana, Bárbara, de Chico;
Nem Yoko, a nipônica de Lennon;
Nem a cabocla, de Tinoco e de Tonico;

Nem a tigresa, nem a vera gata,
Nem a branquinha, de Caetano;
Nem mesmo a linda flor de Luiz Gonzaga,
Rosinha, do sertão pernambucano;
Nem Risoflora, a flor de Chico Science –
Nenhuma continua nos meus planos.
Nem Kátia Flávia, de Fausto Fawcett;
Nem Anna Júlia, dos Los Hermanos.

Só você,
Hoje eu canto só você;
Só você,
Que eu quero porque quero por querer.

Não canto de Melô pérola negra;
De Brown e Herbert, uma brasileira;
De Ari, nem a baiana nem Maria,
Nem a Iaiá também, nem a faceira;
De Dorival, nem Dora nem Marina
Nem a morena de Itapoã;
De Vina, a garota de Ipanema;
Nem Iracema, de Adoniran.

De Jackson do Pandeiro, nem Cremilda;
De Michael Jackson, nem a Billie Jean;
De Jimi Hendrix, nem a doce Angel;
Nem Ângela nem Lígia, de Jobim;
Nem Lia, Lily Braun nem Beatriz,
Das doze deusas de Edu e Chico;
Até das trinta Leilas de Donato
E da Layla de Clapton eu abdico.

Só você,
Canto e toco só você;
Só você,
Que nem você ninguém mais pode haver.

Nem a namoradinha de um amigo
E nem a amada amante de Roberto;
E nem Michelle-ma-belle, do beatle Paul;
Nem Isabel – Bebel – de João Gilberto;
E nem B.B., la femme de Serge Gainsbourg;
Nem, de Totó, na malafemmena;
Nem a Iaiá de Zeca Pagodinho;
Nem a mulata mulatinha de Lalá;

E nem a carioca de Vinicius
E nem a tropicana de Alceu
E nem a escurinha de Geraldo
E nem a pastorinha de Noel
E nem a namorada de Carlinhos
E nem a superstar do Tremendão
E nem a malaguenha de Lecuona
E nem a popozuda do Tigrão

Só você,
Hoje elejo e elogio só você,
Só você,
Que nem você não há nem quem nem quê.

De Haroldo Lobo com Wilson Batista,
De Mário Lago e Ataulfo Alves,
Não canto nem Emília nem Amélia:
Nenhuma tem meus vivas! e meus salves!
E nem Angie do stone Mick Jagger
E nem Roxanne, de Sting, do Police;
E nem a mina do mamona Dinho
E nem as mina – pá! – do mano Xis!

Loira de Hervê e loira do É O Tchan,
Lôra de Gabriel, o Pensador;
Laura de Mercer, Laura de Braguinha
(L´aura de Daniel, o trovador?);
Ana do Rei e Ana de Djavan,
Ana do outro rei, o do baião:
Nenhuma delas hoje cantarei:
Só outra reina no meu coração.

Só você,
Rainha aqui é só você,
Só você,
A musa dentre as musas de A a Z.

Se um dia me surgisse uma moça
Dessas que, com seus dotes e seus dons,
Inspiram parte dos compositores
Na arte das palavras e dos sons,
Tal como Madelleine, de Jacques Brel,
Ou como Madalena, de Martinho,
Ou Mabellene e a sixteen de Chuck Berry,
Ou a manequim do tímido Paulinho;

Ou como, de Caymmi, a moça pRosa
E a musa inspiradora Doralice;
Se me surgisse uma moça dessas,
Confesso que eu talvez não resistisse;
Mas, veja bem, meu bem, minha querida:
Isso seria só por uma vez,
Uma vez só em toda a minha vida!
Ou talvez duas… mas não mais que três…

Só você…
Mais que tudo é só você;
Só você…
As coisas mais queridas você é:

Você pra mim é o sol da minha noite;
É como a rosa, luz de Pixinguinha;
É como a estrela pura aparecida,
A estrela a refulgir, do Poetinha;
Você, ó flor, é como a nuvem calma
No céu da alma de Luiz Vieira;
Você é como a luz do sol da vida
De Stevie Wonder, ó minha parceira.

Você é para mim e o meu amor,
Crescendo como mato em campos vastos,
Mais que a gatinha para Erasmo Carlos;
Mais que a cigana pra Ronaldo Bastos;
Mais que a divina dama pra Cartola;
Que a domna pra De Ventadorn, Bernart;
Que a honey baby para Waly Salomão
E a funny valentine pra Lorenz Hart.

Só você,
Mais que tudo e todas, só você;
Só você,
Que é todas elas juntas num só ser.

Tá?

de “Tempo de Menino”, de Pedro Luis
2011_Pedro_Luis_Tempo_de_menino_1024

Pra bom entendedor meia palavra bas-
Eu vou denunciar a sua ação nefas-
Você amarga o mar, desflora a flores-
Por onde você passa, o ar você empes-
Não tem medida a sua sanha imediatis-
Não tem limite o seu sonho consumis-
Você deixou na mata uma ferida expos-
Você descora as cores dos corais na cos-
Você aquece a terra e enriquece à cus-
Do roubo do futuro e da beleza augus-
Mas de que vale tal riqueza, grande bos-
Parece que de neto seu você não gos-
Você decreta morte à vida ainda em vis-
Você declara guerra à paz por mais benquis-
Não há em toda a fauna um animal tão bes-
Mas já tem gente vendo que você não pres-
Não vou dizer seu nome porque me desgas-
Pra bom entendedor meia palavra bas-

Rio Moderno

O Rio, cidade que é sede
Dos jogos do amor, excede
Em convites que são mais de mil
E vão do mais óbvio e vil
Ao mais tênue, mais sutil,
E fazem do Rio o Rio.
E quem teme ou não topa o que é bom
Do Leme até o Leblon
E em Copa do réveillon,
Do Posto 6, de Drummond? (1)
Do Sambódromo do semi-nu,
De um carnaval com glamour,
A um discreto Grajaú,
Sempre se rompe um tabu.
A beleza da força no ar
Da natureza invulgar
Desse lugar singular
Convida-nos a amar.

O Rio, cidade com sede
De fogo de amor, concede (2)
Liberdade para azaração,
Points, mato de montão
Para caça e pegação.
Praia, praça, calçadão.
Ipanema de cada sereia-
Gata sarada na areia,
De tanta bandeira gay a
Fazer olhar quem vagueia.
O ao redor da Rodrigo de Freitas,
Onde tu, amigo, espreitas
Perfis e pernas perfeitas,
Sonhando com quem te deitas.
E quem quer ficar só, por azar? (X)
Lá na Lapa em cada bar,
Ao som do samba no ar,
Sorte de quem azarar!

O Rio, cidade que é sede
Dos jogos do amor, se excede
Na cachorra do morro que excita
O baile em que ela exorbita
No sexo que se explicita
No funk que ela exercita.
Mas o Cristo afinal Redentor
Vem abençoar o suor
De um par adorando o pôr
Agora no Arpoador.
A visão da baía que é duca
Causa a vertigem maluca
E eu quase morro da Urca
Ao pico do Pão de Açúcar.
Uma louca sugesta no ar,
De festa a se preparar,
De êxtase par e par,
Convida-nos a ficar.

Uma louca sugesta no ar,
De festa a se preparar,
De êxtase par e par,
Convida-nos a trepar.

*

Cole Porter e George Gershwin – Canções, Versões (relançamento)

2010_Carlos_Renno_Cole_Porter_George_Gerschwin_1024

“Cole Porter e George Gershwin – Canções, Versões” (Geléia Geral, 2000; Biscoito Fino, 2010) – CD com produção artística de Carlos Rennó e versões para o português, de sua autoria, de canções dos dois compositores cantadas por nomes da MPB (Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, Elza Soares, Rita Lee, Tom Zé, Cássia Eller, Zélia Duncan, Sandra de Sá, Paula Toller, Ed Motta, Carlos Fernando, Jane Duboc, Jussara Silveira e Mônica Salmaso). Produção musical de Rodolfo Stroeter.

“Cole Porter e George Gershwin – Canções, Versões”

projeto, produção artística e versões de Carlos Rennó
produção musical de Rodolfo Stroeter
selo Geleia Geral
2000

1- Eu só me ligo em você – I Get a Kick Out of You (Cole Porter) Zélia Duncan
2- Que de-lindo – It´s De-lovely (Cole Porter) Caetano Veloso
3- Façamos [vamos amar] – Let´s Do It [Let´s Fall in Love] (Cole Porter) Chico Buarque & Elza Soares
4- Um dia de garoa [em São Paulo] – A Foggy Day [In London Town] (George & Ira Gershwin) Gilberto Gil
5- Blablablá – Blah, Blah, Blah (George & Ira Gershwin) Rita Lee
6- Você é o mel – You´re the Top (Cole Porter)* Tom Zé
7- Toda vez que eu digo adeus – Ev´ry Time We Say Goodbye (Cole Porter) Cássia Eller
8- Abraçável você – Embraceable You (George & Ira Gershwin)** Jane Duboc
9- Fascinante ritmo – Fascinatin´ Rhythm (George & Ira Gershwin) Ed Motta
10- Oh, dama, tem dó – Oh, Lady, Be Good (George & Ira Gershwin) *** Carlos Fernando
11- Enfim o amor – At Long Last Love (Cole Porter) Sandra de Sá
12- Quem tome conta de mim – Someone to Watch Over Me (George & Ira Gershwin)** Paula Toller
13- A Lorelai – The Lorelai (George & Ira Gershwin) Mônica Salmaso
14- A moça mais vagal da cidade – The Laziest Gal in Town (Cole Porter) Jussara Silveira

Versões de Carlos Rennó, com exceção de: * Augusto de Campos, ** C. Rennó e Nelson Ascher, *** C. Rennó e Charles Perrone

*

Lua-Brilhante (Moonglow)


de “Olhos”, de Patricia Talem

2011_Patricia_Talem_Olhos_1024

A Lua-brilhante,
Que no alto se vê,
A Lua-brilhante
Levou-me até você.

Você me dizia:
“Querido, me abrace”.
E a Deus eu pedia:
“Que isso nunca passe”.

Nós flutuávamos no ar.
Lindas canções vinham de todo lugar.

Se a Lua-brilhante
No alto se vê,
Eu lembro que ela
Foi quem me deu você.

___________________________________________

It must have been moonglow
Way up in the blue;
It must have been moonglow
That led me straight to you.

I still hear you sayin´:
“Dear one, hold me fast”.
And I keep on prayin´:
“Oh Lord, please let this last”.

We seemed to float right through the air.
Heavenly songs seemed to come from everywhere.

And now when there´s moonglow
Way up in the blue,
I´ll always remember
That moonglow gave me you.

Música de Will Hudson e Irving Mills e letra de Edgar DeLange, 1933